terça-feira, 29 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23123: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXX: Berlengas, Peniche, Portugal, junho de 2019,


Foto nº 1 > Berlengas, Peniche: forte de São João Baptista


Foto nº 2 > Berlengas, Peniche: bairro dos pescadores


Foto nº 3 > Guiné, região do Cacheu , Canchungo, CAOP 1 > O alf mil António Graça de Abreu (1)


Foto nº 4 > Guiné, região do Cacheu , Canchungo, CAOP 1 > c. 1972 > O alf mil António Graça de Abreu (2)

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Berlengas, Peniche, Portugal, junho de 2019

por António Graça de Abreu


[Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de três centenas de referências no blogue; texto e fotos  enviados em 12/7/2021]

Nos anos que perduram nas circunflexões da memória, recordo, em 1972, o alferes Marques, adjunto do major Pimentel da Fonseca -- o homem de Operações, no CAOP 1 ( Comando de Agrupamento Operacional nº 1) --, meu camarada de armas e companheiro de quarto em Teixeira Pinto, Canchungo, Guiné-Bissau.

O Marques, então quase com dois anos de guerra dura, acordava com inusitada frequência, a meio da noite e, estremunhado, tonto de sono, encharcado em suor, do seu canto, do outro lado do quarto, lançava umas tantas barbaridades. Numa dessas noites, disse mais ou menos o seguinte: “A integridade da Pátria, lutar até à morte pelas Berlengas. Essas, sim, serão sempre portuguesas.” E, exausto, com sonhos raiados a vermelho, pairando por sangrentas bolanhas, o tarrafo e atlânticas proezas, o alferes Marques adormecia outra vez.

Só aos setenta e dois anos de idade, cinco décadas depois da Guiné, em Junho de 2019, atravessei o pedaço de mar entre Peniche e as Berlengas. Águas alterosas, uma lancha grande de pescadores, agora transporte turístico, e aí vamos rompendo as ondas.

Bonita a ilha, o forte de São João Baptista envolto em maresia, a tresandar de humidade. O trilho, subindo para o farol, a pedra da ilha rasgada a meio pela natureza. Gaivotas, cagarras, lagartixas por todo o lado. 

Desço pelo caminho cimentado até aos socalcos do parque de campismo. Os olhos caem no Carreiro do Mosteiro, uma tira de areia aberta para o mar. Barquinhos, gentes no banho, a água muito fria. Cansado, abanco no restaurante. Sardinhas assadas. Chegam sete peixes a saltitar na travessa, mais um vinho verde fresquinho, o “tal da Lixa”, para olear a goela e embebedar os lombos das sardinhas, no estômago. 

Agora, um velho combatente, ancorado em cima do mar, num enorme rochedo mirando Peniche, lembrei-me do alferes Marques, da Guiné-Bissau, da “ditosa pátria minha amada”. Sardinhas, mar azul e Portugal.
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23075: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIX: Ìndia, Cochim, novembro de 2016

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Uma calamidade ! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca ! Nem a pneumónica aqui chegou"

( Faroleiro das Berlengas, 25 de Agosto de 1919. In: Raul Brandão (1923) - Os Pescadores. 1923, pág. 112)

... Tem, no entanto, uma história militar!...Talvez alguém queira saber mais...

Valdemar Silva disse...

Ir às Berlengas era viciante, como quem começa a fumar: uma grande má disposição e repetir outra vez, outra vez.
Durante alguns anos, de 1980-85, fui com alguma frequência às Berlengas. Aos sábados costumava acompanhar o meu compadre quando ele, aferidor de balanças, ia trabalhar na lota ou mercado de Peniche. Ele conhecia o arrais do barco para as Berlengas, e quando estava bom tempo pedia 'eh tio Arnaldo leve estes a almoçar ao Boia'.
Era um martírio para mim com enjoo, frio e o meu filho aguentava-se. Chegados, era outro país e no pequeno bairro dos pescadores lá passava a má disposição com arroz de sardinhas e vinho branco, sem querer pensar no regresso. Depois, diga lá ti Boia quanto lhe devo? Home não sei o que diz leve lá mais uns pexes prá mulher, respondia o pescador.
E lembrava-me de Raúl Brandão:
'...no mar os homens correm os mesmos perigos. São também profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza forçam-nos a contar consigo e com a companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe. E, como o mar abundante e pródigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que não compreendem, e ignoram a vida da terra. Se a mulher lhes morre, não entram em licitações com os filhos: deixem-lhes a eles o barco e as redes e tomem conta do resto. Reparei que em todas as casas havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande ternura pelas aves....'

Na outra semana voltava os enjoos e frio e a satisfação de ver o mar e mais nada.
Era viciante. Infelizmente acabaram as viagens às Berlengas e ficou a merda as cigarros.
Nunca mais lá irei...

Obrigado Graça de Abreu por este 'No Espelho do Mundo' e saúde da boa
Valdemar Queiroz

JB disse...

“Sardinhas,mar azul,e Portugal “

Frase feliz por englobar os sentimentos de um “exigrado”.
Que mais não é que um misto de exilado- emigrado.

JB.