Mostrar mensagens com a etiqueta Alemanha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alemanha. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23973: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXVII: Leopoldo Jorge da Silva, maj art (Viseu, 1868 - Moçambique, 1916)

MORTOS EM COMBATE (MOÇAMBIQUE, 1914-1918)



Leopoldo Jorge da Silva. maj art  (1868 - 1916)


Nome: Leopoldo Jorge da Silva

Posto: Major de Artilharia

Naturalidade: Viseu

Data de nascimento: 29 de Março de 1868

Incorporação: 1890 na Escola do Exército (nº 329 do Corpo de Alunos)

Unidade: Regimento de Artilharia de Montanha (1º Grupo)

Condecorações: Medalha de Prata “Rainha D. Amélia” | Cavaleiro da Real Ordem Militar de S. Bento de Aviz | Medalha da Cruz de Guerra de 1ª classe (a título póstumo) | Promoção a Tenente Coronel por distinção (a título póstumo)

TO da morte em combate; Moçambique

Data de Embarque; 15 de Julho de 1916

Data da morte: 10 de Novembro de 1916

Sepultura: Cemitério de Nevala - Tanzânia

Circunstâncias da morte: Comandando a coluna de Mossari atacou denodadamente, em 8 de Novembro, forças alemãs em Quivambo obrigando estas a retirar com perdas significativas. No combate travado foi ferido com gravidade: Evacuado para o fortim de Nevala, faleceu dois dias depois (10 de Novembro).




António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

_________

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23654: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (97): os geradores militares: contributos para a história da eletricidade no território (Manfred Stoppok / José Nunes / Eduardo Estrela / Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Carlos Silva / Cherno Baldé / José Colaço / Magalhães Ribeiro / Valdemar Queiroz / Manuel Gonçalves / Luís Graça)


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem... (José Silvério Correia Nunes, ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade,  BENG 447m Brá, 1968/70: esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau).

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentários ao poste P23647 (*): 

(i) Manfred Stoppok, antropólogo social,  Universidade de Bayreuth, Alemanha

Muito obrigado pelos vossos valiosos comentários! Posso partilhar aqui algumas informações sobre a evolução do sistema de eletricidade na Guiné:

Distribuição e iluminação publica em Bolama e Bissau a partir de 1930; em Bafatá a partir de 1933. Nos anos 1920 já tinha iluminação de alguns prédios em Bubaque, e provavelmente também em Bolama, mas não foi uma distribuição publica.

Em outros lugares somente depois da segunda guerra mundial, respetivamente a partir de 1947 foram instalados geradores em vários sítios (cerca 20 lugares).

O fornecimento de energia elétrica 24/7 somente realizou se em Bissau. Existiam planos para criar uma rede de distribuição em alta tensão mesmo para o interior – mas não foram realizados. A administração optou pelo sistema de pequenos geradores em todos lugares, porque no curto prazo foi o mais viável, o mais barato, o mais rápido. Mesmo que, já naquele tempo, se subesse que um sistema assim iria criar muitas problemas na manutenção e  ser muito fraco ao longo prazo.

Deve ser por isso que os militares instalaram a maior número de geradores no país na sequência da guerra.

A fonte sobre os geradores no país é um relatório do engenheiro José Correia da Cunha Barros,  de 1969. Em anexo ao relatório há uma tabela que lista 73 lugares, dos quais 59 têm gerador. E daqueles, a maioria eram propriedade do exército. Naquele tabela constam de mesmo os nomes e números dos geradores – tudo bem detalhada.

Barros, José Correia da Cunha (16.07.1969): Problemas eléctricos na Província de Guiné - Visita efectuada de 18 a 30 de Junho de 1969. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), PT/IPAD/MU/DGOPC/DSE/1579/00782.

Bem, foi este fonte que me avisou, que os militares têm um certo papel na história da eletricidade na Guiné. E parece que este papel foi maior de que somente iluminar os próprios aquartelamentos.

Sie alguém está interessado nos detalhes dos geradores,  posso partilhar o relatório com a tabela numa versão digital. Parece que esta lista não é completa. Como eu li nos comentários havia mais aquartelamentos, e todos tinham um gerador.

Em geral, o engenheiro Cunha Barros descreve o sistema dos geradores como um sistema muito degradado já no final dos anos 1960. Falta de peças, faltas de manutenção, diferentes marcas, mal instalados, sistemas avariados há muito tempo e ele não entende porquê. Ele deu algumas ideias para melhorar o sistema (entre outras, unificar os geradores, ter somente uma marca, e somente três, quatro diferentes potências), mas aparentemente não se realizou antes da independência.

Depois, aquele sistema de geradores caiu totalmente. Por outro lado, o sistema é persistente. Ate hoje, a distribuição elétrica na Guiné funciona a partir de pequenos grupos de geradores, são frequentemente adquiridos novo grupos, instalados, abandonados, degradados, um circulo vicioso. Mas é desta maneira que o sistema de eletricidade funciona principalmente até hoje. O fundo do poço foi em 2008, quando mesmo a cidade de Bissau raramente tinha luz – isso melhorou bastante desde 2014/15.

Por isso o meu projeto fala de um período de eletrificação (até os anos 1980): eletrificação (anos 1980 – até 2008) e re-eletrificação (a partir de 2008),  na Guiné-Bissau.

Neste sentido, quero comprender melhor qual foi o impacto da electricidade fornecida pelas forças armadas.


(ii) Eduardo Estrela:

Os geradores que operavam no interior do quartel de Bolama, alimentavam os candeeiros de iluminação pública da cidade.

(iii) Fernando Gouveia: 

Tanto quanto me lembro, em Bafatá acontecia um caso curioso. Ali, em 1968/70, o quartel, pelo menos o do Comando de Agrupamento nº 2987 e o do Esquadrão de Cavalaria ao lado, recebiam a energia elétrica pública da Administração a troco do combustíbel para os geradores.

