Mostrar mensagens com a etiqueta Ricardo Vaz Monteiro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ricardo Vaz Monteiro. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que procurar entender o salto que se operou com a chegada de Sarmento Rodrigues em 1945 à Guiné, por isso me socorri de valiosos parágrafos retirados de 2 artigos assinados pelo investigador António Duarte Silva acerca do que representou a política deste Governador no contexto de uma nova era colonial, tal como Marcello Caetano a visionou. Destas atas aqui referenciadas se pode ver com clareza os apoios que o Governante pode obter para um trabalho novo e para o inculcamento de um novo espírito civilizacional, daí a categorização com maior amplitude de indígena, assimilado e civilizado, categorização essa que será radicalmente alterada quando explodirem as lutas de libertação.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (3)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato. Vimos, no texto anterior, como o novo Governador, o Capitão Tenente Manuel Sarmento Rodrigues apresentou na sessão extraordinária de 3 de julho de 1945 o seu plano de ação, lendo-o à distância destas quase oito centúrias, ficamos cientes que sabia muito bem ao que vinha, tinha o conhecimento profundo dos dossiês e uma visão para o desenvolvimento da colónia.

Um profundo conhecedor e analista deste período, o investigador António Duarte Silva, deixou-nos parágrafos bem elucidativos do que movia o distinto oficial da Marinha:
“Com o termo da II Guerra Mundial à vista, aguardava-se uma remodelação ministerial e Salazar decidiu convidar Marcello Caetano para uma pasta, tanto mais que este começara a interessar-se por uma carreira política e revelava pretensões reformistas. Rejeitada uma primeira proposta quanto ao Ministério da Justiça, Salazar decidiu oferecer-lhe o Ministério das Colónias, cargo que enalteceu como «vastíssimo campo de ação, envolvendo todas as matérias da administração em relação a uma área enorme». Sugeriu mesmo que no Ultramar estava «o futuro da Nação, o seu grande destino histórico», concordando «ter chegado a altura de começar a mudar de rumo» e adotar uma política favorável à autonomia das colónias. Acrescenta Marcello que aceitou estas condições e, de facto, no exercício de funções como Ministro das Colónias, entre 6 de setembro de 1944 e 4 de fevereiro de 1947, destacar-se-á quer como defensor da renovação política do Estado Novo, quer como convicto africanista. Tinha um programa próprio, embora reconhecesse que a política colonial portuguesa deveria continuar assente nos dois pilares consignados desde 1930 no artigo 2.º do Ato Colonial: por um lado, a missão de colonizar mediante a expansão da “raça branca” e, por outro, a missão de civilizar as populações indígenas. Todavia, entendia que, na conjuntura do final da II Guerra Mundial, esta política de colonizar e de civilizar tinha de evoluir, não só para promover a progressiva autonomia administrativa e o desenvolvimento económico e social das colónias, como também para se acautelar perante a ascensão das forças anticolonialistas, especialmente norte-americanas.

Marcello conhecia a Guiné Portuguesa desde 1935, quando a visitara na qualidade de diretor cultural de um cruzeiro de férias para estudantes, organizado pela Agência Geral das Colónias. A Guiné deixara-lhe «uma recordação muito viva e agradável». Recorda que, ao tentar preparar-se para aquela viagem, não encontrara fontes fidedignas de informação sobre a sua geografia, história, economia, etnografia ou administração, pois era praticamente desconhecida: «daí o espanto com que eu e os meus companheiros de viagem de 1935 vimos o que era e o que podia ser, afinal, a nossa Guiné ao desembarcarmos em Bissau primeiro e depois em Bolama». Por isso, muitos anos depois, em abril de 1969, no início da longa visita que realizou ao Ultramar como Presidente do Conselho, não deixou de recordar aqueles seus primeiros contactos: quer a «imperecível recordação da beleza da terra e da dignidade da gente», quer as tradições combativas de Portugal na Guiné.

