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segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23177: Humor de caserna (50): "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!": um documento do "Gasparinho" que ainda hoje nos suscita um sorriso amargo (António J. Pereira da Costa, cor art ref)



Guiné > Região do Oio > Nhamate > CART 3330 > 1971 > Uma peça de antologia do humor negro... castrense: "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!"  ...


1. Este documento foi-nos oportunamente remetido pelo António J. Pereira da Costa, cor art e membro da nossa Tabanca Grande, com a seguinte informação (*):

(...) Aqui vai uma nota escrita pelo célebre major Gaspar que inventou aquela expressão que ainda hoje usamos: Siga a Marinha!

In Os Anos de Guerra: 1961 - 1975: Os portugueses em África: Crónica Ficção e História. Organização de João de Melo - II Volume. S/l: Círculo de Leitores 1988. 190 (documento reproduzido com a devida vénia...).

Leiam-na com atenção e vejam se ela não é um tratado de logística da Guerra Colonial. É de um humor amargo, mas era a verdade. (...)


2. Fixação e revisão de texto, da responsabilidade do editor LG, de modo a tornar mais legível o conteúdo da mensagem:


Ministério do Exército | Comando Territorial Independente da Guiné

Mensagem nº 125/71 [classificada como Confidencial, Urgente), enviada pelo Comandante da CART 3330, SPM 6928, Cap Art José Joaquim Vilares Gaspar, dirigida ao Comandante da Engenharia, com conhecimento a CAOP1, RepOper/Com-Chefe, RepPop/Com-Chefe, RecAcap/Com-Chefe, e BCAÇ 2928. Entrada na Secretaria do Batalhão de Engenharia, nº 306, em 22/3/71.

Nhamate, 18 de Março de 1971.

Assunto - Quartel em Nhamate (ou mais propriamente abarracamento)

1. Exponho a V. Excia um dos assuntos mais vitais para a continuidade militar e humana de NHAMATE [, a leste de Binar: vd. carta de Bula].

2. Passo a descriminar [sic, em vez de discriminar]:

a) DEPÓSITO DE GÉNEROS

Quando chover fico sem pão pelo menos 15 dias. Julgo que não é muito agradável. Informo V. Excia que não como pão. Gordo estou eu.

E os outros géneros ? E os autos subsequentes ? Só problemas.

b) CASERNAS: 

Barracas de lona, todas oficialmente dadas incapazes. Na Birmânia, viveu-se assim 1 ou 2 meses. Os quadros vivem-no há 10 anos. E os milicianos (os meus, de certeza) “dão o litro” até ao fim. Os soldados dão tudo. Há que tudo lhes dar, na medida do possível.

c) CANTINA: 

E o tabaco ? Desde Napoleão e Fredy [diminuitivo de Frederico] da Prússia que o tabaco era uma das bases da eficiência do Exército. Como combater ou trabalhar sem o velho cigarrinho ? E outros géneros ? V.Excia, mais experiente, meditará sobre o assunto.

d) CASERNA DE CIMENTO: 

Único exemplar. Vou demoli-lo. Não tenho materiais. Solicito auxílio Engenharia.

e) MESS [sic, em vez de Messe]: 

Desde o início das chuvas desnecessita de garrafas de água. Basta as mesmas estarem abertas. Ponchos e gabardinas já temos.

f) CHAPAS DE ZINCO: 

Ao mínimo vento já voam no Quartel.

g) GABINETE D COMANDANTE E 1º SARGENTO: 

Com as chuvas eu e o 1º Sargento só temos a solução de entrar de escafandro, visto estar a 2 metros abaixo da superfície do solo.

h) O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA!


3. Este quartel tem se ser revisto por um Oficial de Eng[enharia], senão começo a construir um novo com os materiais dos REORD[ENAMENTOS], contra a norma, o que é aborrecido, contende com a disciplina e eu não gosto.

4. Agradecendo a boa atenção de V. Excia., gostaria de aqui ter como convidado um Senhor Oficial de Eng[enharia] a fim de concordar ou condenar as minhas asserções supras.

Cumprimentos,

O Comandante,
José Joaquim Vilares Gaspar, Cap Art



3. Comentário do editor LG:

Reproduzo, no essencial, o que escrevi na altura, há cerca de 14 nos atrás.