(iv) António J. Pereira da Costa:

Nos quartéis onde estive, quem trabalhava com o gerador era um soldado que tinha jeito e tinha aprendido a reabastecer, mudar o óleo e vigiar os manómetros... Era como se fosse uma viatura. Recordo-me que em Cameconde, os dois condutores "residentes" eram os responsáveis pelo motor.

(v) Carlos Silva:

No meu Sector O2 - Farim que compreendia, além de Farim, o subsector de Jumbembem onde estive 18 meses, o aquartelamento era dotado de um gerador que apenas funcionava durante a noite e a população que até meados de Setembro também beneficiava da iluminação porque estava enquadrada dentro do aquartelamento. Com o reordenamento a partir de meados de 1970 a população ficou fora do arame farpado e, como tal, deixou de beneficiar de iluminação, excepto as tabancas que estavam próximas do arame farpado.

Creio que esta situação também se verificava nos aquartelamentos de Canjambari e Cuntima. Estive no mês de Novembro de 1969 no K3/Saliquinhedim, e o abastecimento/funcionamento eléctrico era igual.
Os frigoríficos eram alimentados a petróleo.

Quanto à vila da Farim onde estive 4 meses até Dezembro 1969, os edifícios militares dispersos, e os arruamentos tinham iluminação pública abastecida por uma central eléctrica que lá existia / existe junto às piscinas. Actualmente creio que não funciona, mas existe iluminação com a implantação de postes solares.

Os comerciantes, alguns, tinham geradores.

Mas para mim, presumo que a electrificação ou fornecimento de energia nos aquartelamentos em toda a Guiné, era semelhante com recurso aos geradores excepto nos grandes aglomerados, como Farim, Mansoa, Teixeira Pinto, Bafatá, Nova Lamego, Cacheu etc, etc

Portanto para mim, esta era a característica geral da Guiné no que se refere à energia.

(vi) Cherrno Baldé:

No quartel de Fajonquito (sede da companhia) situado ao lado da aldeia, havia um pequeno e barulhento gerador a diesel que servia para iluminar dentro e à volta do aquartelamento que, se a memória não me falha, chegou em meados de 1968/69, antes utilizavam-se candeeiros vácuos em alguns sítios (para iluminar a zona do refeitório e a messe de oficiais e sargentos, entre outros). Havia um militar encarregue especialmente dos seus cuidados de manutenção.

Após a independância, ainda funcionou durante alguns meses (penso que enquanto durou a reserva de combustível deixado pela tropa portuguesa), mas com a decisão de acabar com o aquartelamento e centralizar tudo na sede do Sector (Contuboel), destruiram as instalações que eram antigas casas comerciais e levaram consigo o gerador. Ninguém deu satisfação à populaçao local, também não fazia muita falta, porque nunca tinham beneficiado dos seus serviços, salvo a criançada que procurava as zonas iluminadas para brincadeiras nocturnas.

De qualquer modo a nossa aldeia ficou mais escura e triste com a partida da tropa e, mais tarde, da confiscação do gerador. Sou de opinião que a tropa metropolitana concentrada mais nas manobras da sua retirada e regresso a casa, nao teria qualquer interesse em retirar os geradores nos aquartelamentos que já tinha entregue, de forma pacifica e amistosa, aos guerrilheiros.

(vii) Tabanca Grande Luís Graça:

Obrigado, Cherno, mais uma vez, pela partilha das tuas memórias de menino e moço em Fajonquito. Também me parece que, com a retirada das NT, ao longo de julho/agosto/setembro de 1974, o essencial do equipamento (geradores, incluidos...), tirando o armamento, ficou lá nos quartéis do mato, e naturalmente em Bissau... Era um gesto de paz e amizade, depois dos acordos de Argel...

De resto, o custo de transporte para a metrópole era elevado, para não dizer proibitivo...nem havia meios de transporte suficientes... Para os guinenenes, o grande desafio era depois a manutenção... E aí foi um desastre, o PAIGC foi um "bluff", não tinha quadros para desempenhar tarefas, aparentemente tão simples como a manutenção e reparação da "rede elétrica" deixada no mato... Confiaram nos amigos russos, suecos, cubanos e outros... Em Bissau, não sei como foi, mas pelo que vi, "in loco", em 2008, era uma dor de alma aquela cidade... Não consegui sequer entrar nos meus antigos aposentos, em Bambadinca, tive vontade de chorar...

(viii) José Botelho Colaço

Luís,  nem dá para comentar,  é do conhecimento geral o PAIGC só foi rico em propaganda antes da independência, porque após independência não preservou nada, foi a  degradação total tanto de móveis como de imóveis. Enquanto durou e funcionou OLm  a seguir sucata ou ruinas. Veja-se a linda cidade colonial de Bolama como eu a conheci, hoje um abandano total de ruínas, mas é que não foi só Bolama foi a totalidade de quase tudo para não dizer tudo, o que os tugas lá deixaram. É desolador.

(ix) Eduardo Magalhães Ribeiro:

Em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974, naquela que era a central eléctrica, localizada entre o quartel e a cidade, ficaram perfeitamente funcionáveis 2 geradores movidos a diesel, não me lembro se eram de 0.8 ou 1,1 MW. Dias antes e uns dias após, foi explicado e estiveram em estágio conjunto de formação aos futuros donos da central vários elementos da tropa portuguesa e do P.A.I.G.C.

A CCS do BCAÇ 4612/74 e toda a tropa ainda estacionada em Mansoa abandonaram o quartel no dia acima indicado. A CCS a que eu pertencia,  foi deslocada para o Batalhão de Engenharia 447 em Brá.
Três dias depois estava eu de sargento de dia, junto à porta de armas, quando surgiu um jipe com 4 PAIGC a pedirem para falar com o nosso comandante. Perguntei qual o assunto que pretendiam os trazia ali. Resposta de um deles: "Os geradores deixaram de trabalhar."

Liguei então, via telefone, ao coronel Américo Varino a narrar a informação recebida. Passado um tempo vem o nosso furriel mecânico com 2 soldados num jipe dos nossos que seguiu atrás dos PAIGC.

Horas mais tarde surge o nosso jipe. Perguntei ao furriel: "Então, pá, o que se passou?"... Resposta: "Aqueles nabos trocaram tudo. Meteram diesel no depósito do óleo, água no sítio do óleo e óleo no depósito do diesel. Está todo partido por dentro e sem reparação possível."

PS - Ainda me segredou que os PAIGC  murmuraram que foram os nossos homens que sabotaram os ditos geradores. Coisa que eu nem vou comentar aqui, para não meter nojo, claro.

(x) Valdemar Queiroz:

Julgo que em Nova Lamego o gerador produzia electricidade para os civis e para a tropa, e penso que a manutenção e a segurança eram feitas por gente da administração e sipaios. Digo isto por, nunca a minha CART 11 ter feito segurança ao gerador, mas montava emboscados e rondas nocturnas como o pessoal do Batalhão.

Quando Nova Lamego foi atacada por foguetões122 mm,  os nosso soldados foram fazer a segurança ao gerador, o meu pelotão não foi e não me lembro se estava assim pré-definido ou se foi alguma ordem ocasional. Mas os frigoríficos da companhia trabalhavam a petróleo.

Não vem a propósito mas pode interessar, o sistema de iluminação que estava montado na fiada interior do arame farpado em volta de Giro Iero Bocari era o cúmulo do desenrasca das invenções. Guiro Iro Bari era um destacamento de Paúnca com dois pelotões junto da população, apenas com umas tendas, valas e duas fiadas de arame farpado em todo o perímetro.

Uma lata vazia, das grandes, de doce/feijão aberta ficando a tampa presa por forma a ser dobrada para se aproveitar ao máximo, como uma pala virada para o céu. Dentro da lata uma garrafa de cerveja com petróleo tapada com uma carica furada e uma torcida. Á noite acendia-se a torcida e a luz refletida na tampa da lata dava um bom candeeiro que só dava luz para a frente.

(xi) Manuel Gonçalves:

O nosso amigo e camarada, transmontano de Bragança, Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Manutenção da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73) (e que estudou nos Pupilos do Exército), disse-me ao telemóvel o seguinte sobre os geradores:

(i) havia dois em Aldeia Formosa, no seu tempo;

(ii) a responsabilidade pela sua gestão era do pelotão de manutenção da CCS/BCAÇ 3852, de que ele era o responsável, enquanto alferes miliciano;

(iii) em caso de avaria, é que se chamava o BENG 447 (que estava em Brá, Bissau);

(iv) funcionavam os dois, alternadamente, até à 1h00 da noite, depois eram desligados;

(iv) forneciam luz para o quartel e parte da tabanca;

(v) não tinham potência para iluminar a tabanca toda;

(vi) ele chegou a sugerir a eletrificação da pista de aviação (onde aterravam todas as aeronaves, exceto o FIAT G-91); mas nunca se concretizaou: em caso de emergência, à noite, usavam-se garrafas a petróleo para balizar a pista (!)...

(vii) ficou de nos dar mais informação técnica sobre os geradores de Aldeia Formosa (hoje Quebo).

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)


Diorama de Guileje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim, destinada ao Núcleo Museológico de Guileje, Guileje, região de Tombali, Guiné-Bissau


Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2008). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Um gerador de marca Lister, parecido com o que deveria existir em Guileje. 

Imagem retirada da Net:  Nuno Rubim (2007)



1. Mensagem de Manfred Stoppok (foto à esquerda), antropólogo social, investigador de pós-doutoramento, da Universidade de Bayreuth, Alemanha

 
Data - 26 de setembro de 2022, 16:44
Assunto - A electrificação e os militares na Guiné-Bissau nos anos 1960

Exmos Senhores,

O meu nome é Manfred Stoppok, sou investigador pós-doc na Universidade de Bayreuth,  Alemanha. 

Já fui várias vezes à Guiné-Bissau, e neste momento faço um estudo sobre a história da eletricidade no país.

Eu descobri nos arquivos históricos ultramarinos em Lisboa que, durante a guerra de 1961/74,  uma grande parte da capacidade de produção de eletricidade estava nas mãos das forças armadas portuguesas: dos 59 lugares com geradores fora de Bissau, 47 tinham somente um gerador nas mãos das forças armadas, e somente 19 tinham uma distribuição civil.

Em termos da capacidade de produção, ambas, a administração civil e as forças armadas,  tinham cerca de 1 MW cada um no total.

Este aspeto é provavelmente uma coisa muito especial no desenvolvimento do sector de energia. Neste sentido, tenho algumas perguntas, na resposta às  quais os senhores talvez me possam ajudar.

(i) Os geradores dos militares forneciam eletricidade em geral somente para os quartéis – para uso próprio – ou também forneciam eletricidade para as unidades administrativas, escolas, hospitais,  etc.? Ou até mesmo para alguns particulares ou comerciantes?

(ii) Ou havia uma iluminação pública das ruas naqueles lugares? 
Em pelo menos alguns casos isso acontecia, havia eletricidade para a administração, mas eu não sei se isso  era a regra ou a exceção.

(iii) E, bem interessante para mim, o que é aconteceu com os geradores militares na hora da independência da Guiné-Bissau? O mais provável é que os geradores tenham sido levados para Portugal, o que significou a perda de quase 50% da capacidade de produção fora do capital Bissau. Ou será que estes equipamentos ficaram na Guiné?

