quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Sarmento Rodrigues, então Capitão-Tenente, apresenta-se na sessão extraordinária do Conselho de Governo da colónia com um autêntico programa, sabe o que falta executar, tem uma radiografia das carências, explana sobre tudo o que pretende fazer, desde as obras públicas à disseminação das forças militares por toda a Guiné. Por tudo quanto se pode ler da sua governação e vem espelhado nas atas do Conselho de Governo, sente-se que temos aqui um Governador com um olhar de grande ecrã, mais direitos para os indígenas, melhorias das condições de vidas do funcionalismo que tinha perdido poder de compra com as carestias da guerra, mobilizou o Gabinete de Urbanização Colonial para trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, instituiu uma política de saúde, chegou-se ao apuro de definir a atividade farmacêutica na Guiné e o posicionamento das farmácias, terá sido legislação singular. Não tenho dúvidas que foi este o Governador que deu conformidade à vida institucional da Guiné, um vasto campo onde couberam as obras públicas, o bom relacionamento com a África Ocidental francesa, o aproveitamento das comemorações do quinto centenário das descobertas da Guiné para trazer cientistas de várias matizes à colónia, entre outras iniciativas, enfim, a Guiné deixava de ser um ponto obscuro e desinteressante para ser encarado como uma parcela do Império, ganhara identidade.

Um abraço do
Mário



Atas do Conselho de Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (2)

Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato, ou no caso de hoje o que o novo Governador da Guiné, Capitão-Tenente Sarmento Rodrigues, em 3 de julho 1945, num ambiente de sessão extraordinária, trazia como programa de desenvolvimento para a colónia.

O distinto oficial da Marinha apresenta-se e saúda os conselheiros, e esboça o seu plano de governação, o que ele pretende para fomento do progresso da colónia: “É premissa basilar não estagnar, não haver uma pausa sequer. O ritmo do trabalho, da atividade, tem de ser acelerado. Precisamos, contudo, de ter os elementos para agir: pessoal e material. De uns e outros, há na colónia, e quando eles não bastarem, não se há de hesitar de recorrer aos recursos de fora”.

Fala em estudos e projetos, estão em falta, terão de aparecer, devem convergir os elementos oficiais e os recursos particulares. Traz uma vasta lista de realizações projetadas e para satisfazer num prazo bastante curto. Coloca á frente as obras por acabar e que pretende arrumar: o Palácio do Governador, a Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários de Bissau, o monumento ao esforço da raça e outras tentativas dispersas pela colónia. Havia que instalar o Tribunal Administrativo, o Tribunal da Comarca, cartórios e conservatória; a estatística seria removida para o edifício em construção na Praça do Império, onde se instalaria também um museu, arquivo e biblioteca. “A Guiné precisa de uma biblioteca para nela recolher obras de interesse histórico e de cultura em geral, e de um arquivo onde se guardem os documentos valiosos, os relatórios, os questionários e tudo o mais que possa interessar a futuras investigações e estudos”. Impunha-se restaurar a Colónia Penal Agrícola, era imperioso haver um local onde fossem conservados os condenados ao cumprimento de penas. “Por toda a colónia há imensas obras que se impõem com as sedes dos postos administrativos de Prábis, Cacine, Bedanda, Bambandica, Xitole, Bula, Enxudé, Binar, Enxalé, Pitche, Pirada, Ilha Roxa, Caravela e outros”. Mas havia também as secretarias das administrações e residências de administradores e de secretários. Fala na rede de estradas e nas pontes, há reparações urgentes e não se podia deixar de reconstruir a ponte de Bafatá sobre o Colufe. Não seria para já ligar o norte com o sul da colónia por pontes, ir-se-ia recorrer a jangadas para fazer travessias rápidas em Xitole, Bissau, João Landim, Farim e Barro.

Anuncia que em breve virá a Missão Hidrográfica com o propósito de com os seus estudos desvendar os segredos da navegação. Tudo a seu tempo, caso da farolagem e balizagem da colónia. Os portos de cabotagem careciam de melhoramentos, e no próximo ano o novo Governador esperava notícias oficiosas para incrementar obras portuárias. A colónia teria alguns campos de aviação, caso de Fulacunda, Catió e São Domingos.