Repare-se no circuito da informação: uma simples mensagem, que devia ser de rotina, a pedir o apoio da Engenharia para se proceder a obras de reparação num aquartelamento  do interior (na realidade, um conjunto de barracos, como tantos outros), seguia para 6 (seis): o comandante do BENG 447,  com conhecimento a outras unidades,  incluindo três repartções do Com-Chefe!!!... 

Digam-me lá como se podia ganhar a guerra com tantos relés parasitas, porteiros, gate-keepers, típicos do disfuncionamento burocrático! ... 

De um exército em armas (que chegou aos 40 mil homens, no CTIG) quantos não haveria, do cabo ao sargento, do tenente ao coronel, com funções amanuenses, ligados à gestão da informação  e conhecimento?!

Milhares de homens, mangas de alpaca militares, escreviam notas como esta (seguramente menos geniais, divertidas, contundentes, demolidoras, corrosivas... como esta!), batiam-nas à máquina, expediam-nas, classificavam-nas, arquivavam-nas, retinham-nas, guardavam-nas na gaveta, analisavam-nas tardiamente, reencaminhavam-nas tarde e a más horas para o nível superior da hierarquia militar... 

Enfim, a maior parte das vezes estes homens não comunicavam devidamente, não recebiam resposta ou feedback positivo, continuavam perdidos e sós, nas Nhamates  e bu...rakos do mato da Guiné...

Pela primeira vez, em 2008, ouvi falar em Nhamate, na CART 3330 e no seu desconcertante e bravo comandante, o cap art Gaspar, tratado afetuosamente como "Gasparinhi"... 

Pergunta.se:

(i) será que a sorte dos homens que estavam em Nhamate melhorou ? 

(ii) será que nenhum morreu afogado na época das chuvas ? 

(iii) será que nunca lhes faltou o tabaquinho e a água de Lisboa

(iv) será que a Marinha seguiu mesmo ? 

(v) e o Gasparinho (que ternura de nome, posto pelos seus pares e usado pelos seus subordinados) não terá acabado na psiquiatria ? 

Sabemos hoje que acabou mesmo na psiquiatria e levou, ainda por cima,  dois anos de prisão disciplinar... Vejo que morreu cedo, coitado, em 1977... Um homem que tratava o Frederico da Prússia por Fredy merecia um estátua em Nhamate!

Tenho alguma relutância em classificar em poste na série Humor de Caserna... Embora ligeiro, soft, é o título que me acorreu primeiro... Mas podia ser outro qualquer, mais contundente, mais duro, mais agressivo, mais próximo do tempo e do lugar, algures na Guiné, longe do Vietname, como eu ironicamente costumava escrever, no tempo em que lá estive, em 1969/71.

4. Comentário adicional do António J. Pereira da Costa (*):

(...) Sobre este assunto quero acrescentar que não se tratava de uma situação de rotina, mas sim de um pedido para solução de um problema de instalações que se arrastava.

 Como podem ver,  o pedido era enviado às principais Repartições  do ComChefe que não estariam no circuito habitual para uma situação destas. Tratava-se, portanto, de fazer o "protesto" subir de tom para provocar a reacção de quem de direito. Sei que este desiderato foi atingido. 

Por mim considero este documento um verdadeiro tratado de logística, para além de uma prova de inteligêcia. (...)

26 de junho de 2008 às 23:07
_____________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 26 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)

sábado, 16 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23173: Humor de caserna (49): Mensagem, de 13/3/1971, enviado pelo Cap Art Gaspar, cmdt da CART 3330, à Manutenção Militar, c/c ACAP, Com-Chefe, CAOP1 e BCAÇ 2928: "Maior respeito boa vontade Vexa. Verifico todo peixe estragado, ovos com pintos, etc. Ir buscar estes implica risco vida. Ou monto aviário ou entre acordo. Pronto colaborar todo sacrifício. Estou com o pessoal destruído moralmente. Julgo compreendeu." (Ernestino Caniço)

 


88/C/71

Maior respeito boa vontade Vexa. Verifico todo peixe estragado,  ovos com pintos, etc. Ir buscar estes implica risco vida. Ou monto aviário ou entre acordo. Pronto colaborar todo sacrifício. Estou com o pessoal destruído moralmente. Julgo compreendeu. Cap Gaspar


Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. M
ensagem do nosso camarada Ernestino Caniço:

 (i) ex-Alf Mil Cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/dez 1971;

(ii) hoje médico, aos  77 anos teima em continuar ao serviço dos outros,  de acordo com o seu juramento hipocrático; 

(iii) vive em Tomar, estando reformado do SNS ]


Data: 15 abril 2022 17:25  

Assunto - Major Gaspar

Caros amigos:

Votos de ótima Páscoa.