Eu agradecia muito se os senhores puderem e quiserem partilhar as suas experiências comigo ou então indicar-me  onde posso encontrar documentação sobre estas coisas.

Eu também estarei em Lisboa por duas ocasiões nos próximos meses – no final do outubro de 2022 e no início de fevereiro de 2023 – e teria muito gosto em ter um encontro pessoal com quem quiser partilhar as suas informações e memórias relativamente a este assunto,

Com os melhores cumprimentos
Dr. Manfred Stoppok

[Revisão e fixação de texto, negritos: L.G.]

Manfred Stoppok | Post-Doc Researcher

f: funded by Fritz Thyssen Foundation
a: University of Bayreuth – Social Anthropology
e: manfred.stoppok@uni-bayreuth.de
w: www.history-electrification.com



Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné: o Batalhão de Engenharia". Coordenação do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa: Direção de Infra-estruturas do Exército, 2014, 166 pp.


Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vindo de Bafaté e do rio Geba, a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca. São visíveis, na foto (se for ampliada), os postos de iluminação pública, ao longo da rua principal (que ia do quartel até ao porto fluvial).

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem...

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor LG:

Meu caro Manfred: vamos tentar  ajudá-lo (*). Obrigado pelo seu contacto. Procurei  melhorar a sua mensagem em português. Mas não temos, à partida, grande informação (e muito menos conhecimento)  sobre a eletrificação da Guiné-Bissau no nosso tempo (1961/74). E falta-nos, enquanto antigos combatentes, uma visão geral sobre a situação da eletrificação do território... 

Nos quartéis, havia pelo menos um gerador (nalguns casos, haveria um sobresselente para suprir avarias) que funcionava preferencialmente à noite. Nunca ou raramente estavam a operar 24 horas por dia. Fez-se um esforço por eletrificar todos os aquartelamentos localizados em povoações importantes. E isso competia à engenharia militar (BENG 447).

Havia quartéis maiores do que outros, e alguns estavam implantados nas próprias povoações, sendo natural que contribuissem para a ilumição pública fora do perímetro do arame farpado, nas proximidaxes da porta de armas e na rua principal da localidade (caso de Bambadinca, Teixeira Pinto, Nova Lamego, Farim, Catió...). 

Em localidades como Bambadinca (onde eu estive, de julho de 1969 a março de 1971, e que teria, na altura 2 mil habitantes, e cerca de 400 militares), e que era um posto administrativo fazendo parte do município  de Bafatá (a segunda maior cidade do território, a 30 quilómetros, a nordeste),  o perímetro militar integrava as instalações e a casa do chefe de posto, a escola (com a casa da professora, cabo-verdiana), bem como uma capela cristã... O edifício dos correios, se bem recordo, já ficava fora... As casas comerciais estendiam-se ao longo de uma rua de trezentos metros que era ilumianada, tanto quanto me lembro... O resto (duas tabancas) ficava às escuras... O gerador militar também fornecia luz ao posto de intendência no porto fluvial, na margem esquerda do rio Geba Estreito, a escssas centenas do aquartelamento, sede de um batalhão (BCAÇ 2852 e depois BART 2917)...

Os frigoríficos (tanto dos comerciantes civis como os da tropa, e de um ou outro particular) eram alimentados a petróleo. E alguns de nós, graduados,  tinham também pequenos frigoríficos, nos quartos para manter frescas as bebidas  como a cerveja... (Um luxo, a cerveja gelada, o gelo para o uísque, a água de Vichy e de Perrier...).

Por outro lado, temos ainda a memória do cinema ambulante, que passava, mesmo no tempo da guerra, por algumas povoações mais importantes do leste da Guiné. E havia localidades que tinham sala de cinema (Bafatá, Teixeira Pinto, Nova Lamego...).

É importante que fale com os nossos camaradas do BENG 447, o Batalhão de Engenharia nº 447, que estava sediado em Brá, Bissau, e era responsável também pela construção e eletrificação das instalações militares no mato.

Fica aqui o seu apelo. Vamos ver se aparece informação relevante para si e o seu projeto sobre a história da electricificação da Guiné, terra a que nos ligam fortes laços afetivos e muitas memórias (boas e más). Vejo que fala e/ou escreve português. Isso facilita os contactos. Boa sorte, boa saúde, bom trabalho. LG

PS1 - Temos ideia que houve, no tempo do governador  Sarmento Rodrigues (1945/49) e depois do general António Spínola (1968/73), uma melhoria da eletrificação do território. Mas não temos informação detalhada. Por outro lado, Bissau estava muito melhor iluminada, à noite,  antes da independência do que depois. Em 2008, quando lá voltei, a cidade vivia às escuras. Fale também com o nosso camarada Mário Beja Santos, que é um enciclopédico estudioso da história da presença portuguesa no território, bem como  o nosso camarada Patrício Ribeiro, fundador e diretor da empresa, com sede em Bissau, Impar Lda, do sector de energia.  Dar-lhe-ei depois os contactos,

PS2 - O nosso José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade no BENG 447 (Brá, 15Jan68 - 15Jan70) esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau. Tem, por certo, conhecimento da matéria. (Vd. o precioso poste P2470, de 22 de janeiro de 2008 " (**)
___________


(**) Vd. 22 de janeiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)

(...) Estive na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970. Fiz assistências e electrificações em aquartelamentos, Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglés, Bolama, Bissum-Naga.

Acerca dos manuais que o Camarada Coronel NUno Rubim precisa, deve ser difícil pois nunca os vi em 2 anos e um dia de Comissão, nem na escola Militar tivemos acesso a eles.

Os grupos geradores mais utilizados eram: 500/250 KVA, 150, 50/47,5 KVA.

No Quartel General (QG), na Central nova, havia dois Dorman de 250 KVA, com 6 cilindros, refrigeração a água por radiador e, um grupo gerador de emergência Lister de 75 KVA.