A colónia da Guiné iria, pois, ser o primeiro campo de ensaio dos rumos autonomistas e desenvolvimentistas da política portuguesa. Efetivamente, além da referida intenção de a tornar mais conhecida e um território modelar, outras motivações levaram à escolha da Guiné para esse rumo novo na política colonial. Por um lado, vários indícios apontavam para que Bissau e Bolama pudessem ocupar nas redes de transportes marítimos e aéreos após a II Guerra Mundial uma posição destacada de escala internacional e de cruzamento de uma “carreira aérea imperial” ou, ao menos, de ponto de escala dos paquetes que serviam Angola e Moçambique. Por outro lado, pesava um fator de ordem internacional: a circunstância de a Guiné estar rodeada de colónias francesas e inglesas e de se encontrar numa área onde se verificava uma assinalável presença diplomática norte-americana. Eis por que Marcello pretendia apostar na possibilidade de uma «crónica nova da conquista da Guiné para a civilização e para a ciência sempre dentro das conceções tradicionais da política colonial que soube casar a fé e o império: – a necessidade do mando com a fraternidade cristã».

Além da mudança de capital para Bissau, conseguida em 1941, também era necessário remodelar o governo da Guiné, pois o Governador em funções, Capitão de Artilharia Ricardo Vaz Monteiro, empossado a 16 de março de 1941, tinha «14 anos de governo tropical e [estava] já na fase das asneiras frequentes». Marcello Caetano pretendia uma equipa que saneasse a Guiné «do ambiente de depressão e intriga em que constantemente se debatia», e cujos trabalhos, elaborados com uma visão otimista e uma postura construtiva, haveriam de começar «por um exaustivo conhecimento científico das possibilidades da terra e da gente» e prosseguir através de uma «completa ocupação sanitária, educacional e política». Portanto, o perfil desejável apontava para «um oficial da Marinha de Guerra, corporação com tradições tão ligadas à colónia». Esse oficial seria o capitão- -tenente Sarmento Rodrigues. Começava a formar-se, aqui e agora, «uma nova escola de política ultramarina»”.

Parágrafos extraídos do artigo intitulado “Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo”, publicado na Cultura, Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 25, 2008.

“Nos cerca de três anos e três meses de exercício efetivo, de 1945 a 1948, o governo de Sarmento Rodrigues vai reforçar a administração colonial, tentar associar os guineenses à governação e construir a rede de infraestruturas indispensáveis à política de desenvolvimento. Apesar de, na época, a orientação ter causado «alguma controvérsia», esse triénio, resume Peixoto Correia, produziu «obra de alcance e profundidade, porque a política praticada atendeu às características sociais e étnicas locais e ainda por as realizações haverem afetado todos os setores». Segundo o Vice-Almirante Silva Horta, Sarmento Rodrigues acreditou «sinceramente na doutrina oficial de então», contactou toda a população, proibiu os castigos corporais, promoveu a agricultura, a investigação científica e inúmeras obras, tornando «a Guiné melhor» e pondo-a «no mapa».

A sua política prosseguiu a estratégia (iniciada, antes do «28 de maio» de 1926, pelo Governador Vellez Caroço) de privilegiar as alianças com os muçulmanos (sobretudo fulas) e, por outro lado, expandiu o aparelho administrativo, mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços (que também dominavam o sector comercial), envolvendo, progressivamente, «alguns guineenses de cor escura».

De facto, Sarmento Rodrigues restringiu os poderes dos régulos e manifestou-se «intransigentemente» contra o uso das violências em relação ao trabalho dos indígenas, atitude que terá provocado diversas «lamentações, de que os indígenas agora faziam o que queriam». Numa perspetiva de economia política, terá adotado um «populismo agrário», algo romântico, e olhado para a Guiné como se fora «um pomar tropical».


Outra medida significativa foi a aprovação do Diploma dos Cidadãos, como ficou conhecido o Diploma Legislativo n.º 1364, de 7 de outubro de 1946, que reformava o chamado «Diploma dos Assimilados» (Diploma Legislativo n.º 535, de 8 de novembro de 1930), o qual, por sua vez, estabelecera as condições em que os natu¬rais das colónias podiam passar à condição de «assimilados a europeus», definindo, desse modo, um estatuto pessoal, étnico e hereditário, no caso aplicável aos guineenses de origem mas não aos cabo-verdianos (que nunca estiveram sujeitos ao regime de indigenato). Na Guiné, a partir de 1946, passaram, portanto, a distinguir-se relativamente aos «indivíduos de raça negra, ou dela descendentes» apenas duas categorias - os indígenas e os cidadãos (ou «civilizados») -, abolindo aquela terceira categoria de «assimilado». Eram considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que não preenchessem conjuntamente as seguintes quatro condições: a) falar, ler e escrever português; b) dispor de rendimentos suficientes ao sustento familiar; c) ter bom comportamento; d) ter cumprido os deveres militares. As condições de passagem à condição de cidadão português (ou seja, de «civilizado») eram enunciadas pelos artigos 2.º e 3.º, sendo o bilhete de identidade o «o único documento comprovativo da qualidade adquirida de não indígena» (artigo 4.º). A verdade é que este regime só em 1954 seria aplicado em Angola e Moçambique pelo novo «Estatuto dos Indígenas», desenvolvendo a filosofia de assimilação que enformara a revisão constitucional de 1951 e sendo o próprio Sarmento Rodrigues Ministro do Ultramar. O referido Diploma dos Cidadãos, disse-se então, era «o mais importante no género do Império Colonial Português».
Parágrafos retirados do artigo Guiné-Bissau: A causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, publicado nos Cadernos de Estudos Africanos, setembro/outubro de 2006.

Estamos agora em 20 de setembro de 1946, o Conselho de Governo tem na ordem de dia a apreciação da legislação que estabelece as condições que devem caracterizar os indivíduos naturais da colónia para serem considerados assimilados a europeus. Consta do preâmbulo:
“Sendo da essência orgânica da Nação Portuguesa civilizar as populações indígenas dos domínios ultramarinos, deve encarar-se com verdadeiro júbilo e reconhecimento de todos os progressos verificados neste campo. Por cada novo cidadão responsável que se desprenda do indigenato, é mais um esforço civilizador que se consagra e uma ambição que se preenche. Fiel ao espírito das leis basilares, este diploma garante a conceção de direitos a todos aqueles que os merecem”.
E tipificava-se a condição: são considerados indígenas todos os indivíduos de raça negra (que não estejam abrangidos pelo que dispõe o artigo seguinte para a definição de cidadãos portugueses), não falam, não leem nem escrevem a língua portuguesa, praticam os usos e os costumes do comum da sua raça; são cidadãos portugueses os indivíduos de raça negra que exerçam ou tenham exercido cargo público a que corresponda vencimento de categoria com as habilitações literárias mínimas, faça ou tenha feito parte de órgãos diretivos, de corpos ou corporações administrativas, ser comerciante matriculado, ser proprietário de estabelecimento industrial, possuir como habilitações literárias mínimas o primeiro ciclo dos liceus, ser natural de outra colónia ou território português onde não haja indigenato (era o caso de Cabo Verde). E a lei depois estabelecia as condições em que se podia requerer a qualidade de cidadão.
Sarmento Rodrigues expôs ao Conselho o espírito do diploma:
“Aqui não se trata de agradar, mas sim de educar. E nessas condições não se procura o aplauso de opiniões que não existam, nem se receiam as censuras de quem não sabe criticar. Com a consciência perfeita dos seus deveres, o Governante, o chefe, o civilizado, tem de dar exemplos e indicar os caminhos que devem ser seguidos sem curar de saber se as massas lhe dão um aplauso”. Interveio Mário Lima Wahnon, exaltando a iniciativa, estava convencido de interpretar o sentir de todos os presentes, o Conselho sentia-se honrado dando o incondicional apoio à iniciativa.

Em 8 de fevereiro de 1947, estando reunido o Conselho de Governo, Sarmento Rodrigues recorda a visita do Subsecretário de Estado das Colónias à Guiné. Julgava-se que o Marechal Carmona viria à Guiné, fizera-se representar, a colónia sentia-se agradecida. Mas o Governador entendeu expender um ponto de vista político:
“É tradicional das gentes das colónias quando são, como agora, benévolas para o seu Governador, desculparem-no, atribuindo todas as deficiências às dificuldades e empecilhos postos pelo Terreiro do Paço. É o que tem sucedido comigo. Mas hoje peço-lhes, meus senhores, que atentem na verdade. Tudo o que tem sido feito é devido ao apoio, ao auxílio, aos incitamentos que tenho recebido da metrópole. Tudo o que não está feito ou saiu mal é, sem dúvida, alguma, culpa, insuficiência minha. Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-nos um avião Tiger e os 2.000 contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública, um batelão, boias, e ainda outro material. O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem”.