Face ao citado humor do Major Gaspar (*), ocorreu-me enviar-vos um excerto de uma mensagem dirigida pelo então  Cap Gaspar à Manutenção Militar, em 13mar1971, enquanto Cmdt da CART 3330.

A referida mensagem foi enviada com conhecimento à ACAP (Assuntos Civis e Acção Psicológica), COMCHEFE, CAOP1 e BCAÇ 2928.

Sendo um fragmento de um documento original, aquilatareis vós do seu interesse.

Um abraço,

Ernestino Caniço

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terça-feira, 5 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23142: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte III: Histórias pícaras: (iv) A "guerra de Bissau": guardando as costas dos nossos "maiores" ; (v) Capunga: o furriel de calções à "pop"; (vi) O "Velhinho", antigo refractário


Guiné > Região de Cacheu > Bula > CCAV 3420 (1971/73) > Natal de 1971: o cap cav Salgueiro Maia, falando à sua tropa


Foto (e legenda): © José Afonso (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Infografia: Rede de Segurança de Bissau (COMBIS, Cumeré), c. 1971.  Cortesia de José Afonso. 

Ver aqui carta de Bissau (1949), escala 1/50 mil




1. Na altura em que passam 30 anos da morte do Salgueiro Maia (1944-1992), continuamos a publicar algumas histórias dele e da sua companhia, já aqui contadas em 2009, pelo José Afonso (ex-fur mil, 3º Gr Comb,  CCAV 3420 (Bula, 1971/73)-

O nosso camarada, que é até agora o único representante da sua companhia na Tabanca Grande, foi bancário na CDG, no Fundão, está reformado, e vive hoje em Freixial de Cima, Castelo Branco, onde gere o património agrícola da família (foto à esquerda) (*)


(Continuação)

(iv) A "guerra de Bissau": guardando as costas dos nossos "maiores"


Havia determinadas datas em que se fazia a chamada Guerra de Bissau. Datas como Natal e Páscoa, datas do aniversário do PAIGC e datas em que Bissau sofreu alguns ataques.

Assim fazia-se deslocar tropa para os sítios donde o IN alguma vez atacou Bissau ou para zonas de onde era possível atacar. Assim, 2 Pelotões da CCav 3420 por duas vezes foram mandados para Nhamate. Foi o 1.º pelotão por 2 dias duma vez e o 3.º de 19 a 24 de Novembro de 1971.

Fizemos Bula – Binar - Nhamate a pé, para ali passar 5 dias. Em Nhamate, estava a Companhia de Artilharia 3330, não só aqui como nos destacamentos de Manga, Unche e Changue mas era em Nhamate a sua sede de comando. (Esta CART 3330 teve como 1ºcomandante o cap art José Joaquim Vilares Gaspar, o célebre "Gasparinho", de que temos algumas histórias para contar; proovido a major, foi para o Cop de Mansabá)

Achamos estranho quando no primeiro dia, ao pôr-do-sol, toca o clarim para a formatura do arriar da Bandeira. É formada a secção em frente mas o engraçado é que depois da bandeira descida, em vez de o Furriel mandar direita volver, manda meia volta volver. E, nesta posição, de costas para o pau da bandeira, cantava-se:
- E viva a Pátria, viva o nosso General! 

Ao mesmo tempo mandavam como que um coice e gritavam:
- PUM!!!


(v) Capunga: o fur mil Afonso de calções... à "pop"

Cap cav Salgueiro Maia, Lisboa,
Terreiro do Paço, 25 de Abril de 1974.
Foto de Afredo Cunha


Um dia no Destacamento de Capunga aparece um helicóptero a sobrevoar a Zona e, de seguida, faz-se para pousar no minicampo de futebol. Desconhecia-se quem vinha nele, pois não havíamos sido informados. 