Não deixou de ter uma palavra sobre a abandonada Bolama: “Temos esperança de que Bolama possa vir a ser uma terra de um futuro animador, pois não se encontra com facilidade local com melhores requisitos para navegação aérea”. E havia a esperança de se poder conseguir que algumas carreiras de paquetes viesses escalar a colónia. Dirigiu uma palavra à política de saúde, iria em breve aparecer o Regulamento dos Serviços de Saúde da Guiné, uma delegação em cada Circunscrição com um médico e um centro de saúde, não se esperavam resultados para breve, escasseavam os recursos para as instalações, faltava pessoal técnico e também porque os encargos resultantes não poderiam ser continuamente suportados. Lembrou o problema das águas, concretamente falou de Bissau: “Temos água captada (4 litros por segundo no mínimo), as canalizações assentes em parte, os materiais adquiridos, os maquinismos prontos, as verbas concedidas. Falta um técnico que não há maneira de vir, para a construção dos depósitos elevados. Mas há de chegar o dia. Os benefícios das águas não devem ser limitados somente a Bissau e Bolama. É preciso estender estes importantes melhoramentos a outros pontos da colónia”. Equaciona o problema da distribuição das águas com a instalação das forças militares, a Guiné tinha ao tempo quatro companhias de infantaria e uma bateria de artilharia, o novo Governador pensava que se devia manter uma companhia em Bolama, outra ou duas em Bissau e a quarta no Gabu, aqui “por várias razões que não é necessário desenvolver” era esta a sua opinião, havia que auscultar a Direção-Geral Militar do Ministério das Colónias.

E expende um ponto de vista civilizacional:
“A distribuição de unidades militares visa não só a segurança como também fins civilizadores.
Sabemos que, durante 2 anos, um milhar de homens, acompanhados de suas famílias, vivem sujeitos à vida militar. Nesses 2 anos pode-se-lhes dar uma educação contínua. Não se pode desprezar essa esplêndida para, ao lado da instrução militar, se lhes ministrarem conhecimentos práticos de artes e ofícios: sapataria, alfaiataria, marcenaria, serralharia, pedreiro, etc. Sobre métodos agrícolas, está em crer que muito também lhes seria de ensinar de útil na mesma ocasião: utilização do gado para as lavras e transportes, com o emprego de arados e carros”
.

Disserta sobre o campo da agropecuária, era suposto no ano seguinte executar-se uma grande obra, a Barragem do Biombo, havia que ser prudente quanto aos métodos da cultura do arroz e da mancarra, já que os indígenas eram possuidores de uma grande experiência. Mas competia às autoridades selecionarem sementes para o arroz. Era sua intenção construir celeiros modernos para o arroz e mancarra em todos os postos.

Foi um discurso longo, o novo Governador trazia entusiasmo, tinha uma boa equipa auxiliar e a promessa de maiores apoios financeiros da metrópole. Por isso, esta sua intervenção em 3 de julho era um discurso que devia calar fundo junto dos “civilizados”, chegar junto das autoridade gentílicas, havia que dar a entender que se vinha com um plano e uma missão ampla para cumprir, e daí se falar também do óleo de palma, da borracha (disse abertamente que vinha aí a crise, não se julgava possível fazer mais do que aproveitar a época transitória, a borracha estava condenada a prazo), da cultura de algodão, da floresta e até da plantação de árvores pelas estradas da colónia. Veremos seguidamente outras iniciativas do novo Governador, caso de naturais da colónia serem considerados assimilados a europeus e a construção de algo que hoje podemos utilizar na expressão de Estado Social, em dado momento vamos ver discutido no Conselho de Governo a política de saúde e, surpreendentemente, o reconhecimento da importância das farmácias na Guiné.

(continua)
Almirante Manuel Sarmento Rodrigues (1899-1979), foi Governador da Guiné em 1945, veio substituir o Major Ricardo Vaz Monteiro
Ponte de Ensalmá, Ilha de Bissau
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Nota do editor

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