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quinta-feira, 31 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23128: Notas de leitura (1432): "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 184 pp.), do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Tó Zé, para os amigos... Uma pedrada no charco da nossa educação judaico-cristã...


Capa do livro do nosso camarada António José Pereira da Costa, cor art ref, "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 2020, 184 pp.)



Feira do Livro de Lisboa > Lisboa > Feira do Livro > 6 de Setembro de 2020 > O autor, António José Pereira da Costa, e a representante da editora Alfarroba, na apresentação do livro "Os Velhotes" (*).

Na altura, o autor comentoum no poste P21133, de 7/9/2020 (*):

Olá Camaradas. Efectivamente, se não fossem os ex-combatentes tudo teria sido um fracasso. O Armando Pereira e a esposa são meus colegas na "Associação dos Velhos" onde eu milito e até já aprendi como se encaderna um livro.

O livro é perigoso. Falar de erotismo na 3.ª idade não é fácil e é extremamente difícil penetrar nas atitudes farisaicas e hipócritas de quem varre para baixo do tapete e consequência da nossa educação judaico-cristã. Mas isso já são outros mitos, outras lendas e futuros assuntos para debate para que para tal tiver coragem..



Foto (e legenda): © Carlos Silva (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. C
omentário do autor, inserido no poste P23117 (**)


Olá, Camaradas: Pelo rumo dos "debates", parece que estou entre os meus.

Quem quer comprar o meu livro badalhoco "Os Velhotes", sexo na 3.ª Idade ?!

Na impossibilidade de o exibir aqui (capa e foto do lançamento da obra, na Feira do Livro de Lisboa, em 6 de setebro de 2020),  peço aos editores autorização para fazer um anúncio nos posts do blog.
Dado o tema,  não me atrevi a tentar divulgá-lo. Aqui vai um "método de ataque":

1. Começar pelo prefácio. Ler atentamente. É a parte séria do livro e ela permitirá desembaraçarmo-nos de ideias a que teremos de chamar preconcebidas, à falta de um termo melhor. Na nossa idade, não temos contas a prestar a ninguém. Podemos ser "amorais" à nossa vontade. Se calhar nem a nós mesmos teremos de as prestar. Com os mais novos será diferente? Talvez...

2. Ler devagar. Um conto de cada vez e, depois... uma pausa, para o analisar e pensar. É um rico exercício mental. Nada de exploração do sucesso, a menos que… se proporcione.

3. Poderá haver alguns contos que firam a sensibilidade, dadas as situações pouco ortodoxas que descrevo. Se tal suceder, é abrir a mentalidade e a tolerância e ler com mais cuidado, mas não deixar de os ler.

4. No início de cada conto, está desenhada uma combinação dos símbolos, masculino e feminino, que permite ter uma ideia do teor do conto que se segue. Assim, o leitor não corre o risco de ser surpreendido.

5. Como se vê, não há violência no livro e nas situações que imaginei.

6. Só os personagens – às vezes – usam linguagem desbragada, mas o leitor não ouve o que eles dizem... e, além disso, é/são sempre a/as senhora(s) que toma/m a iniciativa e controlam as situações mais embaraçosas. E assim é que deve ser. São mais sensíveis, digo eu, claro.

7. Chamo a especial atenção para os contos que mais me marcaram: "Os Velhotes" (inspirado num casal com quem nunca falei, mas que decorre numa praia que bem conheço), "Velhos e Libertinos" (dois velhotes suburbanos reservados q. b. mas...) e "Aqueles Dois" (um acto de resistência num sítio onde, como se vai vendo, é cada vez mais necessário resistir). Parece-me o mais bem conseguido, embora com poucas possibilidade de acontecer. Não conheço nenhum conto deste tipo em que um dos personagens morra e o outro o chore, com saudades dos tempos passados juntos. Claro que há "A Viúva" que escrevi de um fôlego e à medida que as ideias surgiam. Só o reli, depois de "pronto". Creio que será um dos mais realistas.

8. Todas as personagens derivam de um trabalho de colagem de características físicas e pessoais(?) de pessoas que conheço. As situações provêm, como não poderia deixar de ser, da experiência da vida, da imaginação à solta e de "histórias" que ouvi contar. Falsas, normalmente ou nem tanto…

9. Está autorizado o açambarcamento para revenda. É possível dizer bem ou mal e eu agradeço uma coisa ou outra. A crítica, mesmo destrutiva é bem-vinda!...

10. Depois, é divulgar no Facebook, Twitter, Instagram, e entre o pessoal cujos e-mails, eu não tenho, mas tu tens.

Um Ab.
António J. P. Costa 

29 de março de 2022 às 23:13

II. Sinopse do livro (***):


Dália é viúva. Casada durante quase cinquenta anos, a perda do marido foi um golpe […] que a vida lhe vibrou. Há umas noites sucedeu o inevitável: sentiu vontade de sexo. Já tinha sentido umas sensações, mas recusara, esmagando a necessidade e reprimindo o desejo. Porém, ontem, ao fim da tarde, aconteceu…

Maria ganhou coragem e foi procurar a bancada de carpinteiro. O coração bateu‑lhe fortemente quando a encontrou. Passou as mãos pelo tampo bem liso [...]. Então, não pôde conter‑se e chorou, chorou muito. Soluçou mesmo. Era ali que se possuíam num abraço violentamente delicioso. Num exercício de forças combinadas, Adriano sentava‑a na bancada e […] penetrava‑a com aquela gentileza que ela sempre tinha apreciado. Depois, vinha o abraço, bem apertado, e o beijo terno e constante…

Ao acordar, olharam‑se bem nos olhos e Pikenina não se conteve e beijou os lábios da amiga, ao de leve, mas de modo a senti‑los bem. Fofa pegou‑lhe nas faces e retribuiu. Não, não eram nenhuns devassos.