O furriel Afonso, que na altura estava a comandar o Destacamento, dirigiu-se tal como estava para receber quem nele vinha. Está vestido como normalmente se anda nos destacamentos. De chinelos, sem bivaque, de t-shirt e calções que já tinham sido calças, agora transformados em calções que, com as vezes que tinham ido a lavar e como não tinham baínhas, se encontravam todos desfiados.

Vinha no helicóptero o Coronel Paraquedista Rafel Durão, Comandante do CAOP1, de Teixeira Pinto, 
e o Comandante da Companhia 3420, 
cap Salgueiro Maia.  Ao ver o Furriel naquela 
figura,  o Coronel pergunta se está apresentável... 
Antes que o furriel Afonso diga alguma coisa, 
Salgueiro Maia olha  para o Coronel e diz:
- Não vê, meu comandante, que está com uns calções...à"pop" ?!


(vi) O "Velhinho", antigo refractário

Havia na Companhia um soldado que quis fugir à tropa e, então deu o salto para França. Mas, quando o irmão foi nomeado padre e disse a 1.ª Missa, não resistiu e, porque era de Monção, atravessou a fronteira para assistir à missa. 

Com a informação da Pide, o nosso amigo, foi preso e acabou por ter que fazer a tropa pelo que apareceu na nossa Companhia já com os seus 30 anos. Era por isso conhecido como o Velhinho. Este era um elemento do 3.º Grupo de Combate, que nas operações gostava de ir sempre à frente com a HK21 e faca de mato à cintura e dizia para o Capitão:
- Se um dia apanho um turra morto, o capitão vai deixar-me cortar uma orelha para fazer um porta-chaves e os testículos para fazer uma bolsa.

Era homem para isso, só que não estava autorizado a fazê-lo.

(Continua)

[ Revisão / fixação de textos e títulos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4628: Estórias avulsas (12): Histórias passadas na Guiné (TCor José Francisco Robalo Borrego)

1. Mensagem de José Francisco Borrego (*), Ten Cor na Reserva, que pertenceu ao Grupo de Artilharia n.º 7 de Bissau e ao 9.º Pel Art, Bajocunda (Guiné, 1970/72), com data de 29 de Junho de 2009:

Caríssimo Carlos,

Desculpa lá mais esta trabalheira! Começamos a puxar pela memória e depois vêm à superfície factos passados há quase 40 anos!

Faço votos para que te encontres bem na companhia da Excelentíssima Família. Ainda não foi este ano que nos conhecemos pessoalmente. Uns problemas domésticos impediram a minha ida ao convívio de 20 de Junho de 2009, que pelos vistos correu às mil maravilhas! Se Deus quiser para o ano, vou fazer os possíveis para estar presente.

Um abração de muita amizade do
José Borrego


HISTÓRIAS PASSADAS NA GUINÉ

Caríssimo Carlos Vinhal,

já faz algum tempo que não te aborrecia com trabalho deste género. Andei à procura nos recantos da memória e encontrei meio amarelas, mais umas histórias passadas na Guiné no período, 1970-1972, dando mais um contributo para o enriquecimento do património histórico e social da nossa Tabanca Grande. Se achares conveniente faz o favor de as publicar.

Em fins de 1970 (Outubro?), apresentou-se no Grupo de Artilharia n.º 7 (GA7) o Senhor major Gaspar, acabado de ser promovido, para assumir as funções de 2.º comandante do Grupo. O major Gaspar também conhecido por Gasparinho, comandava a Companhia de Artilharia 3330, estacionada em Nhamate e mais tarde em Bula. Era uma Companhia independente, cuja unidade mobilizadora foi o extinto Regimento de Artilharia n.º3 (RAL n.º3) em Évora.

O comandante do GA7 era o Senhor tenente-coronel Ferreira da Silva que tinha por alcunha o Assassino da Voz Meiga, porque ao dirigir-se aos seus subordinados fossem eles oficiais, sargentos ou praças tinha por hábito tratá-los por “filho”; "Ó filho isto, ó filho aquilo"... mas na hora de administrar a justiça e disciplina (RDM) era um “pai” pouco meigo.

Um dia tratou o major Gaspar por “filho” e, como este gostava pouco de paternalismos, terá advertido o comandante que pai só tinha um e que não admitia que o voltasse a tratar com tal “afecto”.

Devido ao feitio do comandante, ou talvez não, o certo é que não morriam de amores um pelo outro e segundo se dizia tinham muitas divergências e acesas discussões.

No dia de todos os Santos era tradição fazer-se uma formatura geral com representantes dos três Ramos das Forças Armadas em frente ao Palácio do Governador da Província, salvo erro.

A representação do Exército coube ao GA7 com a incumbência de enviar uma força para a cerimónia do dia de finados, força essa, que sob a responsabilidade do major Gaspar terá chegado ligeiramente atrasada ao local da formatura,  o que desagradou profundamente ao comandante perante o olhar das altas entidades.

Como cmdt e responsável máximo, o ten cor  Ferreira da Silva terá feito uma chamada de atenção ao major Gaspar, que não tendo gostado da “repreensão” em público, desatou aos berros e com insultos ao cmdt, sendo retirado do local por um oficial conhecido, pondo termo ao espectáculo deplorável!

Para quem conhecia a personalidade do major Gaspar, aquilo foi uma atitude perfeitamente natural em linha com o seu temperamento. Para a época era, ou parecia ser, um oficial desinibido, frontal e, por vezes, desafiador da disciplina. Dizia-se que na sua folha se serviços tinha tantos louvores como castigos e que gozava de alguma simpatia, junto do Senhor General António de Spínola, devido às suas características peculiares.

No regresso à Unidade os dois comandantes discutiram o incidente anteriormente ocorrido, tendo ambos chegado, ou quase chegado, a vias de facto e a situação só não foi mais grave, porque um oficial se intrometeu entre os dois.

Perante a insubordinação do major Gaspar o cmdt mandou chamar o Sargento da Guarda para prender o major, mas este dizia ao 1.º sargento que não podia prendê-lo, porque não estava em flagrante delito. 

Este episódio durou algum tempo em que um mandava avançar o Sargento da Guarda e o outro mandava-o recuar... Houve até quem dissesse que o sargento da guarda,  impaciente e nervoso,  terá suplicado: "Meus comandantes, decidam-se lá, porque, segundo o Regulamento, o comandante da guarda não pode abandonar, o distrito da guarda, por muito tempo". Tal era o desconforto…!

Face ao sucedido o escalão superior procedeu ao respectivo processo disciplinar e criminal, acabando os dois por serem punidos com penas de prisão.

Contam-se muitas histórias a respeito do major Gaspar, o Gasparinho,  e que ainda hoje são motivo de boa disposição entre camaradas que tiveram o privilégio de servir sob o seu comando na Guiné. A propósito, socorrendo-me da memória aí vão três deliciosas:

1. Na época das chuvas os abrigos/locais de trabalho do major Gaspar e do seu 1.º sargento ficaram completamente inundados. O diligente major Gaspar (ainda capitão) não perdeu tempo e enviou um rádio (mensagem) para o escalão superior, solicitando com máxima urgência dois escafandros para entrarem nos abrigos, visto nem ele, nem o 1.º sargento saberem nadar…

2. A certa altura o pessoal do BEng 447 foi colocar chapas de zinco nos telhados das casernas (barracões?) da companhia. Passados uns dias um tornado muito forte arrancou as ditas chapas e nunca mais ninguém as viu. O inevitável capitão Gaspar perguntou ao BEng por mensagem mais ou menos nestes termos: Solicito informe se chapas colocadas nesta em tal data… regressaram à sua Unidade de origem…

3. Também se dizia que o seu substituto na companhia um dia telefonou-lhe a perguntar se tinha assuntos pendentes para resolver, ao que o major Gaspar respondeu que pendente só tinha os tomates…

Um homem com estas atitudes só podia ser diferente e muito considerado pelo seu refinado sentido de humor. Humor que em tempos de guerra é necessário e fundamental para o moral das tropas. Nem só de pão vive o homem…

Esta também é gira: O comandante um certo dia, depois do almoço, foi ver o andamento das obras a decorrer no quartel e ao aproximar-se do sargento encarregado das mesmas, disse:

- Ó filho as obras não andam?

Ao que o sargento respondeu:

- Saiba V.Exª. meu comandante, que as obras não têm nem nunca tiveram pernas para andar.

Perante tal resposta o cmdt da CCS teve de interceder pelo sargento (que nesse dia devia estar com os azeites) mas ainda assim foi de castigo, para o mato, uns meses.

Nota 1: O original das histórias é capaz de estar um bocado adulterado, devido ao muito uso, mas penso que o essencial está intacto.

Nota 2: O GA7 era uma Unidade de Guarnição Normal sediada em Bissau - Santa Luzia. Recebia militares de rendição individual (nomeadamente oficiais, sargentos e cabos especialistas); os soldados na sua larga maioria pertenciam ao recrutamento da Província e tinha à sua responsabilidade os pelotões de Artilharia de Obus 14, 11,4, 10,5 e 8,8 cm, respectivamente, disseminados pelo TO da Guiné, assim como as Baterias de Artilharia Antiaérea.

Infelizmente, o major Gaspar já faleceu. Curvo-me perante a sua memória e paz à sua alma.

Linda-a-Velha, 29 de Junho de 2009

Um abração para todos os camaradas de armas, da Tabanca Grande, espalhados pelo mundo com votos de muita saúde.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)






Guiné > Região do Oio > Nhamate > CART 3330 > 1971 > Uma peça de antologia do humor negro... castrense: O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA! (1) ...

Repare-se no circuito da informação: uma simples mensagem, que devia ser de rotina, a pedir o apoio da Engenharia para se proceder a obras de reparação num aquartelamento (?) do interior, seguia para 6 destinatários, incluindo três repartções do Com-Chefe!!!... Digam-me lá como se podia ganhar a guerra com tantos relés parasitas, porteiros, gate-keepers, típicos do disfuncionamento burocrático! ... De um exército em armas (que chegou aos 40 mil) quantos não haveria, do cabo ao argento, do tenente ao coronel, com funções amanuenses, ligados à gestão da informação ?

Milhares de homens, mangas de alpaca militares, escreviam notas como esta (seguramente menos geniais, divertidas, contundentes, demolidoras, corrosivas... como esta!), batiam-nas à máquina, expediam-nas, classificavam-nas, arquivavam-nas, retinham-nas, guardavam-nas na gaveta, analisavam-nas tardiamente, reencaminhavam-nas tarde e a más horas para o nível superior da hierarquia militar... Enfim, a maior parte das vezes estes homens não comunicavam devidamente, não recebiam resposta ou feedback positivo, continuavam perdidos e sós, nas Nhamates do mato da Guiné...

Pela primeira vez oiço falar em Nhamate... Será que a sorte dos homens que estavam em Nhamate melhorou ? Será que nenhum morreu afogado na época das chuvas ? Será que nunca lhes faltou o tabaquinho e a água de Lisboa ? Será que a Marinha seguiu mesmo ? E o Gasparinho (que ternura de nome, posto pelos seus pares!) não terá acabado na psiquiatria ? Vejo que morreu cedo, coitado, em 1977... Um homem que tratava por Frederico da Prússia por Fredy merecia um estátua em Nhamate!

Tenho alguma relutância em classificar em poste na série Humor de Caserna... Embora ligeiro, soft, é o título que me acorreu primeiro (2)... Mas podia ser outro qualquer, mais contudente, mais duro, mais agressivo, mais próximo do tempo e do lugar, algures na Guiné, longe do Vietname, como eu ironicamente costumava escrever, distinguindo Bissau e a guerra do ar condicionado, do resto, o inferno do mato... (LG).

Guiné > Região do Oio > 1970 > CCAÇ 13 > "Localização dos aquartelamentos de Bula, Binar, Nhamate, Manga e Unche, bem como a principal base da guerrilha no Choquemone, a uns escassos 4 Kms de Binar" (CF)...

Foto: Cortesia de Carlos Fortunato, Fur Mil CCAÇ 13 (1969/71), o melhor sítio na Net sobre companhias individuais que fizeram a guerra da Guiné > Guerra na Guiné - Os Leões Negros > CCAÇ 13, Binar, 1970.