E refere levantamentos topográficos, planos de urbanização, projetos para enfermarias, postos sanitários, escolas, moradias, igrejas, postos administrativos, mercados. Tinham sido melhorados os preços para o amendoim, coconote e óleo de palma. “Mas há mais. A ponte de Ensalmá e o porto de Bissau, as suas velhas e quase imaginárias aspirações tradicionais da Guiné, vão ser realizadas”. Tinha chegado dinheiro para a construção de obras de sanidade e escolas para os indígenas. “Senhores vogais: reunimo-nos hoje aqui para agradecermos, não somos mais do que reconhecidos. E, por isso, sem mais palavras, eu proponho que aprovemos, de pé, uma saudação ao ilustre representante do Governo da Metrópole para que transmita ao Governo Central a que pertence, a certeza da nossa inquebrantável dedicação e lealdade e o nosso grande reconhecimento por todos os benefícios materiais e morais que nos está concedendo”.

(continua)


Sarmento Rodrigues, foto oficial do Ministro do Ultramar
Projeto de adaptação do Palácio do Governo, Guiné-Bissau
Hospital de Cumura, a leprosaria da Guiné
Imagem da vida quotidiana em Bissau, nos dias de hoje
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23880: Historiografia da presença portuguesa em África (347): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2022:


Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (1)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de posturas ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato, antes de regressar a Lisboa. É o que aqui se pretende fazer, começando por se sintetizar o que se passou na sessão do Conselho de Governo em 10 de julho de 1917 e na sessão especial que teve lugar em 3 de fevereiro de 1945. O leitor decidirá se estas considerações podem ter algum peso específico para o estudo da História da Guiné.

Na sessão de 1917, que tinha como ordem de trabalhos a discussão de um requerimento da Empresa Agrícola Comercial Bijagós Limitada, para deter o exclusivo do fabrico de telha; a discussão de um telegrama do Administrador da Circunscrição de Cacine quanto aumento das taxas de licença comerciais e por fim a discussão de um requerimento em que habitantes da Guiné pediam a criação de mais escolas de ensino primário, é bom ouvir a natureza desta última proposta. Ali se sugeria três categorias de escolas: elementares, complementares e escola central; na primeira, seria para ministrarem a instrução rudimentar, que seria obrigatória para as crianças de ambos os sexos, aprendia-se a língua portuguesa falada, dando às crianças lição das coisas por quadros representando objetos de uso; o ensino elementar consistiria na leitura, escrita e nas quatro operações aritméticas sobre números inteiros, funcionaria uma escola em cada posto, e avança-se com o ensino para os dois sexos, as escolas do sexo feminino teriam um ensino relativo a costura e bordados, noções de culinária e economia doméstica, funcionando em Bolama, Bissau, Bafatá, Farim e Cacheu. O documento está cheio de detalhe, define o perfil dos professores, o material indispensável para o funcionamento das escolas, os prémios para os melhores alunos, os exames, etc. Não nos podemos esquecer de que a ética republicana, que cuidava do mesmo sentido da ação civilizadora no Império como a Monarquia Constitucional, privilegiava a educação, só que este documento apresentado no Conselho de Governo em 1917 é impressionante pelo seu sentido progressista, por ultrapassar aquelas barreiras de civilizados e gentio, que será a bitola que o Ato Colonial irá impor.