Eram um vulgar casal de sexagenários.

(Fonte: Alfarroba editora)


O livro pode ser adquiro diretamente através de pedido ao autor:

email: toze.pereiradacosta@gmail.com

Preço de capa  (inclindo portes do correio):
12,78 €

O leitor interessado terá de indicar a morada para onde enviar a obra. O autor, por sua vez,  comunicará depois a conta bancária para efeitos do pagamento.



III. Sobre o Autor 
(foto à direita, cortesia da editora

(i) é natural da Amadora (1947);

(ii) cor art ref; terminou  a sua carreira activa como Director da Biblioteca do Exército, em Dezembro de 2011;

(iii) ex-alf art, na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art e cmd das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74); 

(iv) é um histórico do nosso blogue, tem 175 referências;

(v)  é membro da Tabanca Grande  desde 13/12/2007; 

(vi) é autor da série "A minha guerra a petróleo"(, depois transformada em livro, editado pela Chiado Books, Lisboa, 2019, 192 pp.) tem um belíssima e valiosa colecão de arte e artesanato guineenses (fula, mandinda, bijagó...) e tem-na partilhado connosco (*): base para copos, bases para copos, pratos e terrina, cachimbos, "cirans", "cafalas", chapéu fula, cinto fula, garrafas forradas a couro, tabuinha com caracteres árabes...

(vii) é autor de vários livros sobre história e arquitetura militares, de um modo geral, indisponíveis no mercado:  A cidadela de Cascais (2003); O Palacete do Camarista Real (2011); Castro Marim: Dos Forets não reza a história (2012)... Os dois primeiros são edições do Estado Maior do Exército.



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22999: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (11): em dia de namorados, relembrando uma peça do falar alentejano que é uma obra-prima de marotice e de saudável bom humor... (Manuel Gonçalves, ex-alf mil manut, CCS/ BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73)


Capa do livro "Dicionário de falares do Alentejo", de /Vítor Fernando Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro. - 3ª ed., muito ampliada ( Lisboa;: Âncora, 2013. - 294 p., a 2 colunas,  ISBN 978-972-780-420-7). VItor Fernando Barros, transmontano, professor do ensino secundário,  é aind autor de outros livros que podem interessar os nossos leitores, tais como: "Dicionário de Falares das Beiras", "Dicionário do Falar de Trás-os-Montes e Alto Douro", "Dicionário de Português Europeu para Brasileiros e vice-versa".


1. O
nosso querido amigo e camarada, transmontano de Bragança,  Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Manut da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), mandou-nos há dias uma deliciosa peça ilustrando o "falar alentejano" que já se perdeu (ou está-se a perder) à medida que o rolo compressor da modernização e da globalização mata o que é diversidade cultural, incluindo os nossos falares, de Norte a Sul do país, passando pelas regiões autónomas...  Já tenho saudades de ver e ouvir gente, na televisão com sotaque tripeiro, alentejano ou açoriano... Ou de ouvir falar termos e expressões que transgridem a norma cula d língua portuguesa...e que só a enriquecem.

Adicionalmente, em dia de Namorados, esta peça é uma obra-prima de marotice e de saudável bom humor, pese embora o traço grosso da caricatura da mulher alentejana e do padre católico perdido em antigas terras de mouros...  Sem "tradutor", a gente ficava a "ver navios"... Afinal, quantas "línguas" se falam em Portugal ? 

O Manuel Gonçalves não refere a página em que vem esta peça no "Dicionário de Falares Alentejanos", livro que não tenho mas que  vou adquirir. Obrigado, Manel, pela tua atenção. Esperamos não ofender ninguém, a começar pelos alentejanps e os católicos... De qualquer modo, é de "caranço" (ternura) que todos estamos a precisar, nos dias que correm, e nas nossas idades... (LG)


Data - quinta, 10/02/2022, 15:42 
Assunto - Alentejano vs Estrangeirismo

A língua portuguesa é muito rica, não há dúvida... Quando toda a gente fala por estrangeirismos bacocos, neologismos ou no vaidoso jargão técnico, sabe bem lembrar a bela e rica linguagem popular alentejana contida neste delicioso e maroto texto. Deliciem-se. 

Confissão Alentejana 

 Louvado seja Jesus Cristo!

 − Louvado seja sempre 

  Há quanto tempo não te confessas, minha filha ?” 

  − Vai fazer um mês, Senhor Padre.

  Ó minha filha, então porquê? Costumas vir todas as semanas. O que te apoquenta?
 
 −  Senhor Padre, nem sei como lhe dizer. Anda um assunto aberrundando-me, mas...

 − Procura-me o que quiseres, filha. Não deves ter melindres de desabafar com o teu confessor.

 − O meu noivo, Senhor Padre... Está em alas para experimentar... O que as pessoas fazem depois de casadas...

 − Agora cá! Mas vocês não são casados, valha-me Deus! Não podem ir contra as leis de Deus, filha! Querem casar ou querem ajoujar-se?

    Casar, Senhor Padre. Mas ele diz que entre noivos não haveria de ser grande pecado.

  Isso é lá a julgadura dele. Mas é a ele que cabe estabelecer a lei de Deus? Que pachouvada! Tu tens de ser rabeta e ter tinório.
 
 − Então, como devo fazer? Não quero que ele fique alcanchofrado comigo. E Senhor Padre, nós estamos muito encegueirados um pelo outro. Ele anda desinsofrido.

 − Eu entendo-te, filha. O caso está bichoso. Um homem não é de ferro e uma moça também não. Se não existissem esses desejos ninguém casava. Tal como se não existisse o paladar ninguém comia e morríamos todos. Acontece que o ser humano quando é cristão tem de seguir as boas leis de Cristo. Não nos devemos afastar do Evangelho. Atinta nas minhas palavras, pois elas são para teu bem. Mas para que te possa aconselhar melhor deves contar-me tudo o que vós tendes feito durante o vosso derrete.

 −  Como assim, Senhor Padre?

    Tudo. Conta-me tudo. Já o viste à espervela? Ele toca-te?

     Ai Jesus! Que entalo!

    Mexeu-te nas lanteriscas? Não sejas marreta e conta-me.

      Senhor Padre, quando estamos beijando ele quer que lhe mexa no martelinho. Mas eu não sei se devo. Mas nunca o vi nadavau.

  Ele é merlo mas tu terás de ser mais mérrula. Não podes albardar isso. Tal mimo desperta os apetites do verdugo e num flaite estás em privança. Não te esqueças que podes ficar embaraçada. Já viste que papel seria?

 − Não quero isso, Senhor Padre. Que dava um patatum à minha mãe. E o arrecuão que o meu pai me daria até me causa agasturas.

   Tem calma, filha. Tenta apressar a boda. Podes beijá-lo com caranço mas sem escofiar as lanteriscas do moço. Não tomes isto como um recado. És esgalhada, empapoilada e tens andado a aziá-las. Ele também te mexe na rola?

    Ai, Senhor Padre!

  Se não me contas a mim hás-de contar a quem? Dou-te bons conselhos no sentido de evitar a gadela. Todo o homem é pirata. Sei que não és moça alvarina. Confia no teu confessor. É para tua boa orientação, filha. Apressa a boda. Mexeu-te na pinta? Por cima ou por baixo dos froxéis?

  Por baixo, Senhor Padre...

  − Não  é galinha-morta esse teu noivo, não! E enquanto isso acontecia estavas dando-lhe galanduchas no seu romão-cego ?

 − Sim, Senhor Padre...

 Nâo  é nenhum mata-formigas, não. Não ficaram almareados? Conseguiram parar a tempo?

 − Sim, Senhor Padre... Mas está ficando cada dia mais difícil. Dá-me a espertina de noite.  Sinto uma calorina pelo corpo todo. E passo o tempo afofando estar com ele outra vez.

   Apressa a boda! Não te deixes enodoar, filha. A vila está cheia de trogalheiras sempre à espreita. Fazem de ti uma bagaça e lá vai o noivado para o maneta.

 − Isso  é que nunca! Dava-me uma travadinha que nunca mais me recompunha. Vou ter cautelas, Padre.

 − Agora  diz três Avé-Marias e o acto de contrição. Para a semana voltas cá. E tornas a contar-me tudo.


Aberrundar: atormentar 
À espervela: à mostra, a nu 
Afofar: achar gosto antecipado a qualquer coisa 
Agasturas: ânsias 
Agora cá!: não penses nisso! 
Ajoujar-se: amancebar-se 
Alas (Estar em): estar ansioso 
Albardar: permitir 
Alcanchofrado: zangado 
Alvarina: leviana 
Arrecuão: descompostura 
Atintar: ver bem 
Bichoso: difícil de resolver 
Calorina: calor 
Caranço: ternura 
Derrete: namoro 
Desinsofrido: impaciente 
Embaraçada: grávida 
Empapoilada: bem vestida, garrida 
Encegueirados: apaixonados 
Enodoar: manchar a reputação de alguém 
Entalo: aflição 
Escofiar: acariciar 
Esgalhada: airosa, formosa 
Estar a aziá-las: estar a pedi-las 
Flaite (Num): num instante 
Froxéis: roupa interior de senhora 
Gadela: cópula 
Galinha-morta: tolo 
Julgatura: opinião 
Lantriscas;  partes íntimas 
Marreta: teimosa 
Martelinho: pénis 
Mata-formigas: parvo 
Merlo: esperto 
Mérrula: astuta 
Nadavau: nu 
Pachouvada: asneirada 
Papel: escândalo 
Patatum: chelique 
Pinta: vagina 
Pirata: malandro 
Procurar: perguntar 
Recado: repreensão 
Romão-cego: pénis 
Rola: orgão sexual feminino 
Tinório: muito juízo 
Verdugo: homem musculoso 

Fonte: Adapt. livre de Dicionário de falares do Alentejo / Vítor Fernando Barros, Lourivaldo Martins Guerreiro. - 3ª ed., muito ampliada. - Lisboa : Âncora, 2013. - 294 p., a 2 colns ; 23 cm. - Bibliografia, p. 291-294. - ISBN 978-972-780-420-7 (Com a devida vénia...)

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21584: Notas de leitura (1326): família, casamento e sexualidade, comentário de Cherno Baldé a uma das "Estórias cabralianas" ["Cabral, salvador das bajudas desfloradas"], da autoria de Jorge Cabral (Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 93-94)



Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. (Preço de capa: 10 €). 




 Índice

O livro (*) pode ser adiquirido de duas maneiras:

(i) diretamente, na Livraria Leituria (Rua José Estêvão, 45 A, Pascoal de Melo / Jardim Constantino, Lisboa). preço de capa: 10 €

(ii) "on-line", em www.leituria.com: envio pelo correio: 10,00 €, mais 0,90 € de expedição; pode ser pago por multibanco, transferência, PayPal, etc.