Na Central velha, existia operacional um Deutz de 12 cilindros em V, refrigerado a ar e um Lister de 50 KVA.

Na Engenharia 
 [ BENG 447] e no Hospital Militar estavam os grupos geradores maiores.

No mato, normalmente, encontravam-se geradores com potências de 50, 20 e 7,5 KVA.

As marcas Stanford e Frapil para pequenas potências até 20 KVA. As motorizações eram diversas: Dorman, Deutez, Lister e EFI produção nacional.

Em Porto Gole havia um Lister de 47,5/50 KVA, na Ponta do Inglês havia um Gerador de 20 KVA que lá fui levar com um operador de Motores Fixos 
[ e que se avariou, obrigando o pessoal a recorrer à iluminação a petróleo com garrafas de cerevja] .

Ajudei a transferir o grupo gerador, na lama, da LDP (Lancha de Desmbarque Pequena)  para cima do Unimog, a descarregar no local e a fazer ligações de potência.

Por azar, o meu camarada inverteu a polarização na excitação e o gerador ficou inoperacional.

Tive de me pirar porque fui lá desenfiado só para ajudar e para ver se o Operador vinha no mesmo dia para Bissau, mas ficaram sem iluminação e o Engenheiro ficou lá até ao próximo transporte, regressando eu a Porto Gole onde levei uma valente piçada.

Ponta do Inglês 
[destacamento do Xime, na foz do rio Corubal], iluminação? A bazucas [garrafas de cerveja, de 0,6 l] cheias de petróleo penduradas no arame farpado.

A iluminação nos aquartelamentos era feito com cibes 
[ rachas de troncos de palmeira] a fazer de postes, linhas de cobre nú de 2,5 mm2, circuito fechado em anel, lâmpadas Philips 150 Watts spot.

Os quadros eléctricos eram em baquelite, equipados com fusíveis ou disjuntores quando os havia.

Não havia uniformização nos geradores, tal como muita coisa era comprada ao sabor de quem dava melhor percentagem, mas a maioria dos aquartelamentos tinha geradores de 7,5 ou 20 KVA. (...)

 

Vd. também postes de:

26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)


Luís Graça, ilustração gráfica, Entropias (1999)


Outubro de 1941 > Execução, pelo exército alemão, de prisioneiros civis sérvios... Na sequência da morte de 22 soldados alemães, atribuída à resistência sérvia, foram executados, em represália, 2100 (!) sérvios (na maior parte, judeus, comunistas e ciganos)...


1945 > Campo de concentração de Bergen-Belsen > 19 de abril de 1945 > Guardas femininas das SS, feitas prisioneiras pelo exército britânico... Três delas serão depois condenadas à morte e executadas.

Berlim > 21 de março de 2015 > Centro de Documentação "Topografia do Terror". Localização: Niederkirchnerstraße 8 10963 Berlin, metro: Potsdamer Platz ou Kochstraße. 

Fotos: Luís Graça (2015)


A galeria dos meus heróis > 

O tio Ortiz (1906-1944)

por Luís Graça (*)


1. Partimos de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Eu e a Manuela. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar comigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguimos fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não nos víamos há muito tempo. E íamos estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa dos 100 anos do seu pai e aproveitara para rever o mano mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. Tinha uma vaga ideia que a Manuela já me falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 eu tinha andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Fui  de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. Alguns desses sítios “tocaram-me” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, com os nomes das localidades, então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos".  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O meu amigo V... (que infelizmente já morreu) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os antifranquistas radicais...

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância e sentir a tal "saudade" e perder-se no  "labirinto" de que fala o Eduardo Lourenço... Como eu e o V..., mais as nossas caras-metade, que uma noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro, chegámos a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika, e quando estávamos a montar a tenda, começámos a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em a "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena"... Hà emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis e que nos marcam para sempre... Eu, pessoalmente,  que gostava da Amália q.b., passei a ouvi-la com emoção, desde que ela morreu...  Para o V..., a Amália era uma "reaça". E o fado uma "desgraça"...

− Morreu na Flandres, na I Grande Guerra.

− Quem,  o seu avô ?!

− Sim, o meu avô materno. Na Flandres. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa.

− O meu avô Ortiz… Sou de origem basca e francesa, pelo lado da minha mãe.

− Daí o apelido Ortiz, não ?!…E quando é que vocês vieram para Portugal ?

− A minha mãe e os irmãos vieram como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola.

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a minha interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 24 anos…

− Pelo que vejo, Manuela, é uma história comprida, a da vossa família. Comprida e dramáticamente cumprida.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

− Sei do que fala, também eu fui obrigado a vestir uma farda, a pegar numa arma e a fazer uma guerra, a guerra colonial, na Guiné. Contra a minha consciência, contra os meus valores...

− Uma tia, a mana mais velha da minha mãe, morreu no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961, já não posso precisar . Barbaramente assassinada, à catanada. (Catanada, é assim que se diz ?)... Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que conhecera a tia quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos, creio que nascera em 1908. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”. Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui.

− O meu tio Ortiz, o único rapaz,  filho do meu avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos. Era o mais velho.

E depois confidenciou-me:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, acho que vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo com a ida ao Porto.

2. A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

− A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de alguma modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareci eu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História. 

A Manuela pegou nesta minha observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das nossas guerras. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, teriam a oportunidade, única, de conheceram uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensei eu... Em Angola, Guiné ou Moçambique...

− Não se esqueça – recordou-me ela – que eu ainda apanhei a “escolinha” do Estado Novo.

− Também eu, Manuela… E em boa verdade, ainda tenho saudades do bibe e do pião... Mas diga-me uma coisa: há fotos, ao menos, desse seu avô?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos, os seus tios,  o que lhes terá acontecido depois?

Tentando delicadamente, mas algo a  contragosto,  satisfazer a minha curiosidade intrusiva,  a Manuela disse-me que  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos, tendo ficado órfãos, e sendo menores, foi-lhes atribuído uma pensão de sangue do Ministério da Guerra.  Pôs-se, ao que  parece, a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria 12 ou 13 anos. A mãe, essa, já estava internada num hospício. Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra.

− Como vim, mais tarde, a descobrir, as duas famílias ainda eram aparentadas, com um trisavô comum. Daí nos tratarmos por primos… 

E aproveitou para me dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não me convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos só falavam o francês e o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do “Front Populaire”.  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de “chef de cuisine”.

Sobrevoávamos já a França, quando ela me começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe. 

Cozinheiro de profissão, militante comunista, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz teria sido preso,  em 1941,   logo a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. 

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, judeus e outros… 

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  deste campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme… Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

− A Manuela, então, não sabe em qual deles morreu o tio…

− Infelizmente, não sei, ou ainda não sei. Quando quis voltar a falar com a minha mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dois irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto. E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas... 

− Foi um ano difícil para todos.

− A minha mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas procurámos poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou sepultada na terra onde fora muito feliz.

− Se é que se pode morrer em paz – comentário meu, desastrado.

Procurei emendar, desviando o rumo da conversa e perguntando-lhe pela avó materna. Resposta algo evasiva e sobretudo seca e ríspida:

− Não sei nada dela. Pouco ou nada me contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família.

A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa (ela disse-me o nome, que não fixei) enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido. Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na sua morte. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  

– Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca.

− Uma família destroçada – comentei eu.

− A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

− A Manuela fala basco?

− Nunca falei. Nem a minha mãe. Como já expliquei, só o meu avô materno é que era basco,   Em Bilbau, comecei agora a aprender, já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialectos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os "defeitos de fabrico"... Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais "violentos" ou "truculentos" que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer insinuar...

– A ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a violência revolucionária seja da ETA ou de qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão terrorismo...

– Não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem a sua língua e transmiti-la aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados, tal como outras minorias...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos. na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, físicq e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem...

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os seus irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar em Portugal. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto. Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos “avós”. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a “baserri”, que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu primo, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

− Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da vossa família.

−Sim, a minha mãe conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus avós adotivos… Na Praia da Granja, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado comerciante de vinhos e espirituosas, grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro.

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha uma ascendência cristã-nova, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade israelita do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante”.  Foi o retrato que me fez a sua filha, já depois de chegarmos a Berlim.

3. Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes? 

Eu já conhecida de Lisboa, das “lides profissionais”. Se não erro, desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia. Ainda não havia a União Europeia nem o euro. Estamos a falar de 1986.

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (ministério do trabalho, que tutelava a área, empresas, médicos do trabalho, técnicos de higiene e segurança, Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Devo ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sei que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficámos em contacto. Reencontrávamo-nos agora, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuávamos a tratarmo-nos por você. Sentia que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estávamos os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Eu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho, se bem recordo.

Por sorte, estávamos alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que nos levava ao centro de conferências onde se realizava o nosso encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E depois ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para mim,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos nós, europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), demo-nos conta, já em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na nossa velha e adorada Europa de então. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselinni, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas à noite. Depois do jantar, ficávamos à conversa sempre que não havia “programa social”, e tínhamos o tempo por nossa conta. Já tínhamos feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais três ou quatro portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe do nosso.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-me ela, a mim, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que retomámos a nossa já longa conversa sobre o tio Ortiz, inacabada, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, eu teria a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabia ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazia críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspirava-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhei eu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

−Manuela,eu também não... Mas como vamos explicar aos nossos filhos e netos toda esta barbárie do nosso século?

Da sua vida privada, nunca me falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-me que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refractário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano lectivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”). Nunca soube se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez me perguntou pela minha família. Era uma mulher atraente-

4. Só uns dois ou três anos mais tarde, no virar do século, é que a Manuela me contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando nos voltámos a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que eu conhecera em 1981, quando a visitara pela primeira vez.

− Ah!,  sim, Berlim, 1997 ! − recordou ela.

E eu comecei por ficar feliz ao ver que ela tinha deixado de fumar... 

Afinal não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, c0nstruído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar...

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro.

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? − perguntei eu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau.  O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes.

− A imaginação, a capacidade de resistência e  abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, que nunca seremos seremos deuses, também somos capazes de nos transcender e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói grego...

E conclui o meu pensamento:

−  O seu tio Ortiz foi um herói.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento.

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua inteligência, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante o pelotão de fuzilamento: Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive la... France! [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias, o nome da minha interlocutora, que ainda está viva,  é fictício. LG]

___________

Nota do editor:

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23481: A nossa guerra em números (20): Meios e operações da FAP - Parte II: Armamento das aeronaves: o papel da OGMA e outras empresas portuguesas


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > c. 1972/74 > A avioneta Dornier  DO-27 que o ex-ten pilav António Martins de Matos (BA 12, Bissalanca, 1972/74) (nome de guerra, "Batata") também pilotou muitas vezes, sobretudo no primeiro ano da comissão. 
A Alemanha forneceu à FAP  147 avionetas Dornier DO-27, ao abrigo do acordo da Base Aérea de Beja. Algumas eram novas, outras usadas, todas as revisões foram feitas na OGMA. 

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Devido ao boicote internacional (e às pressões políticas dos nossos aliados da NATO, a par das proibições dos EUA no que dizia respeito ao uso de certas aeronaves como, por exemplo, o F-86, cedidos no âmbito do Programa de Assistência Militar), não foi fácil garantir o armamento e as munições necessárias aos helicópteros e aviões da FAP durante a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial. 