Guiné > Região do Oio > Binar > Nhamate > CCAÇ 13 > 1970 > Tratava-se de um reordenamento, tendo a população sido substraída ao controlo do PAIGC. As NT tiveram que construir um aquartelamento de raíz. Vivia-se em tendas. " A nossa missão junto da população foi calma, em geral mostrou-se afável e colaborante, embora fosse clara a tristeza por abandonarem a sua antiga casa. Notou-se alguma influência da guerrilha, pois dois elementos da população (guerrilheiros?) chegaram a desafiar abertamente a nossa autoridade, um acabou por ser preso e o outro por ser morto, depois destes incidentes, as relações com a população foram sempre excelentes. Este reordenamento, tinha não só o objectivo de retirar a população do controlo do PAIGC, mas também de reforçar a defesa nesta zona, dado que com os novos foguetões 122mm, seria fácil à guerrilha atingir Bissau a partir daqui" (CF).(3) Foto de Adrina [ou Adriano ?] Silva, ex-Mil da CCaç 13.

Foto: Cortesia de Carlos Fortunato, Fur Mil CCAÇ 13 (1969/71), o melhor sítio na Net sobre companhias individuais que fizeram da Guiné > Guerra na Guiné - Os Leões Negros
> CCAÇ 13, Binar, 1970. 

Ainda hoje o Carlos mantém com os seus antigos soldados (balantas, essencialmente) uma relação de grande afecto e carinho, bem como com os seus antigos camaradas. O último encontro (o 8º da CCAÇ 13) foi no passado dia 26 de Maio, no Lordelo, Guimarães. E o próximo será nos Açores.



Guiné > Região do Oio > Binar > Nhamate > 1970 > CCAÇ 13 > Spínola de visita ao reordenamento de Nhamate, cumprimenta o capitão Durão (Cap Mil Inf Álvaro Alberto Durão, o primeiro capitão da CCAÇ 13, 1969/71). 

Foto de Adrina [ou Adriano ?] Silva, ex-Fur Mil da CCaç 13. A Companhia passou por Bissau, Bolama, Bissorã, Encheia, Binar e Biambi. Foi substituída, em Binar, em finais de Março de 1970, pela CCAÇ 2658, que terá mais tarde, numa coluna de Nhamate a Binar, 8 mortos.

Foto: Cortesia de Carlos Fortunato, Fur Mil CCAÇ 13 (1969/71), o melhor sítio na Net sobre companhias individuais que fizeram da Guiné > Guerra na Guiné - Os Leões Negros
> CCAÇ 13, Binar, 1970


1. Mensagem de António José Pereira da Costa, coronel de artilharia ainda no activo, membro da nossa tertúlia, desde Dezembro de 2007:


Amigos Combatentes (e não só):

Aqui vai uma nota escrita pelo célebre major Gaspar que inventou aquela expressão que ainda hoje usamos: Siga a Marinha!

In Os Anos de Guerra: 1961 - 1975: Os portugueses em África: Crónica Ficção e História. Organização de João de Melo - II Volume. S/l: Círculo de Leitores 1988. 190 (reproduzido com a devida vénia...).

Leiam-na com atenção e vejam se ela não é um tratado de logística da Guerra Colonial. É de um humor amargo, mas era a verdade.

Um Abraço
António José Pereira da Costa

2. Fixação e revisão do texto do documento: LG

Mensagem nº 125/71 [classificada como Confidencial, Urgente), enviada pelo Comandante da CART 3330, SPM 6928, Cap Art José Joaquim Vilares Gaspar, dirigida ao Comandante da Engenharia, com conhecimento a CAOP1, RepOper/Com-Chefe, RepPop/Com-Chefe, RecAcap/Com-Chefe, e BCAÇ 2928. Entrada na Secretaria do Batalhão de Engenharia, nº 306, em 22/3/71.
Nhamate, 18 de Março de 1971.

Assunto - Quartel em Nhamate (ou mais propriamente abarracamento)

1. Exponho a V. Excia um dos assuntos mais vitais para a continuidade militar e humana de NHAMATE [, a leste de Binar: vd. carta de Bula].