1. Como já aqui dissemos em tempos (*), o "alfero Cabral" trouxe ao nosso blogue, à nossa tertúlia, à nossa caserna virtual, hoje Tabanca Grande. algo que podemos descrever como sendo o nosso lado mais solar, alegre, romântico, maroto, brejeiro, provocador, irreverente, desconcertante, descomplexado, histriónico, humorístico, burlesco, pícaresco, saudavelmente louco, próprio dos verdes anos (não é por acaso, que são os jovens que matam e morrem nas guerras)... Mas, neste caso, a guerra não foi só "sangue, suor e lágrimas"...

Finalmente ele deu à estampa o 1º volume das suas já famosas, aqui no blogue, "Estórias cabralianas". E no prefácio que lhe escrevi (**), com todo o gosto, eu digo que, para além do competente militar, alf mil at art, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71), ele  foi o que mais nenhum de nós foi em simultâneo: "homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais." (p. 10). 

E tudo isto, sem nunca se ter batido ao louvor, à medalha, à cruz de guerra... Nem à simples comenda!

Bem, uma das estórias que eu agora reli, deliciado, fez-me recuar no tempo, ao relembrar-me  o anúncio comercial que um dia apareceu cravado no poilão da Tabanca de Fá Mandinga, à entrada do destacamento: "Alfero poi catota noba, dam trez bintim" ["Alferes põe catota nova, dá os três vinténs", em crioulo de caserna]... 

Não sei se o comandante de batalhão, a que ele estava adido [,primeiro o BCAÇ 2852 e depois o BART 2917], algum dia passou por lá e deu conta da tabuleta.  Mas ainda bem que não, porque teria que meter explicador...

Sei que não foi o melhor negócio da vida do "alfero Cabral", porque sempre o conheci como sendo um homem honesto, feito à semelhança e imagem de Deus, "pai dos orfãos e defensor das viúvas", incapaz de tirar proveito da miséria alheia... E, como advogado, trabalhou muitas vezes "por bono"...

Terá sido, isso sim, um das muitas boas ações, de natureza psicossocial, que  ele levou  a cabo no CTIG, nas tabancas à sua guarda, sempre perfeitamente alinhado com o espírito e a letra da política spinolista "Por uma Guiné Melhor"... 

Sendo eu  seu contemporâneo e visita frequente dos seus destacamentos (Fá Mandinga e depois Missirá),posso atestar duas coisas, por mor da verdade e da minha honra:

(i) nunca vi por lá nenhuma bajuda, bonita ou feia, com ar infeliz; 

(ii) quando fui gerente da messe de Bambadinca (tocava um mês a todos...), nunca arranjava galinhas (e muito menos ovos) nas suas tabancas... Mistério ?!...Só agora percebi porquê: o "alfero", que era também o "chefe da tabanca", tinha dado ordens terminantes às "mulheres grandes" para manter sempre um elevado "stock" de galináceos e de ovos, disponíveis para o supremo sacríficio das noites de núpcias...

Por tudo isto, recomenda-se vivamente a (re)leitura destas pequenas obra-primas (***) que é uma aperitivo e um convite para a compra e leitura integral do livro.


2. Estórias cabralianas > Cabral, salvador das bajudas desfloradas [, título original: "Alfero Cabral põe "catota nova"], pp. 93-94 [, há erro de paginação no índice]

por Jorge Cabral


Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O despacho do Exmo. Comandante do CAOP Dois [, com sede em Bafatá,] referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”.

Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha…

Entre Fulas, Mandingas e Beafadas, casar saía caro [, originalmente: "as mulheres eram compradas"], alcançando-se verbas elevadas. Cheguei a arbitrar casamentos, cujo dote atingiu os trinta contos! Claro que era exigida a virgindade, que às vezes havia desaparecido… Era então que o Alfero "odjo grosso" era procurado para remediar o que parecia irremediável.

Quanto ao teste pré-matrimonial, a cargo das mulheres grandes, que utilizavam um ovo (!), a questão resolvia-se, com alguns pesos.

O mais difícil era a prova do sangue no lençol, que devia ser exibido no dia seguinte à cerimónia. Equacionado o problema, adoptei uma solução que sabia já ter sido usada entre outras gentes com sucesso. Comprei em Bafatá pequenas esponjas, as quais, embebidas em sangue de galinha, e metidas no local apropriado, deram um resultadão.

Não houve mais Bajuda que não casasse em total e absoluta virgindade e confesso que me dava um certo gozo assistir às manifestações de júbilo dos viris maridos, no dia seguinte aos casamentos, no meio da algazarra da Tabanca.

Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero "poi catota noba, dam trezbintim".



Texto: © Jorge Cabral (2020). Todos os direitos reservados


3. O notável comentário, ou  crítica, mais de natureza socioantropológica, feito na altura [2013] pelo nosso Cherno Baldé [, hoje nosso assesssor para as questões etnolinguísticas], merece aqui ser publicado, na montra principal do nosso blogue (*):

(i) Comentáriodo Cherno Baldé:

Caro "Alfero Cabral",

Bonita descrição de factos de uma realidade vivida. O homem é plural.

O conceito da virgindade e a prática de testes de comprovação entre os povos islamizados da África deve ter as suas raízes nos antigos usos e costumes árabes.

Não concordo com o uso da palavra "compradas". Aqui fica melhor falar de dote, porquanto o valor total dos bens com que a noiva é dotada (o seu capital inicial) é sempre superior ao pretenso "valor da compra" e, em caso de incompatibilidade comprovada, a noiva é livre de voltar a casa dos pais e, se for por justa causa, a familia da mulher não é obrigada a devolver o dote ou valor da "compra".

 
(ii) Resposta do Jorge Cabral:

Eu sei, Cherno. Mesmo em Portugal existiu o dote. E, se consultarmos o velho código civil, lá encontramos o regime dotal. Quanto à virgindade, a falta dela, conduzia à anulação do casamento...Outros tempos...
 
(iii) Novo comentário do Cherno Baldé:

Obrigado por concordar comigo, obrigado pelo bom humor e não esqueça de fazer a devida correcção [,o que foi feito pelo autor...] antes da publicação do grande "best-seller" que se adivinha com as Estórias Cabralianas.

Como dizia o outro Cabral, as manifestações culturais são sempre o produto de uma época (tempo) e de um espaço bem determinado.

Desde criança que não me sentia bem na pele de um nubente fula por causa destas "provas" materiais a quente, que me pareciam humilhantes, ridiculas e injustificadas do ponto de vista humano (social) e económico (por causa do desperdício).

Assim, muito cedo, comecei a pensar numa estratégia para não me sujeitar a estas práticas que considerava caducas.

Quando voltei dos estudos, pensei que podia dar a volta, convencendo a minha namorada fula para um casamento discreto, sem barulho e sem a habitual cerimónia. "Niet!", ela, ao princípio concordou, mas rapidamente mudou de ideias, influenciada pela familia e colegas. Ela, uma menina ainda "virgem" (o que não era verdade), não podia ir a casa do seu homem assim às escondidas como se fosse um embrulho, nunca.

Com este primeiro desaire, compreendi que devia matar os germes do tribalismo que habitavam em mim, da mesma forma que habitam um pouco em cada Guineense, e ultrapassar os esteréotipos "raciais" alterando os gostos e as convicções interiorizadas na mente, como quem toma medicamentos amargos para sarar uma doença crónica mas curável. Mudei de perspectiva e comecei a ver as mulheres com outros olhos.

Foi assim que comecei a namorar com a minha actual mulher e companheira, com a qual vivo há mais de 20 anos. Não estando sujeita a mesma pressão social das mulheres fulas, ela aceitou, sem dificuldades, a minha proposta.

Com ela consegui fugir da exposição pública da nossa intimidade, mas em contrapartida fui obrigado (eram as suas condições) a formalizar três casamentos: Apresentação do "Cabaz" à familia (o pacto da etnia Papel, da parte dos pais), "amarra" (pacto muçulmano para satisfazer a parte materna - Nalú- e a minha familia) o casamento civil junto ao Tribunal com escritura e tudo.

No computo geral, acabei por pagar mais caro, financeiramente, do que seria normal e, apesar de tudo, ainda é cedo para concluir que a minha decisão foi acertada, pois o casamento misto, na Guiné e em qualquer outra parte do mundo, é um desafio com muitos imponderáveis. Foram muitas as vezes que surpreendi a minha esposa a questionar a honestidade do pacto que esteve na base do nosso casamento e, as vezes confessa para as amigas: "Se eu soubesse que estava a tratar com um economista, educado no mundo comunista..." enfim, com muitos "ses" e "istas" no meio de dúvidas e interrogações.

Na altura, a minha familia discordou, a minha mãe barafustou, mas como não tinham que pagar nada, acabaram por aceitar.

E tudo por querer fugir do barulho da multidão de mulheres curiosas (são as verdadeiras guardiães da tradição)e 5 minutos de stress sexual com truques e "mesinhas" a mistura para a perpetuação dos usos e costumes e, também, para a manifestação da virilidade masculina de ser homem, "macho". (****)
 
___________

Notas do editor:


quarta-feira, 29 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4757: Poemário do José Manuel (29): Como eram belas as bajudas que conheci...

Guiné > Região de Tombali > Simpósio Internacional de Guiledje > Visita ao sul > 3 de Março de 2008 > Imagens, eternas, do Rio Corubal: rápidos do Saltinho (a primeira, de cima) e as esbeltas lavadeiras.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (1972/74) > O Zé Manel, ou o Josema (pseudónimo literário), que durante a sua comissão na Guiné escrevia todos os dias um poema... Infelizmente, destruiu a maior parte deles... Salvaram-se umas escassas dezenas, que têm vindo a ser aqui publicados (*)...

Poema enviado em 3/4/2008. Republicaçção. Série Poemário do José Manuel (**)

Comentário de L.G.:

Da Quinta da Senhora da Graça vêm-nos boas e más notícias: boas notícias dos néctares que o nosso camarada Zé Manel, mais a Luísa, e mais o seu talentoso enólogo Vasco Lopes, por acaso filho de ambos, continuam a produzir e a arrecadar prémios; más notícias, por outro lado, no que diz respeito ao famoso baú da avó, na Régua: mais poemas "cá tem"...

Resta-me ir ao rabisco, como se diz na minha região, o Oeste estremenho... Neste caso fui 'repescar' um poema já publicado, mas que passou despercebido, por que ia numa molhada (como aconteceu aos primeiros postes)... Os poetas têm mais liberdade de (re)criação do que nós, pobres editores deste blogue... Em todo o caso, já no píncaro do verão e nas vésperas de partida para as férias de Agosto (para os profs como eu, o mês de férias por excelência), aqui fica uma bela sugestão poética do Josema... É também um reforço da ideia de que, no nosso blogue, não há tabus (ou não deveria haver): por exemplo, falar de amores e desamores em tempo de guerra... Que também os houve, lancinantes, impossíveis, dramáticos, grotescos, cafrealizados, passageiros, incorrespondidos, platónicos, mercantis, sofridos, gozados, curtidos... Amores de verão, como os dos estudantes ? Amores de cais, como o dos marinheiros ? Amores com múltiplas barreiras, a começar pela guerra e o choque de culturas ?... Amores livres como a liberdade livre de que fala o António Ramos Rosa ?... Que respondam os poetas e os amantes...(LG)


Como eram belas
as miúdas que conheci
as amigas as amantes
as de amores realizados
as de amores imaginados
as que ficavam distantes
todas todas
todas sem excepção
quero beijá-las quero amá-las
para matar a solidão
não há raparigas más
não existem rostos feios
só vejo corpos esbeltos
só vejo pernas e seios

Bissau 1974

josema

__________

Notas de L.G.:

(*) Sobre o José Manuel Lopes, vf. poste de 3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3165: Os nossos Seres, Saberes e Lazeres (6): Com o José Manuel, in su situ, um pé no Douro e uma mão no Marão (Luís Graça)

(**) Postes anteriores da série Pomeário do José Manuel

2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4451: Poemário do José Manuel (28): Matar ou morrer ? Não...