A nossa indústria de guerra  teve de encontrar "soluções criativas" (sic), tendo chegado a usar "munições de artilharia do exército, para fabricar bombas para os aviões" (Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 229).

Segundo esta fonte, uma das bombas mais usadas terá sido a bomba de fragmentação FR M/62, de 20 kg., adaptada da granada da peça de artilharia 11,4 cm, britânica.

"Na fábrica de Barcarena, foram retiradas as cargas explosivas dessas granadas de artilharia para serem adaptadas na empresa Precix e serem novamente  carregadas em Barcarena" (ibidem, pág. 229). 

O mesmo terá acontecido, mas com outras empresas ligadas à indústria da defesa,  com as bombas FG M761, de 50 kg, FR M/64, de 200 kg, e ainda as bombas incendiárias IN M/65, de 100 litros. A Precix, uma empresa metalúrgica,  especializou-se também no fabrico de espoletas.


2. No que diz respeito ao armamento, usado pela FAP, é de destacar o canhão  MG-151, de 20 mm,  que equipava os AL III (helicanhão ou "Lobo Mau").  

Foram também utilizadas metralhadoras Browning, de calibre 7,7 mm e 12,7 mm, bombas gerais e de fragmentação de 500 libras e de 750 libras, e de 15, 50 ou 200 kg; foguetes FFAR 2,75, SNEB 37 mm, etc.. Tratava-se de adaptações da indústria nacional. 

As munições de 20 cm para o helicanhão eram as únicas que se adquiriam, diretamente aos fabricantes estrangeiros, usando os circuitos normais do mercado.

A OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico), com instalações em Alverca, fez milagres nesta época. 

Foi a OGMA que fez "as grandes adaptações nacionais para a guerra em África" (Ibidem, pág. 231):  podiam-se citar, a título meramente exemplificativo:

  • os aviões Harpoon (P2V5 Neptune), aviões de luta antissubmarina, transformados logo em 1961 em  bombardeiros adaptados às condições dos trópicos; 
  • os T-6 G Texan (um avião monomotor, originalmemte de treino e instrução), provenientes de várias origens (EUA, França, RFA, África do Sul); 
  • os sete aviões B-26 Invader, comprados clandestinamente e usados em Angola e na Guiné;
  • os 147 aviões ligeiros Auster fabricados sob autorização da empresa inglesa, e dos quais 60 foram  atribuídos à FAP e enviados para o ultramar.

A Alemanha também forneceu 147 avionetas Dornier DO-27, "ao abrigo do acordo da Base Aérea de Beja". Algumas eram novas, outras usadas, todas as revisões foram feitas na OGMA. 

Estas avionetas tiveram um papel fundamental durante a guerra de África, devido à sua flexibilidade e capacidade para operar em pistas de mato,  improvisadas.  Tiveram papel fundamental em missões como o transporte de correio, frescos epassageiros, a  evacução de feridos, a observação e ligação, etc.).

Os aviões de transporte mais usados foram o C-47 Dakota e o Nordatlas, também de diferentes origens e fornecedores. 

Já os helicópteros (AL II, AL III e SA-330 Puma) eram todos de origem francesa. Entre 1963 e 1975, a FAP adquiriu 142 Alouettes III e,  entre 1969 e 1971,  13 Pumas. (Ibidem, pág. 232).

Nem a Fábrica da Pólvora da Barcarena, nem a Fábrica Braço de Prata nem a empresa metalúrgica Precix existem hoje... Resta a OGMA, ciada em 1918, e agora integrada no grupo brasileiro Embraer.

Ainda quanto a armamento, refira-se ainda o de mais três, a par do heli AL III,  das aeronaves que conhecemos bem no TO da Guiné:

  • T-6 Harvard2 + 2 metradlhadoras Btrowning 7,7 mm | foguetes 37 mm e 68 mm | lança-granada m/64 | bombas de 15 kg,, 50 kg e inendiárias de 80 kg / 100 l e 300 kg / 350 l;
  •  Fiat G-91: metradlhadoras Btrowning 12,7 mm | foguetes 75'' | bombas de 50 kg, FR 200 kg, 250 lbs, 500 lbs e 750 lbs;
  • Dornier DO 27: foguetes 37 mm | foguetes fumígenos 70 mm / 27 | Fitting L19 (Ibidem, pp. 232/233)

3. Resumem-se aqui, por anos, algumas das principais aquisições de aeronaves pela FAP, entre 1960 e 1974 (entre parênteses, a quantidade) 

  • 1960 - Nordatlas (8);
  • 1961 - T-6 G Texan (56) (+ 130,  mais tarde) | Dakota (8) (+15, mais tarde) | Nordatlas (6)| Auster (ligeiro) (99) | Dornier DO 27 (133) ( + 14,  mais tarde) | Douglas D-6 (transporte) (10) (...);
  • 1962 - Nordatlas (3);
  • 1963 - Helicópteros AL III (142)  entre 1963 e 1975) | Cessna T-37 (instrução) (30);
  • 1965 - T-6 (74) | B-26 Invader (7) | Nordatlas (14) (entre 1965 e 1970);
  • 1966 - Fiat G-91 (caça) (40) | Douglas B-26 (bombardeiro) (7);
  • 1969/71 - Helicóptero SA-330 Puma (13);
  • 1970 - T-6 (69);
  • 1971 - Boeing 707 - 3F5C (transporte, TAM) (2). 

Fonte: Ibidem, pág. 233.

Esperemos que os camaradas da FAP possam acrescentar algo mais sobre esta matéria (ou corrigir o que está escrito, se for caso disso).

_________

Nota do editor:

Último poste da série > 26 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23462: A nossa guerra em números (19): Meios e operações da FAP - Parte I: número e tipo de aeronaves: helicópteros, aviões de combate, de transporte e outros

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22935: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXV: Berlim, Alemanha, 1969








Imagens, que julgamos do domínio público, referentes a Berlim, antes da "queda do muro" (que só aconteceria, vinte anos depois, em 9 de novembro de 1989)



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo", da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. (*)

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp);  é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já mais de 300 referências no blogue.