Estamos agora em 1945, Ricardo Vaz Monteiro, Major de Artilharia e Governador da Guiné, despede-se, terminara a sua comissão, agradece ao Conselho a colaboração prestimosa que lhe fora dispensada. Agradece sobretudo a prova de dedicação quando foi vítima de um acidente de aviação em 11 de setembro do ano anterior. E falando da ação civilizadora diz que é de todos sabido que o sistema colonizador português tem por primeiro fundamento o primeiro mandamento da nossa religião – o amor ao próximo – e, portanto, nós, portugueses, consideramos em primeiro lugar como seres humanos os indivíduos qualquer que seja a sua raça. Tece considerações sobre o papel dos missionários, a importância da língua portuguesa, dizendo que manteve 80 escolas sustentadas pela dedicação das Administrações de Circunscrição e de Concelho, sempre entendeu que devia ser contrariado o uso do crioulo no sistema escolar, sentia a obrigação de que todos tinham que trabalhar para aportuguesar os indígenas da Guiné, havia que contraria o preconceito de quem ridicularizava o preto quando este se exprimia em português: “Para estes que assim procedem, faltos de toda a centelha nacionalista, vai a nossa piedade porque não sabem o que fazem. Não sabem que o uso da nossa língua é um dos melhores meios para introduzir no meio indígena, as ideias, os sentimentos, os costumes e as tradições dos portugueses”.

Mudando a direção do seu discurso, passou em revista o que acontecera no desenvolvimento da agricultura e da veterinária, específica as medidas tomadas, releva a importância da distribuição gratuita de sementes selecionadas pelos serviços técnicos nos postos experimentais, durante o seu mandato procurara imprimir dinâmicas às granjas administrativas com caráter de empresas agrícolas de tamanho médio, vê-as como poderosas alavancas para o desenvolvimento socioeconómico e cultural da Guiné, e que não lhe parecia difícil obter bons resultados pela disponibilidade de terreno, já que a densidade populacional na Guiné era de cerca de 10 habitantes por quilómetro quadrado, havia igualmente que aproveitar esta disponibilidade para intensificar o revestimento florestal. “Este revestimento compreende essências que dão madeira rija ou dura para a construção civil e marcenaria como o bissilão, pau-ferro, pau-incenso, alfarroba de lala; e outras essências como o poilão-forro, tagarra, caboupa e macete que dão madeira mole aproveitada para pasta de papel, contraplacados e caixotaria. Para se cuida do revestimento florestal da colónia estava naturalmente indicado que haveria primeiramente a distinguir, por cada região da Guiné, a parte destinada às culturas e a parte destinada à floresta. Atendendo ao modo como os indígenas realizam as suas culturas, teriam de ser extensos os terrenos destinados a este fim. Seria, pois, necessário conhecer as necessidades dos aglomerados populacionais indígenas, quanto a terrenos de cultura para depois se fazer a demarcação das zonas florestais que de futuro conviria proteger, defendendo-as das queimadas e realizando o repovoamento”. O Governador disserta largamente sobre a vegetação arbórea e considera ser indispensável tomar medida enérgicas para evitar a destruição feita pelos madeireiros.

Inflete agora o seu discurso para a política de saúde, a luta contra a doença, alude às melhorias introduzidas na assistência médica e sanitária, releva o trabalho das irmãs hospitaleiras franciscanas e enuncia o que se fez para travar a epidemia da febre amarela.

Prestes a terminar, deixa recados para o futuro não só quanto à política de saúde como ao funcionamento de toda a administração colonial. Não esconde a satisfação por na Administração Financeira se terem registado saldos que permitiram fazer face aos enormes encargos contraídos com despesas extraordinárias. E é premonitório: “O que me não foi possível realizar por falta de tempo, ou carência de méritos, virá ser realizado por quem me substituir certamente com mais competência. Ao terminar a minha comissão posso afirmar, sem receio algum de ser desmentido, que durante a minha permanência na colónia dirigi a minha atuação administrativa no sentido de promover o aumento da produção e valorizar materialmente a Guiné, tendo sempre presente que sobre a valorização material tem prioridade indiscutível o emprego de meios destinados a nacionalizar, assimilar, enfim, aportuguesar os indígenas.”

(continua)
Major Ricardo Vaz Monteiro, o Governador da Guiné que antecedeu Sarmento Rodrigues
Selo de Farim português, 1910
Ruínas de Igreja em Bolama
Costureiro guineense
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23853: Historiografia da presença portuguesa em África (346): Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné (Mário Beja Santos)