segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23895: Notas de leitura (1534): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Gérard Chaliand, talvez o mais conceituado historiador francófono do movimento revolucionário, teve oportunidade de acompanhar Cabral no interior da Guiné em 1966 e obter os elementos concludentes da estratégia de guerrilha por ele montada, nomeadamente a partir de 1960, depois do insucesso de conversações com o governo português. Ponto curioso é o que ele observa acerca da fase do desenvolvimento da guerrilha em que se encontravam que abria campo para com melhor armamento se fazerem operações de caráter esmagador sobre este ou aquele objetivo, à semelhança do que ocorrera ou estava a ocorrer no Vietname ou na Argélia. Ele não chegou a ver o desenvolvimento dessa fase, foi assassinado em janeiro de 1973, só meses depois ocorreria a Operação Amílcar Cabral com os objetivos bem definidos de Guilege e Guidage. Chaliand também não esconde que não houve teórico revolucionário em África, e porventura no mundo do seu tempo, como Amílcar Cabral.

Um abraço do
Mário



Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (3)

Mário Beja Santos

Tanto quanto me é dado saber, não existe um documento em que Amílcar Cabral esclareça sobre quais as fontes documentais em que se baseou para arquitetar o seu pensamento e a liderança da luta armada na Guiné. Vários estudiosos procuraram os testemunhos de companheiros de Amílcar Cabral em Lisboa, um deles, Marcelino dos Santos, fez referência às leituras de todos aqueles jovens ardentes nacionalistas, obras de cariz político, de Gorki a Jorge Amado. Mas o que, em concreto, Cabral lera dos grandes clássicos da guerrilha, dos seus contemporâneos do Vietname ou da Argélia, por exemplo, não se conhecem anotações. Basil Davidson mostrou uma grande surpresa quando, em 1960, conheceu em Londres Amílcar Cabral e o ajudou a pôr em inglês aquele documento referente aos factos da Guiné colonial que ele apresentou numa conferência de imprensa, era ainda Abel Djassi. Surpresa pela riqueza das observações do profundo conhecimento do terreno. É um período de sensibilização à escala internacional, os resultados foram bem modestos, mas o documento revelava alguém que até procurava negociar com a potência colonial a independência. Obviamente que Cabral estava informado da evolução da guerra da Argélia, do que se passava da Tunísia a Madagáscar, as insurreições nas colónias britânicas em África, havia o Congo, e fervilhavam as lutas de caráter anticolonial na Rodésia, na Namíbia e na África do Sul. Sonhava-se com federações, houve a tentativa de cessação do Biafra e lutas pela independência no Corno de África.

O que Gérard Chaliand vem dizer na sua obra monumental Estratégias da Guerrilha, Payot, 1994, para a qual concorreram inúmeros especialistas que discursaram sobre as guerrilhas em todo o mundo, é o que ele experimentou diretamente quando acompanhou Cabral no interior da Guiné em 1966 e deu origem a um livro publicado em 1967, intitulado Luta Armada em África. Pôde apreciar como se processava a organização global dessa luta, conversar com vários líderes, reter o pensamento de Cabral nas suas tiradas tribunícias em várias localidades, não escondendo a impressão de que havia algo de diferente na proposta cabralina, um projeto cultural que desse identidade ao país com base naquela luta anticolonial; um elevado sentido de independência e de repúdio de qualquer forma de exploração fosse por brancos, fosse por negros; provocou-lhe assombro aquele discurso de alguém que punha a mulher ao nível do homem, exaltando o trabalho, fazendo a apologia de um desenvolvimento onde não faltariam escolas nem hospitais, havia que aproveitar sem tréguas a experiência da luta armada para encontrar novas fórmulas económicas; a plena convicção de que a luta armada não podia progredir sem o apoio das populações; o PAIGC não era ele, era constituído por todos que estavam conscientes dos objetivos da luta; manifestava o seu profundo apreço pela organização das raparigas, na escola, no trabalho e nas milícias, as comissões de tabanca eram o embrião de uma democracia revolucionária que exigiam um constante trabalho político de debate para dar coesão ao esforço coletivo; era bem claro em todo este discurso do líder do PAIGC que não se deviam criar diferenças entre os combatentes e as populações, a questão central passava pelo repúdio de todos aqueles que se opunham à liberdade do novo país e por isso a formação política precedia sempre a formação militar; não iludia o modo como se deviam superar os problemas étnicos e como, a partir do final de 1964, a relação de forças passava a ter pontos favoráveis para a guerrilha… Gérard Chaliand assistiu a debates em que estavam de um lado Cabral, Chico Mendes e Osvaldo Vieira e as populações do outro, registou perguntas e respostas, interrogou vários dirigentes para se aperceber quanto aos primórdios da sublevação e como gradualmente o PAIGC foi ofuscando grupos competidores, como ia chegando o armamento e materiais indispensáveis a Conacri, como, a partir de 1964, fora criada a estrutura militar, as FARP, as milícias, hospitais, escolas, armazéns. Obviamente que Chaliand apresenta números que correspondiam aos dados da propaganda, alguns deles claramente fantasiados, serviam para embasbacar aqueles que nunca pedem o contraditório, por estarem do lado da revolução, o que se dizia sobre as operações do Como era um puro delírio, uma mentira descarada.

Também em 1966, num artigo publicado na revista Le Nouvel Observateur, pouco depois de vir da Guiné, Gérard Chaliand faz uma síntese da sua viagem, dos bombardeamentos na região do Morés, ele visitou, vindo pela fronteira senegalesa, primeiro a base de Djagali, depois Maké, as suas escolas e o posto médico, ouviu depoimentos, ganhou nitidez o pensamento de Cabral. Contrariamente à teoria do foco, o PAIGC começara um longo trabalho de preparação política, Cabral dera-lhe nota de que não era suficiente assimilar os quadros gerais da teoria revolucionária, impunha-se determinar os traços específicos da realidade guineense, precisava de tempo, de auscultação. Aí Chaliand observa que estes preparativos nada tinham a ver com a teoria do foco, houvera um trabalho de reconhecimento e de agitação, Cabral aproveitara o reconhecimento direto, impusera-se a formação de quadros, o trabalho de agitação no interior e a organização de uma estratégia de guerrilha que contasse com o apoio das populações.

Chaliand tomou nota que o PAIGC estava numa segunda fase de guerrilha, ainda em desenvolvimento, já tinham sido afastados os guerrilheiros violentos que aterrorizavam populações, caminhava-se para uma simbiose entre o partido e a guerrilha, a partir de Conacri impusera-se uma circulação permanente entre a direção, os quadros, os guerrilheiros e os camponeses, instituíra-se o direito à crítica, a explicação e o diálogo. Cabral teimava que apesar da guerra e da disciplina que ela implicava, o direito à crítica era a fonte mais segura da democracia, e que ela estava a funcionar, apesar das múltiplas dificuldades. Naquele ano de 1966, o PAIGC considerava que as atividades militares portuguesas já estavam altamente condicionadas, havia estradas intransitáveis, já não se fazia a circulação no rio Corubal, no Sul só havia operações das forças especiais, tal o peso e a intimidação da guerrilha. Ainda não se punha, isto dito por Cabral, a articulação da luta nas florestas e formas de luta urbana, mas não tardaria chegar-se a essa fase. Disse a Chaliand que para passar a uma ofensiva mais destrutiva seria necessário atingir uma dimensão de formações capazes de atacar o adversário de forma esmagadora, quartel a quartel, povoação por povoação, mas ele não esquecia o sucesso das guerrilhas chinesa, vietnamita e cubana. É esta a exposição de Cabral no quadro de 1966. Só em 1973 é que houve meios para concretizar tal estratégia de guerrilha, como sabemos.

Materiais utilizados por Amílcar Cabral em Conacri entregues ao Museu Militar da Luta de Libertação Nacional, Bissau, 2018
Amílcar Cabral com jovens treinados na China
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Notas do editor

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Guiné 61/74 - P23886: Notas de leitura (1533): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (8) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Manuel Luís Lomba disse...

Os combatentes da Guiné, os de intervenção em particular - a minha unidade correu as "áreas libertadas" do Norte e do Sul durante um ano - sabem que só a tropa circulava por toda a Guiné - com os custos de sangue inerentes, claro - e que além da tropa, só se circulava nesses quadrantes pela mão do PAIGC, estes só viam que o PAIGC quisesse mostrar.

Portanto, o Gerard Chaliande e os outros publicistas da Guerra da Guiné só foram a onde e só viram o que o PAIGC lhe quis mostrar, em 1966 já visitavam escolas, hospitais e armazéns do povo - veio a independência e nenhum desses equipamentos sociais foi visível...

Amílcar Cabral foi de facto o mais talentoso revolucionário africano. A sua liderança formada pela sua cabeça, sustentada no seu profundo conhecimento do colonialismo à "português suave", a sua liderança militar assimilada das escola chinesa e vietnamita .

Bom Natal ao Mario e a todos os tabanqueiros.

antonio graça de abreu disse...

Diz o Mário Beja Santos:
"Obviamente que Chaliand apresenta números que correspondiam aos dados da propaganda, alguns deles claramente fantasiados, serviam para embasbacar aqueles que nunca pedem o contraditório, por estarem do lado da revolução, o que se dizia sobre as operações do Como era um puro delírio, uma mentira descarada."
Pois é, obviamente. Pena não ter desenvolvido o tema das mentiras descaradas.

Abraço,

António Graça de Abreu