Texto e fotos recebidos em 26/11/2021. Sendo uma viagem realizada em 1969, pode parecer um "anacronismo" publicar este texto nesta série, que é pós-Guiné, o mesmo é dizer, pós-25 de abril de 1974...Mas já aqui publicámos um outro texto do autor, ainda mais "anacrónico", sobre Hamburgo, datado de  1967. Não era fácil, todavia,  para um português, viajar nesse tempo pelos países da então "cortina de ferro", a Europa de Leste... Dada esta explicação sobre o contexto, aqui vai o texto do nosso camarada António Graça de Abreu, que desde cedo, se tornou  o "globetrotter" que conhecemos, o viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros... As fotos não devem ser dele, sendo mais provavelmente oriundas da Net, sem referência à fonte. São imagens que, todavia,  nunca mais gostaríamos de ver na nossa Europa. Vd. também os quatro postes que o nosso editor Luís Graça publicou em 2015, na sequência de uma estadia em Berlim, em março desse ano (***)


Berlin, Alemanha, 1969

por António Graça de Abreu


Ano de 1969. Venho desde Hamburgo (**), no Ford Escort na longa viagem desde Lisboa, atravessando agora tristes fronteiras de uma mesma pátria alemã, percorrendo autoestradas antigas construídas no tempo do Hitler, caminhos então modernos que tanto facilitaram a mobilidade da poderosa máquina de guerra nazi.

Antes da chegada a Berlin, ao entrar na Alemanha de Leste, a polícia e soldados da DDR (Deutsche Demokratische Republik) vasculham tudo, levantam os bancos do carro, metem-se por baixo do veículo, inspecionam, verificam, fazem perguntas após perguntas em sucessivos controles dos passaportes e dos papéis do seguro.

Chego a Berlin Ocidental, em tempos gelados de Guerra Fria. Numa transversal da Kurfürstendamm, a principal avenida da cidade, encontramos alojamento não muito caro num hotelzinho alojado num velho prédio impiedosamente bombardeado durante a 2ª. Guerra Mundial, mas restaurado, reconstruído a preceito, com cicatrizes a disfarçar meio escondidas em quase todos os patamares, esconsos e paredes. Camas confortáveis, um pequeno almoço substancial e saudável, o descanso possível após umas tantas emoções fortes.

Berlin Ocidental, cidade sitiada pela República Democrática Alemã, tem sobrevivido com dificuldade às asfixiantes tragédias da História. Por aqui respira-se alguma liberdade, o engenho e a capacidade de cada um a fazer-se, a exercitar-se na construção de milhões de quotidianos diferentes, melhores.

No terceiro dia na cidade, ida a Berlin Oriental. Tento e consigo entrar com o meu Escort pelo Checkpoint Charlie. Outra vez infindáveis controles, verificação de documentos, suspeitas de sermos uns perigosos espiões a soldo não sei bem de quem. O que vêm cá fazer? Turistas? Sim, meine Mutter, meine Schwester, eine Freundin und ich, (a minha mãe, a minha irmã, uma amiga e eu). O que querem ver? Trazem carro e tudo, porquê a viagem à Alemanha Democrática? Respondo, preencho mais papelada, lá me vou desenrascando no meu alemão, os dois anos de liceu mais um ano de estudo e trabalho em Hamburgo fazem de mim um falante nada vesgo no que à deutsche Sprache, a língua alemã diz respeito, o que também levanta suspeitas aos polícias da DDR.

Em Berlin Oriental, a cidade tem pouco trânsito automóvel, a sensação de uma grande silêncio, não a azáfama e correrias do capitalismo do outro lado do muro. Andamos uns quilómetros por dentro de Berlin Oriental, falta cor e alegria à cidade. Paramos, passeamos num jardim. Não falamos com ninguém, ninguém fala connosco. As pessoas movem-se, vão à luta à sua maneira, trabalham, mas parecem viver numa paz, numa tranquilidade instaurada por decreto.

Há ainda dezenas, centenas de edifícios por reconstruir, bombardeados pelos aviões aliados em 1945, ou esventrados nos combates de rua quando os soldados russos, e logo depois os aliados, entraram e ocuparam Berlin. O grande edifício do Reichstag (uma espécie de Parlamento), ainda em reparações, é uma assustadora sombra do passado.

Guio o carro pela avenida Unter den Linden. Ao fundo, a porta de Brandenburgo, ex-libris da capital alemã, fica neste lado oriental. Logo depois, diante da Berlin Ocidental começa mais uma vez o muro e as barreiras de arame farpado. Mandam-me voltar para trás, a estranha sensação de conduzir um automóvel numa cidade cortada ao meio pelos homens, com obstáculos, polícia e soldados vigilantes por todo o lado.

Muros, guaritas levantadas, metralhadoras prontas a disparar, as barreiras de arame farpado a dividir as duas Berlins, uma sensação de desconforto e mal estar.

Regresso a Berlim Ocidental. Na avenida Kurfürstendamm entro na Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche, ou seja, a igreja construída em 1890 em memória do Kaizer Guilherme I, brutalmente bombardeada pelos aliados num raid aéreo em 1943. Lá dentro, no que resta da nave central retalhada pela guerra, um órgão toca Johann Sebastian Bach. A música faz estremecer as paredes do templo, levanta um hino à Alemanha, enobrece o coração dos homens.

António Graça de Abreu

_________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 31 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22418: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Hamburgo, Alemanha Federal, 1967

(***) Vd. postes de

31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14424: Os nossos seres, saberes e lazeres (80): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte I) (Luís Graça)