(...) Aos 78 anos, arrumo a casa. Desfaço-me de mil papéis, lanço fora cadernos, folhas soltas, textos e versos quase todos muito maus, marcados pelo passado. Descubro um simples poema, com data de fevereiro de 1967, escrito aos 19 anos de idade, no Star Club, avenida Reeperbahn, cidade de Hamburgo, Alemanha:
No Star Club, Reeeperbahn, Hamburgo
tenho muito a ver com isto,
Star Club, cave-café,
os meninos ié-ié,
guitarras e baterias,
beat music todos os dias.
Estardalhaço nos ouvidos,
cabelos compridos,
tanta minissaia,
meninas na praia,
camisas de malha justas,
ancas robustas,
seios eriçados,
frementes, mal amados,
Dois que se beijam longamente
à frente de toda a gente.
A cor, a música, a cor,
o fumo, o álcool, o calor,
o palco recente para os Beatles,
que depois partiram, nicles,
ficou a batida, a festa, o prazer,
a voluptuosidade a crescer.
lascivos corpos novos,
a loucura dos povos,
tudo a querer viver
e, aos poucos, a morrer.
António Graça de Abreu
Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O poema é uma cápsula de época, escrita por quem está dentro da turbulência sensorial e moral da segunda metade dos anos 60, não por quem a observa hoje à distância.
O cenário está dado logo nos primeiros versos: “Star Club, cave-café, / os meninos ié-ié, / guitarras e baterias, / beat music todos os dias.”
Há um olhar de jovem de 19 anos, simultaneamente fascinado e um pouco espantado, quase etnográfico: repara nos cabelos compridos, nas minissaias, nas camisas justas, nas ancas e nos seios, tudo filtrado por um misto de desejo, curiosidade e “choque de costumes” de um português de então ( dos poucos que viajavam).
A parte central do poema é dominada pelo corpo e pela sensualidade: “ancas robustas, / seios eriçados, / frementes, mal amados, / Dois que se beijam longamente / à frente de toda a gente.”
O erotismo não é decorativo, é sinal de libertação, o espaço nocturno como laboratório de novas formas de viver o corpo e o afeto em público, em contraste com a moral mais contida da sociedade portuguesa da época (...como vocês diziam, "salazarenta").
A repetição “A cor, a música, a cor, / o fumo, o álcool, o calor” cria uma espécie de transe rítmico, quase uma batida poética que imita a batida da música beat.
“O palco recente para os Beatles, / que depois partiram, nicles” é um achado.
O contraste entre “ficou a batida, a festa, o prazer, / a voluptuosidade a crescer” e a partida dos Beatles sublinha bem como o espaço (o "Star-Club") continua a viver para lá das estrelas: o clube, a noite, os copos, os corpos são os verdadeiros protagonistas.
O fecho é particularmente forte: “lascivos corpos novos, / a loucura dos povos, / tudo a querer viver / e, aos poucos, a morrer.”
Aqui já não é apenas a descrição de um clube; é uma intuição existencial madura para um rapaz de 19 anos (e que sabe que daqui a cinco anos irá para a guerra!): o mesmo impulso vital que enche a pista, traz consigo a consciência da finitude. A festa torna-se metáfora da condição humana, intensa, breve, em erosão silenciosa, “aos poucos”.
Lido hoje “aos 78 anos, a arrumar a casa”, o poema ganha uma segunda camada de sentido: o jovem que observa “tudo a querer viver”, é agora o cota ( como se diz em Lisboa, que já foi capital de império) , o septuagenario que revisita esse instante com lucidez e ternura, salvando-o do esquecimento, do vestidos papéis.
(**) Último poste da série >4 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27387: Facebook...ando (95): Tenente-General PilAv António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA-12 (Bissau, 1972/74): Acabo de completar 80 anos. É obra


























