11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4011: Poemário do José Manuel (27): Um ruído vem do céu / e há cabeças no ar, / hoje é dia de correio...

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3884: Poemário do José Manuel (26): O regresso a Mampatá, 35 anos depois...

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3787: Poemário do José Manuel (25): A Morte

17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3468: Poemário do José Manuel (24): Sabes o que é morrer... ?

9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3289: Poemário do José Manuel (23): Naquela mata o silêncio magoa...

23 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3145: Poemário do José Manuel (22): (...) Como os dias passam devagar / Contados a riscar um calendário...

22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3084: Poemário do José Manuel (21): O recordar dos sentidos: como é bom ver, sentir, ouvir, cheirar, saborear, falar...

9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3010: Poemário do José Manuel (19): Aqueles assobios por cima das nossas cabeças...

22 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2973: Poemário do José Manuel (18): Não se morre só uma vez...

15 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2946: Poemário do José Manuel (17): A Companhia dos Unidos

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2911: Poemário do José Manuel (16): Saudades do Douro e do Marão...

25 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2884: Poemário do José Manuel (15): Dois anos e alguns meses

17 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2852: Poemário do José Manuel (14): É tempo de regressar às minhas parras coloridas...

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2844: Poemário do José Manuel (13): A matança do porco, o Douro, os amigos de infância, os jogos da bola no largo da igreja...

9 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2824: Poemário do José Manuel (12): Ao Zé Teixeira: De sangue e morte é a picada...

2 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2806: Poemário do José Manuel (11): Até um dia, Trindade, até um dia, Fragata

24 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2794: Poemário do José Manuel (10): Ao Albuquerque, morto numa mina antipessoal em Abril de 1973

19 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2776: Poemário do José Manuel (9): Nós e os outros, as duas faces da guerra

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2757: Poemário do José Manuel (8): Nhacobá, 1973: Naquela picada havia a morte

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2739: Poemário do José Manuel (7): Recuso dizer uma oração ao Deus que te abandonou...

5 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2723: Poemário do José Manuel (6): Napalm, que pões branca a negra pele, quem te inventou ?

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...


segunda-feira, 27 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

Guiné > Zona Leste > Fajonquito > 1964 > Um poilão centenário... Na foto, o irmão do nosso camarada Tino Neves, Sérgio Neves, Fur Mil Mec Auto, que pertenceu à CCAÇ 674 (1964/66) (*) ... Esta subunidade terá sido a primeira passar por Fajonquito (**)... Estranhamente, temos pouca documentação fotográfica sobre Fajonquito... Por outro lado, não têm aparecido no nosso blogue camaradas pertentes a subunidades que tenham passado por Fajonquito, entre 1970 e 1974. Uma delas é CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884 (1972/74). Esperemos que o nosso Chico encontre malta do seu tempo, nomeadamente de Fajonqito, 1970/74...

Foto: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.

1. Mais um texto do Cherno Baldé, membro da nossa Tabanca Grande, autor da série Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (aqui na foto, à esquerda).

Nascido em Fajonquito c. 1960, viu em 1965, em Cambaju, os primeiros homens brancos; aprendeu as primeiras letras, em português, com os militares portugueses. Depois de 1975, foi para Bissau, licenciou-se na Ucrânica em Planificação e Gestão Económica, tendo feito no inícios os anos 9o uma pós-graduação em gestão, em Lisboa, no ISCTE; vive em Bissau, onde trabalha no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau, onde é director do gabinete de estudos e planeamento

É casado desde 1992 com a Geralda Santos Rocha, natural de Bissau.(**)


2. Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (8) > FAJONQUITO (1970 – 1975)

No início dos anos 70, Fajonquito é quase um burgo com muitos milhares de almas. Aqui estavam misturadas várias comunidades. Diferentes subgrupos da comunidade fula (Fulas-pretos, Fulas-forros, Futa-fulas), Mandingas (ou do que restava desta comunidade em consequência da guerra), algumas famílias Balantas, Saracolés, Manjacas e mesmo Bijagós que o comércio do amendoím e a guerra tinham trazido consigo.

O número de Fulas-pretos era maioritário em Fajonquito e seus arredores. A convivência era pacífica mas tensa com muita desconfiança e medo à mistura. A garantir esta convivência de circunstância estavam as autoridades tradicionais, as milícias cujos chefes saiam entre pessoas de confiança ou famílias dos chefes tradicionais e uma companhia de tropas portuguesas comandadas por um Capitão, que de resto, a bem dizer, pouco se metia na vida civil da aldeia.

O ambiente era tão diferenciado quão diferente era o tamanho da aldeia, o número de tropas e o mosaico étnico, social e cultural. O estado de alerta era permanente mas num nível fraco e muito dependente dos postos mais avançados situados nos quatro pontos cardeais: Sare-Wali, Cambaju, Sare-Djamaram, Suna, Cantacunda.

Aqui os acontecimentos da guerra estavam mais relacionados com as deslocações (minas e emboscadas nas estradas), particularmente a estrada para Cambaju, ou ainda as grandes operações para o Oio (Kola-Carresse) que mobilizavam tropas de outros ramos vindas de Bissau, Bafatá ou Bambadinca. Nessas ocasiões nós acompanhávamos tudo até a saída do último soldado. Via-se pelo semblante que o estado de espírito dos que iam para a frente não era muito alegre, salvo raras excepções. Os da retaguarda, invariavelmente, carregavam obuses ou as granadas das bazucas, levando a sua arma nas costas. Na nossa opinião de crianças, isto era das coisas que um soldado não devia fazer.

Entretanto, no meio da população civil e sobretudo a malta jovem, a descontracção era visível e reinava um ambiente de festa e paródia nos fins-de-semana com futebol à tarde e baile de gira-discos à noite. A festa era sobretudo afro, como diziam na época, mas nunca faltava a presença de soldados portugueses, vestidos à paisana ou mesmo fardados à procura de diversão ou à cata de bajudas.

A presença das milícias locais era cada vez menos suportável entre os homens adultos. Eles roubavam as mulheres mais jovens e as bajudas da aldeia, roncando com suas fardas apertadas ao corpo como faziam os comandos africanos e com o dinheiro da cola aos pais que os outros jovens não tinham, com excepção dos professores, claro. O conflito arrastava-se em surdina mas as autoridades, de forma geral, controlavam a situação. De vez em quando transferiam os mais recalcitrantes.


O quartel de Fajonquito: um autêntico fortim

Em Fajonquito, foi difícil conseguir entrar no quartel. Comparado com Cambaju isto aqui era um autentico fortim, com sentinelas nas duas portas de entrada e arame farpado de todos os lados, confeccionado tão meticulosamente que mesmo um gato não conseguia penetrar. Notava-se que o número de tropas era muito maior mas pareciam menos amistosos.

Algumas crianças entravam e saíam mas eram sobretudo mulheres solteiras e meninas que o faziam. Eram lavadeiras ou lava-tudo, como as más-línguas lhes chamavam. O movimento de viaturas junto à saída era permanente e havia de todos os tipos, desde o pequeno Jeep do Capitão ao imponente Berliet Tramagal que esmagava as minas nas picadas, como diziam as crianças. Também havia o Unimog e o Wheels [?]. Este último, era o nome dado pelos populares, ao tipo de veículo pequeno, parecido com o Unimog. Normalmente as pessoas civis detestavam este tipo de veículo devido aos solavancos que dava nas estradas. [, Wheels era um jipe, o Cherno deve querer referir-se o burrinho, o Unimog 411].

Na primeira tentativa de entrar pela porta de armas levei com um pontapé do sentinela. O primeiro que, por sinal, seria seguido de muitos outros. Este primeiro doera a valer tendo batido com a cara no chão, pois ainda não tinha aprendido a técnica de os receber ou esquivar. Mais tarde, o desafio seria de não só saber esquivar-se mas ser capaz de identificar o perigo de longe.

A maior ameaça dentro do quartel eram os pontapés que podiam vir de todos os lados. As melhores surpresas eram os pedaços de pão com marmelada ou melhor ainda com chouriço. Quando tinha a sorte de conseguir aqueles chouriços vermelhos, tirava o pedaço dentro do pão e metia-o dentro do bolso assim, para o comer aos pedacinhos durante muito tempo, longe dos olhares dos outros, com aqueles arrotos saborosos.

Um dia a minha avó, que era intrometida e gostava de controlar a vida dos outros, disse a minha mãe:
- Olha, filha, toma cuidado com o Cherno Abdulai, pois ele anda metido há tanto tempo no meio desses descrentes que já cheira a carne de porco.

Era esperta a minha avó que, certamente, teria encontrado um daqueles pedacinhos de chouriço nos meus bolsos. Quando a queria provocar, trazia do quartel, a massa de esparguete. Na opinião dos mais velhos, os esparguetes eram bichos (germes) da raça das minhocas que os brancos secavam e quando as metia dentro da boca todos fechavam os olhos horrorizados e fugiam para não ver a insuportável cena. Por motivos religiosos o meu pai proibia a entrada da sopa dentro da casa. As únicas coisas que admitia eram as latas de sardinha ou a Coca-Cola.



O único fula-forro no meio do grupo

Passei os primeiros meses a familiarizar-me com os colegas. Por força do meu talento com a bola consegui entrar facilmente no grupo de elite da aldeia, com Sambaro Djau à testa, o chefe mais tirânico que conheci em toda a minha vida. Se acontecia a equipa perder com outra, ele embirrava com toda a gente e maltratava os mais fracos como era o meu caso. Se acontecia a equipa ganhar ai, em vez de satisfação, ele era cometido de uma raiva doentia e sempre inventava um outro desafio desta vez de boxe ou coisa parecida, entre os elementos da equipa, para nos arreliar até às últimas. Nós o detestávamos mas ele continuava a ser o chefe e ditava as regras no grupo.

Eu era o único fula-forro do grupo por isso sofria de uma dupla opressão. Era odiado por ser fula-forro, a classe dominante no regulado mas também por ser filho de um logeiro, logo de uma família que não conhecia as dificuldades comuns de uma existência bastante dura na época.

Alheio a esta adversidade de que não tinha consciência, lutava diariamente para merecer respeito e conquistar um lugar entre aqueles que no seu subconsciente detestavam tudo o que eu representava. Tinha um irmão mais velho (o Carlos) com quem partilhava as aventuras desde sempre mas que, sendo mais cuidadoso que eu, nunca se tinha metido no meio desses grupos de aldeia.