2. Passo a descriminar [sic, em vez de discriminar]:

a) DEPÓSITO DE GÉNEROS: Quando ch0ver fico sem pão pelo menos 15 dias. Julgo que não é muito agradável. Informo V. Excia que não como pão. Gordo estou eu.

E os outros géneros ? E os autos subsequentes ? Só problemas.

b) CASERNAS: Barracas de lona, todas oficialmente dadas incapazes. Na Birmânia, viveu-se assim 1 ou 2 meses. Os quadros vivem-no há 10 anos. E os milicianos (os meus, de certeza) “dão o litro” até ao fim. Os soldados dão tudo. Há que tudo lhes dar, na medida do possível.

c) CANTINA: E o tabaco ? Desde Napoleão e Fredy [diminuitivo de Frederico] da Prússia que o tabaco era uma das bases da eficiência do Exército. Como combater ou trabalhar sem o velho cigarrinho ? E outros géneros ? V.Excia, mais experiente, meditará sobre o assunto.

d) CASERNA DE CIMENTO: Único exemplar. Vou demoli-lo. Não tenho materiais. Solicito auxílio Engenharia.

e) MESS [sic, em vez de Messe]: Desde o início das chuvas desnecessita de garrafas de água. Basta as mesmas estarem abertas. Ponchos e gabardinas já temos.

f) CHAPAS DE ZINCO: Ao mínimo vento já voam no Quartel.

g) GABINETE D COMANDANTE E 1º SARGENTO: Com as chuvas eu e o 1º Sargento só temos a solução de entrar de escafandro, visto estar a 2 metros abaixo da superfície do solo.

h) O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA!

3. Este quartel tem se ser revisto por um Oficial de Eng[enharia], senão começo a construir um novo com os materiais dos REORD[ENAMENTOS], contra a norma, o que é aborrecido, contende com a disciplina e eu não gosto.

4. Agradecendo a boa atenção de V. Excia., gostaria de aqui ter como convidado um Senhor Oficial de Eng[enharia] a fim de concordar ou condenar as minhas asserções supras.

Cumprimento,

O Comandante,
José Joaquim Vilares Gaspar, Cap Art


_________

Notas de L.G.:


(1) Vd. postes anteriores sobre esta expressão celebérrima expressão da caserna militar Siga a Marinha:

30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1133: Origem da expressão 'Siga a Marinha" (Vitor Junqueira
)

1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1134: A expressão 'Siga a Marinha' , atribuída ao Zé Gaspar, artilheiro, Olossato (Paulo Santiago)


1 de Outubro de 2006 >Guiné 63/74 - P1135: A expressão 'Siga a Marinha' e a crise dos capitães (Sousa de Castro)


1 de Outubro de 2006> Guiné 63/74 - P1138: 'Siga a Marinha': uma expressão do tempo da República (?) (Pedro Lauret)


11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1166: A minha preguiça e a expressão 'Siga a Marinha' (Mário Dias)


11 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2341: Siga a Marinha que o Exército já lá está (Coronel Pereira da Costa)


(...) Esta frase foi inventada pelo capitão José Joaquim Vilares Gaspar, mais tarde major, ainda na Guiné (...) e falecido por volta de 1977. Era o célebre Gasparinho de Quibaxe (Angola) de quem se contam muitos ditos e anedotas, quase todas verdadeiras, embora incríveis.

(...) Siga a Marinha que o Exército já lá está e Força Aérea já anda no ar há meia-hora.Era assim que ele a dizia. Talvez um desabafo ou uma crítica ou até um bordão para se sentir vivo. Não o dizia com qualquer espécie de humor. Conheci-o bem. Era um homem sério,muito inteligente, bom condutor de homens e com uma capacidade de crítica muito apurada, mas que bebia bastante. Além disso, a inteligência e a capacidade de crítica são uma mistura explosiva...

(2) Vd. postes desta série:

9 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2337: Humor de caserna (4): Cancioneiro do Niassa: O Turra das Minas (Luís Graça)


1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)


26 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2304: Humor de caserna (2): Welcome to Mansambo, a melhor colónia de férias do ano de 1968 (Torcato Mendonça / Luís Graça)


23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)