sábado, 2 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23134: Os nossos seres, saberes e lazeres (499): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (44): Nunca me canso com as belezas de Trancoso, o regresso é inevitável (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Era o convite irrecusável de apresentar um livro de amigo dileto, acresce que é uso e costume de mandar esta belíssima região todos os anos, o hospedeiro encarrega-se de propor passeios, o último levou-nos a S. João de Tarouca e ao Mosteiro de Santa Maria de Salzedas. O tempo era instável, pouca luz no primeiro dia, a manhã seguinte desabrochou em neblina, mas com agrado de quem em itinerância fez-se uma cobertura razoável do chamado Centro Histórico de Trancoso, ficou o pesar de não tirar imagens da Casa Quartel General Beresford, dos jardins, fontes e capelas. Mas há mais marés que marinheiros, e com saúde aqui se regressa, com o entusiasmo de sempre, dentro destes pedregulhos e oceanos de granito se fundou um país, aqui se guarda a lembrança do maior número de castelos que assinalam a Reconquista e as lutas pela independência.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (44):
Nunca me canso com as belezas de Trancoso, o regresso é inevitável


Mário Beja Santos

O pretexto era vir apresentar o novo livro de um querido amigo trancosense, uma obra de literatura memorial com muita infância e algo mais, uma exultação da natureza, da paisagem, do arvoredo que logo me embeveceu na primeira leitura; aqui cheguei com todo o agrado para lhe cantar hossanas, ele que continue na escrita e no gosto pela vida rústica. E atirei-me ao trabalho para estar itinerâncias, seguindo os ensinamentos de José Saramago, o que se vê no inverno não é o que se vê no verão, o que se vê com céu claro não é o que fixamos em dias ou horas de neblina, como algumas imagens pelo adiante comprovarão. Saí da apresentação do livro no Convento dos Frades Franciscanos, hoje Teatro Municipal de Trancoso, ciente da escassez da luz, era uma luta contra o tempo. E dirigi-me logo para um monumento que me fascina, o Cruzeiro do Senhor da Boa Morte.
Este cruzeiro é manuelino, coberto com abóbada assente sobre quatro colunas, que em 1729 um padre mandou cobrir, não sei se fez bem. Gosto de por aqui cirandar a volta deste crucifixo em granito, nele avulta a gravidade, a expressão dolorosa, como se tivesse a dizer, “vê se entendes por que te encaro de braços abertos”.
Chama-se Capela de São Bartolomeu, será templo reconstruído sobre um já existente. A reconstrução é de 1778 e foi feita em memória dos esponsais de D. Dinis com Isabel de Aragão. Sobrepujado por uma cruz e com seis pináculos nos recortes dos cunhais, com base hexagonal. Numa das paredes, há uma lápide azulejada, e vocativa do casamento real.
Chamam-se Portas d’El Rei, ao que consta era mesmo porta régia, Trancoso está emuralhada, esta é a porta a sul, tem uma abertura entre duas torres ameadas. Por cima da entrada temos o escudo da cidade. Exteriormente formam um arco abatido e interiormente um arco em ogiva. Vejo escrito que em recuadas épocas fechavam com grades de pau ou de ferro e porta em madeira. Vejamos agora o outro lado das portas.
Aqui está o arco em ogiva, gosto muito deste prédio à direita como se estivesse a embeber-se no pano da muralha, daquela luz que parece escoar-se para o infinito, daquele primor das escadas floridas e do musgo a tomar conta da pedra. É assim a vida numa vila medieval, classificada como uma aldeia histórica.
Na continuação, entramos na rua do forte comércio, procura-se mais adiante o largo do município, esta corredoura guarda as marcas do tempo, neste exato momento não se anda à procura de vestígios romanos ou muçulmanos, românicos ou góticos, ou manuelinos ou barrocos, não haja ilusões que a vila medieval teve que corresponder aos desafios impostos pelo correr do tempo, e daí o muito antigo enfrentar estas montras modernas, este lugar habitado precisa de progredir, não é propriamente um museu. Este espaço é conhecido como casa dos arcos, esta construção será dos finais do século XVII e início do século XVIII, pertencia a um solar, deu muitas voltas, tem hoje proprietários diferentes.
Foi de propósito que enviesei o ângulo, queria mostrar-vos o pelourinho de Trancoso com vista folgada para aquela rua à esquerda, novamente uma casa dos arcos mostrando a Igreja de S. Pedro, na sua largueza. O pelourinho é manuelino, tem fuste facetado sobre quatro degraus e remata como colunelos que formam uma gaiola, em número cinco. É monumento nacional desde 1910. A casa dos arcos é um belo palacete do século XVII, sofreu alterações, por aqui funcionou o Grémio da Lavoura e até um armazém de móveis. A Câmara de Trancoso adquiriu-a e adaptou-a para um residência de estudantes.
Será mesmo necessário comentar que estamos num mundo medieval devidamente requalificado?
O Castelo e as Muralhas são o monumento mais importante da cidade, estão classificados como monumento nacional, tudo começou bem antes da nacionalidade, há uma primeira menção do castelo com data de 960, vem mencionado no testamento de D. Chamôa, onde o castelo é doado ao Castelo de Guimarães. Tem sete torres, a mais imponente é a Torre de Menagem, com uma configuração em forma de pirâmide truncada. Uma dessas sete torres foi adaptada para capela. As muralhas, como soe hoje dizer-se, são o ex-libris de Trancoso. Constituídas, em todo o seu comprimento, por quinze torres, só é possível ver quatro das quinze. A muralha que hoje podemos ver tem sete aberturas, quatro portas e três postigos.
As portas e os postigos são mais do que uma curiosidade, tinham funções específicas, caso de o Boeirinho, o Olho do Sol e as Portas da Traição. Estas muralhas conheceram sucessivos restauros desde o século XII até 1939, aqui a pensar nas comemorações dos 800 anos de nacionalidade. Neste restauro foram destruídos no exterior das muralhas vários casebres que se tinham implantado ali nos séculos XVIII e XIX.
Aproxima-se o fim do dia, com o meu caótico sentido de orientação, intuo que lá ao fundo está a Serra da Estrela, mas não excluo que esteja a ver Riba Côa, mas também não vou perguntar a ninguém, estou esmagado pela beleza desta vista espaçosa, este desafogo que é tão peculiar na Beira Alta. Sem luz não se pode trabalhar, o que se não se pode fazer hoje faz-se amanhã, há igrejas, há casarios, há o espaço do concelho, importa falar do judaísmo e das suas representações na cidade. Então até amanhã.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23114: Os nossos seres, saberes e lazeres (498): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (43): Uma visita ao Museu de Setúbal/Convento de Jesus (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

Eu já não vou a Trancoso há bastantes anos, mas sou capaz de apostar que na última fotografia não é a Serra da Estrela que se vê. Devem ser terras de Riba Côa, estendendo-se pela Beira Alta fora até Trás-os-Montes, ou então por terras de Pinhel e Almeida, até Espanha dentro. Se o próprio Beja Santos não sabe dizer se fotografou para norte ou para sul, para leste ou para oeste, como poderemos nós saber? A Serra da Estrela é alta, como toda a gente sabe, mesmo que nunca lá tenha ido. Além disso, fica bastante próxima de Trancoso; começa logo ali adiante, em Celorico da Beira. Vista de Trancoso, a Serra da Estrela deve ter um aspeto consideravelmente diferente do da fotografia.

P.S. - Iremos ver fotografias de Moreira de Rei? Aguardemos.