Mais tarde juntou-se ao nosso grupo o Camões. O seu nome era Suleimane mas logo passou a ser o nosso Camões pois por qualquer motivo quando olhava para alguém, fechava ligeiramente um dos olhos. Foi o Magalhães, um condutor, que lhe deu o nome, e nós pegamos porque era mesmo divertido. No incio ele detestava mas com o passar do tempo e a insistência dos colegas não tinha outro jeito. No nosso entender, todos os zarolhos eram Camões, porque o próprio o era, nada mais normal na cabeça de uma criança da época.


A hierarquia dos tugas, segundo o Camões

O Camões era muito bom observador, e ele ajudou-nos a dar os primeiros passos na vida de rafeiro que era a nossa no quartel. Ele nos ensinou com mestria as técnicas de identificar as ameaças e oportunidades e de fazer frente aos perigos. A lição começava na identificação do perigo latente a partir do simples ambiente do momento, a fisionomia dos soldados ou a sua maneira de andar. Mas, o grande problema é que ele via perigo em quase tudo, o que tornava impossível apreender e aplicar todas as técnicas do seu manual de rafeiro.

Entre os maus e mais perigosos, segundo a tabela de Camões, figuravam: Os soldados altos e esguios, os baixinhos e magros, os cabelos ruivos, os de andar apressado, os olhos de gato, os solitários, os alcoólatras, os melancólicos, os excessivamente asseados e aprumados, os bigodatos, enfim, quase todos. Nesta sua classificação, os bons (melhores) eram sempre os atletas (não muito altos, não muito baixos, não muito magros, nem gordos, sem bigodes ou bigodes curtos, os morenos etc.). Nesse grupo entravam os futebolistas e os vagabundos (inofensivos sem uma característica especifica) que passavam a maior parte do tempo metidos aldeia adentro ou a caçar pássaros na orla da bolanha com um bando de crianças.

Nas especialidades, ele preferia os homens das equipas de apoio ou da logística, como sejam os vagomestres, cozinheiros, condutores, mecânicos, pessoal dos combustíveis, dos correios, das transmissões etc. Aconselhava a todos que o quisessem ouvir, ficar longe dos operacionais ou dos tigres, como ele os chamava.
- Esses são assassinos, fujam deles!... - dizia o Camões, tentando fixar-nos com aquele seu olho esmiuçado.

Os oficiais não entravam nesta tabela classificatória. Na verdade, eles constituam uma classe a parte a que as crianças tinham pouco acesso, da mesma forma que não tínhamos acesso, nas nossas sociedades, ao mundo dos adultos, situação que não nos atrapalhava em nada. Em contrapartida e apesar da fachada que os cobria de importância sabíamos que eram os campeões de fodas com as bajudas e, sobretudo, as mulheres lava-tudo pois, no lixo, por detrás da caserna onde dormiam alguns oficiais da segunda linha, se assim se pode dizer (Furriéis e alguns Sargentos), encontrávamos todos os dias, uma boa quantidade de preservativos com o líquido cor púrpura a brilhar lá dentro.

Oficialmente malandros, também eram os mais politizados, senão os únicos. Apesar dessa eficiência sexual, eram discretos, bons conhecedores do meio envolvente e com excelente domínio de si pelo que raramente se metiam em problemas com os nativos.

Tinha criado o hábito de passar por esta caserna de oficiais, regularmente, por duas razões: Primeiro, porque reciclava o lixo que era de melhor qualidade comparativamente as outras casernas mas também, porque junto de uma das janelas, um dos seus ocupantes gostava de coleccionar latas de conserva que não consumia e eu, passando por ali ia fazendo as contas e verificar se o produto continuava lá no intuito de um dia conseguir aproveitar-se dele. Entre mim e as latas estava uma ténue rede de mosquitos e o perigo de ser surpreendido no acto. Quando finalmente as conseguimos roubar, depois de meses de rondas e de cálculos, tivemos uma grande decepção, pois da dezena de latas surripiadas, mais de metade continha carne de chocos ou lulas que, acto contínuo, deitámos fora pois, a mentalidade comunitária da época, bastante arcaica, atribuía este tipo de carnes a diferentes tipos de bichos que os brancos comiam na sua terra (insectos e répteis) que entre nós criavam horror. Infelizmente não podia devolvê-las ao(s) dono(s) pois, durante a operação resgate tinha rasgado a rede da janela do oficial de alto a baixo com uma enorme faca de mato daquelas que os soldados levavam a cintura.

Bissau, Julho de 2009.
Cherno A. Baldé

[Revisão /fixação de texto / bold a cores / subtítulos: L. G. ]
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

24 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2127: Estórias de vida (5): Sérgio Neves, meu irmão, um homem bom (Tino Neves)

Vd. também: 6 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)



(**) Vd. postes de 3 de Abril de 2009 >Guiné 63/74 - P4136: As Unidades que passaram por Fajonquito (José Martins)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2266: Quem conhece o Inácio Maria Góis, autor de O meu diário, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66) ? (René Pélissier)

30 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4111: Em busca de... (68): Furs Mils Andrade e Cabrita Martins que estiveram em Fajonquito entre 1971 e 1973 (Maria Filomena Correia)

3 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4135: Em busca de... (70): Fur Mil Andrade e Cabrita Martins que estiveram em Fajonquito entre 1971/73 (Afonso Sousa)

6 de Abril de 2009 Guiné 63/74 - P4145: Tabanca Grande (131): José Cortes, ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito (1972/74)

17 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLV: Notícias do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba e Fajonquito, 1972/74) (Manuel Oliveira Pereira)


(***) Vd. postes anteriores da série Memórias do Chico, menino e moço:

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

Vd. também:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)

20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)