quarta-feira, 30 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23126: Historiografia da presença portuguesa em África (310): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Ao longo de um processo de qualquer pesquisa somos confrontados, por vezes repentinamente, com títulos desconhecidos que aparentam interesse, alguns deles nem são constantes das bibliografias mais utilizadas. Foi o que aconteceu um livro do capitão Gerardo Pery, que encerra não passa de generalidades, para seu bem curioso o que se vendeu na feira da Exposição Universal de Sevilha proveniente da Guiné, folheou-se o livro de um médico inglês, George Tams, que ainda na primeira metade do século XIX veio apurar se ainda se praticava a escravatura e, coisa surpreendente, andou por Cabo Verde mas não viu utilidade em pôr os pés na Senegâmbia Portuguesa. E assim se chegou a um dos mais relevantes trabalhos de António Carreira sobre as companhias pombalinas de navegação, aqui se dá notícia de uma importante resenha oriunda da Universidade de São Paulo e espera-se continuar com o propósito de oferecer bibliografia pertinente ao leitor mais interessado.

Um abraço do
Mário



Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1)

Mário Beja Santos

Numa fase de últimas pesquisas para dar por concluído o trabalho de investigação de um próximo livro que terá o título de Guiné, bilhete de identidade, senti curiosidade em folhear publicações sobre temas que à partida me pareceram pertinentes. É dessa relação de leituras espúrias que aqui procedo a alguns comentários. Primeiro, a Geografia e Estatística Geral de Portugal e Colónias, obra de um Capitão do Exército, Gerardo A. Pery, edição da Imprensa Nacional, 1875. Registo um parágrafo que me parece a todos os títulos elucidativo:
“O senhorio português na região impropriamente denominada Guiné, isto é, na Senegâmbia, estendia-se, ainda nos fins do século XVI, desde o Cabo Verde até à Serra Leoa. Descoberto o rio Casamansa e a costa entre o Cabo Roxo, ao sul deste rio, e o Cabo de Sagres, ao norte da Serra Leoa, foram estas regiões a princípio avidamente exploradas. Mas a descoberta da denominada Costa do Ouro, a verdadeira Guiné, e, mais tarde, os descobrimentos da Índia e do Brasil, fizeram esquecer esta parte dos vastos domínios portugueses, deixando-se que outras nações ali se estabelecessem e se apoderassem dos principais ramos de comércio daquelas feracíssimas regiões”.
Daí se reduziu a extensão do domínio na Senegâmbia, referindo que a superfície aproximada é de 8400 quilómetros quadrados. O Capitão Pery refere os rios (Casamansa, São Domingos, Geba, Bolola, Quinala ou de Nalu, até ao rio Nuno). Comenta que as margens destes rios são muito férteis, orladas de densas florestas de mangues, pau-carvão e árvore da borracha; as principais produções eram arroz, milho e mancarra. A Guiné deste tempo estava dividida em três concelhos com cinco freguesias.

Assim que vi a referência da Guiné no Catálogo Português da Exposição Mundial de Sevilha, 1929, fui à procura de algo original. Para quem redigiu o texto, a população ao tempo seria de 400 mil habitantes, refere que existem duas estações e que as principais culturas seriam: mancarra e arroz, milho e café, cana-sacarina e tabaco, cola e mandioca, dizendo adiante que a colónia possuía muita fruta: bananeira, laranjeira, mangueira, mamoeiro, cajueiro e goiabeira. Aspeto muito curioso era o mostruário de cereais e legumes, frutas e sementes oleaginosas, madeira e cortiça (?) e apresentava um extenso elenco de produtos de artesanato. No descritor da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamou-me a atenção o seguinte título: Visita às Possessões Portuguesas da Costa Ocidental de África, por George Tams, doutor em Medicina, dois volumes, Edição Portuguesa do Porto, 1850. O Dr. Tams é bem explicito sobre o que o move nesta viagem: vem fiscalizar se ainda há mão-de-obra escrava nas colónias portuguesas. Visita as ilhas adjacentes, percorre Cabo Verde e segue diretamente para S. Tomé em Angola, nem uma palavra sobre a Guiné. Mas recomenda-se a sua leitura para quem investiga a análise da escravidão após a abolição decretada pela Grã-Bretanha, reputo de muito interesse o que ele escreve sobre Cabo Verde, Angola e São Tomé.

Chegou a oportunidade de ler uma boa investigação de António Carreira intitulada As Campanhas Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, a edição é do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1969. Dá-nos generalidades sobre as companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos, narrando que tudo começara quando os descobridores andavam a filhar gente ao acaso com o objetivo de obter informações sobre as terras e as gentes, mercadorias, tais como o ouro. A esse período seguiu-se a chamada Companhia de Lagos, dirigida por Lançarote, destinava-se à captura de escravos. A etapa seguinte foi o arrendamento da Coroa a Fernão Gomes (1469) por cinco anos. Está documentado que Fernão Gomes navegou costa abaixo, cumprindo o contrato. Noutro período, houve tratos e resgates efetivados diretamente por decisão régia através de arrendatários ou possuidores de licenças temporárias. É o tempo dos assientos, correspondia a um contrato ou a um conjunto de contratos pelos quais um particular se substituía ao rei.

No século XVII a política passou a ser diferente pois constituíram-se companhias de navegação e comércio protegidas pelo monopólio do escambo (comércio de escravos). A primeira companhia constituída foi a Companhia da Costa da Guiné, organizada pelos irmãos Lourenço Pestana Martins e Manuel da Costa Martins a quem foi concedido o exclusivo do comércio de Arguim por oito anos. Anos depois, surgiu a Companhia de Cacheu, Rios e Comércios da Guiné (1666). Tinha obrigações assumidas, caso da reedificação da Praça de Cacheu, o fornecimento de armas e munições, o pagamento de vencimentos ao clero e a militares. Durante seis anos tiveram o exclusivo da navegação de Cabo Verde para a Guiné. Findo o prazo da concessão, os sócios deste empreendimento transferiram os seus direitos para a Companhia do Estanco do Maranhão e Pará (1682), o exclusivo de escravos abrangia também a costa de Angola. A contestação foi enorme e a Coroa viu-se obrigada a cancelar o contrato. A Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné veio a ser substituída pela Companhia de Cacheu e Cabo Verde. É nesta fase, no final do século XVII, que a Coroa pretende incentivar o desenvolvimento agropecuário do Pará e Maranhão, o recurso ao índio era manifestamente insuficiente. As doenças grassavam no Brasil, as crises de mão-de-obra eram consecutivas, foi nesse contexto, e após muitas vicissitudes, que se fundou (1755) a Companhia Geral do Grã Pará e Maranhão, que não teve uma vida pacífica nem gloriosa, não faltaram acusações de desmandos e mais tarde virá a rutura financeira.

Aqui se interrompe para juntar um comentário do historiador e antropólogo brasileiro Luiz Mott na Revista de História da Universidade de São Paulo (1972), acerca da importância do trabalho de António Carreira:
“Dentre os inúmeros Arquivos Históricos existentes em Lisboa, um deles é particularmente rico em material relativo ao comércio exterior do Brasil durante o século XVIII: o Arquivo Histórico do Ministério das Finanças. Mais do que em qualquer outra instituição do Brasil ou de Portugal, é aí neste Arquivo que estão reunidos o maior número e os principais documentos referentes às célebres Companhias de Comércio do período Pombalino: dezenas de enormes livros manuscritos onde foram registrados todos os decretos e avisos régios relativos às Companhias, outro tanto de livros onde estão copiadas todas as cartas que a administração das Companhias mandava e recebia, diários de contabilidade, sem falar nos milhares de papéis avulsos dos muitos maços de correspondência. Material abundantíssimo e muito rico, apenas parcialmente explorado, que espera pesquisadores que o sistematize".

António Carreira, do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, professor do Centro de Estudos de Antropologia Cultural, do Instituto de Alta Cultura (Lisboa), pesquisador arguto e sério, com uma paciência verdadeiramente beneditina, frequentou assiduamente e por um longo período os manuscritos deste Arquivo: o resultado de suas pesquisas (o presente livro), é altamente satisfatório, e digno dos maiores elogios. Além da referida instituição, o Autor fez pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), e no Arquivo Público da Baía.

Profundo conhecedor da história das tecelagens de Cabo Verde e da Guiné, as implicações resultantes da utilização destes panos de algodão no tráfico de escravos, (Cf. o livro de sua autoria, A Panaria Cabo-Verdiana-Guineense - Aspetos Históricos e socioeconómicos, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa), António Carreira oferece-nos com o presente livro um estudo bastante original a respeito das duas Companhias Pombalinas de Navegação, comércio e tráfico de escravos: a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba.

O 1.º Capítulo serve como introdução: o Autor apresenta informações gerais, ou generalidades, sobre as Companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos anteriores à época Pombalina. O 2.º Capítulo é dedicado à Companhia do Grão-Pará e Maranhão: a sua formação, a frota utilizada, os agentes, o seu comportamento, a concorrência estrangeira, o contrabando. Uma das partes mais interessantes é a análise estatística dos escravos transportados pelos navios desta Companhia, tomando como base os registos efetuados entre 1755 e 1788. Nesta parte são apresentados os seguintes elementos:
- Número de escravos embarcados e chegados vivos aos destinos
a). - Especificação por sexos e grau de desenvolvimento físico;
b). - Número de escravos segundo as regiões de procedência e de destino;
c). - Etnias levadas para o Brasil;
d). - Tratamento e mortalidade no trajeto;
e). - Marcas de propriedades nos escravos;
f). - Preços médios de custo na origem, por anos e regiões.

Completam tal capítulo a descrição de 2 temas: - algumas das mercadorias utilizadas nos "tratos e resgates dos escravos"; - géneros e manufaturas africanas compradas e exportadas.

O estudo da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba é feito no 3.º Capítulo. Aí o autor aborda os seguintes assuntos: a frota utilizada, alguns problemas do tráfico, proveniência dos escravos levados para Pernambuco, mortalidade dos escravos durante a viagem, preços médios de compra de escravos por anos e áreas.

Acompanham tais reflexões a transcrição de 27 documentos (entre alvarás, representações, cartas, pareceres, petições, etc.), relacionados com as Companhias e o tráfico de escravos. Muitos destes documentos são inéditos. O último deles, embora tendo sido anteriormente publicado, dada a raridade e dificuldade de ser encontrado, é com júbilo que o encontramos aí divulgado. Trata-se do Discurso Académico ao Programa, de autoria de Luís António de Oliveira Mendes, proferido em 12 de maio de 1793, somente publicado em 1812 nas Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, no tomo IV. Tal Memória teve como objetivo "determinar com todos os seus sintomas as doenças agudas e crónicas, que mais frequentemente acometem os pretos recém tirados da África: examinando as causas da mortandade depois da sua chegada ao Brasil: se talvez a mudança do clima, se a vida mais laboriosa, ou se alguns outros motivos concorrem para tanto estrago: e finalmente indicar os métodos apropriados para evitá-lo, prevenindo-o e curando-o: tudo isto deduzido da experiência mais sisuda e fiel" (p. 495). Tal Discurso constitui documento muito rico de informações para a história da escravidão no Brasil. Embora o seu escopo tenha sido, conforme foi dito, primordialmente em termos de sugerir uma nova política sanitária a fim de se evitar a mortandade dos escravos transportados para a América Portuguesa, o certo é que o autor, improvisando-se em etnógrafo, descreveu com muita riqueza e detalhes, os costumes, ocupações e demais aspetos da cultura material dos africanos, "esta porção mais desgraçada da espécie humana" ... (p. 494).

Tal académico não contente em apresentar de maneira "mais sisuda e fiel" a situação destes escravos, transforma as suas linhas em discurso engagé, dizendo que "as diversas crueldades experimentadas pelos pretos escravos em todas as idades, fazem gelar o sangue nas veias do fiel e experimentado escritor", daí sugerir a criação de uma Lei Municipal (6 artigos), que inibisse a desumanidade dos Senhores em favor de uma existência menos desgraçada para os escravos, lei esta que levaria à extinção do tráfico, e à abolição final do trabalho servil:
... "Que na África por hora venha a menor porção dela, que puder vir (escravos), e que para o futuro dilatando-se pela observação o mesmo sistema, se levantem as mãos aos céus, louvando a omnipotência de Deus, que por um destino feliz fez desterrar, e desaparecer par sempre a escravidão dos pretos a todos odiosa." (p. 55).

Lastimamos informar que tal obra, edição do. Autor, dado o pequeno número de exemplares publicados, é dificilmente encontrada nas bibliotecas e livrarias do Brasil.
Todos os exemplares foram enviados de Lisboa ao Rio de Janeiro, onde foram rapidamente distribuídos. Há, entretanto, uma outra possibilidade para quantos não tenham tido a felicidade de obter um exemplar deste importante trabalho: tal estudo foi igualmente publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nos 89-90 e 91-92 de 1968, n.ºs 93-94 de 1969. Em tal publicação, de acesso relativamente fácil, poderá o leitor comprovar o grande valor e interesse desta pesquisa, e como eu, agradecer a António Carreira a trabalheira que nos poupou, sistematizando tão bem esta importante parte dos manuscritos do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças de Lisboa.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23102: Historiografia da presença portuguesa em África (309): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (13) (Mário Beja Santos)

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