segunda-feira, 28 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23121: Notas de leitura (1431): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2022:

Queridos amigos,
É mesmo uma surpresa, um cultor do classicismo andou por Guileje e paragens limítrofes, entre 1968 e 1970, creio que se disfarça no primeiro-cabo Martins, das Transmissões, são memórias onde não faltam referências a Horácio, Virgílio, Dante, Camões, há a preocupação de resistir à tentação de passar ao crivo a história da Guiné ou martelar as vias sinuosas da luta pela independência, é um livro cheiro de olhares, alguém que reza o terço, que se comove com a inocência das crianças, vê partir colunas de abastecimento e sente um remorso por nelas não participar. Já chegou a hora da primeira flagelação, muito mais se seguirá, o tomo memorial ultrapassa as quinhentas páginas, foi editado pela Chiado Books recentemente, faz hoje parte do Grupo Atlântico Editorial.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (1/4):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta:
“Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no Mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.
Guiné > Região de Tombali - © Infografia Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Coube-lhe na rifa Guileje e algo mais, entre maio de 1968 e julho de 1970, apresenta-se como Martins, primeiro-cabo de Transmissões, especialidade que tirou em Lisboa, andou pelo Algarve e embarcou num Niassa em rendição individual. Mal chegou, puseram-no a levar corpos ao cemitério de Bissau, depois percorre a cidade, recorda a família e amigos, vem-lhe à memória um soneto de Gonçalves Crespo e a poesia camoniana, no quartel dos Adidos assiste a uma arenga de Spínola às tropas recém-vindas. “Ao Martins, por vício de formação, que o faz apreciar arroubos de retórica, ainda quando empolada, só lhe ficou o enfático da arenga”. Percorre o cais de Pijiquiti, um relojoeiro no Bissau Velho fala-lhe dos incidentes de 3 de agosto de 1959. E chegou a hora de partir num batelão, primeira etapa Bolama, adormece rezando, a passagem pela antiga capital é muito rápida, dirigem-se agora para Cacine, lembra-se do poeta Dante. O Martins vai a terra. “Procede do cais uma alameda de palmeiras, poeirenta, em terra batida, ladeada, mais adiante, das dependências do aquartelamento. Um simulacro de porta de armas separa a área militar da povoação. Aliviados das provisões destinadas à tropa daqui e também à de Cameconde, destacamento a meio para a fronteira, rumam a Gadamael”. O resto do percurso será por terra, haverá camiões escoltados por camiões de combate. Alguém procura sossegar o Martins. Contempla Gadamael, recolhe cedo ao decrépito cardenho à laia de abrigo.

Já o trataram por Periquito, o mesmo que novato, vem com uma farda enorme, em Guileje um antigo alfaiate irá pôr-lhe a indumentária ajustada. Vai bisbilhotar o posto de rádio, há um camarada a expedir mensagens. No bar, alguém lhe fala do cruzamento de Guileje, relata uma tragédia que ocorreu a 28 de março desse ano de 1968, um encontro com gente armada, ao princípio um equívoco, vinha à frente um homem de tez clara, um cubano, seguiu-se forte tiroteio, seguiu-se um ataque de abelhas, houve ações de autêntico heroísmo para recolher os corpos de dois soldados abatidos. Essa companhia estava agora em Gandembel, ali a uns 10 km de Guileje, a escavar abrigos e a levantar paredes, a viver num inferno, a flagelar da fronteira, a emboscar e a minar a picada. E lá vai o Martins para Guileje, passa-se pelo tal nefasto cruzamento, manda a propriedade do termo que se fala em entroncamento, onde convergem sem se cruzarem duas picadas: a que procede de Cacine e Gadamael e sem desvio continua para Gandembel, tendo mais adiante Aldeia Formosa; e estoutra que nela entronca e a Guileje vai dar.

Dá-nos a primeira impressão desse aquartelamento que lhe parece inexpugnável, logo é atraído pela questão da falta de água, todos os dias há que viajar para fora da cidadela 3 km. Ele faz parte do Pelotão de Caçadores Nativos n.º 51, já desceu ao seu abrigo e tem cama, nada a registar de flagelações ou atos inoportunos. Vai espreitar a tabanca, conhecerá um pequenito com quem saboreará uma refeição. Apercebe-se que isto de almoçar ou jantar não é de estar abancado com os outros, dá-se o sinal de que a cozinha está pronta, recebe-se a provisão e come-se no abrigo, para evitar nefastos acontecimentos de um estoiro em cima de um refeitório. Alguém lhe pergunta de onde ele é, responde impante que é de S. Pedro de Roriz, que tem igreja românica, calçadas pré-romanas de enormes lájeas, e uma paisagem rural de encher o olho… e há a rivalidade entre o Desportivo das Aves e o Tirsense.

E começam as colunas de abastecimento, aquelas que são um calvário, as que levam a Gandembel, alguém faz o relato de fornilhos que desmembram os corpos, ele tudo regista o que ouve do sofrimento dos outros. A sua vida é no posto de rádio, que ele descreve: “É um pequeno edifício térreo, com dois compartimentos: uma sala ao rés-do-chão e uma cave abrigo. Na sala, a um lado da entrada, fica a mesa do operador; do outro, um alçapão sinistro a modo de escotilha em porão de navio, sendo ocupado o restante espaço por camas. O alçapão abre para o abrigo, que subjaz ao pavimento da sala e ao qual se desce por íngreme escada de madeira ou agarrado a um varão de ferro liso e redondo”. Ali se trabalha por turnos, quase sentimos o operador a martelar mensagem.

Chegou a hora do Martins se iniciar em flagelações, parecia que à volta de Guileje reinava a placidez de um lago adormecido, os militares iam passando pela cozinha, e nisto um estampido lá ao longe, salta-se para as escadas, desce-se às profundezas, “em toda a Guileje, militares e civis, brancos e pretos, mulheres com crianças enfaixadas nas costas, enfiam desabaladamente, como flechas, para o refúgio mais próximo”. Ouvem-se as explosões, os tímpanos parece que estouram, aquela criancinha com quem ele está a acamaradar agita-se-lhe a cabeça num estremecimento brusco, está de olhos esbugalhados. A artilharia de Guileje responde e mais adiante o fogo do PAIGC, procura-se a normalidade, uma deceção, o gato comeu os carapaus, estava-se nas tintas para a infernal fuzilaria, não pode resistir ao cheiro a peixe frito, cabe ao Martins uma pratada de arroz e uns carapauzinhos frios.

E temos agora uma coluna que vai picando e ao encontro da tropa de Gadamael, pela mesma picada em que o Martins veio, a escolta é uma enorme serpente de militares que vão avançando espaçados, roncam surdamente os camiões, pela cabeça do Martins aquela imagem da serpente lembra-lhe o poeta Virgílio, como mais adiante lhe ocorre um sermão do Padre António Vieira, dá-se espaço para falar das armas do PAIGC, segue-se uma descrição de uma boa chuvada, é nisto que rompendo os ares se aproximam três helicópteros, vem aí Spínola.

(continua)

José Casimiro Pereira de Carvalho, Furriel de Operações Especiais, colocado na CCAV 8350 (‘Os Piratas de Guileje’) (Foto: José Casimiro Carvalho)
Na foto, do Pel Caç Nat 51, da esquerda para a direita: Furriel Castro, Furriel Azevedo, Alferes João Perneco, Furriel Carvalho e Cabo Raul. (Foto: José António Viegas)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23097: Notas de leitura (1430): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (5) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: