sexta-feira, 3 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14432: Notas de leitura (699): “Elefante Dundum – Missão, testemunho e reconhecimento”, por João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, 2006 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
O Major Mendes Paulo chega a Piche e volta a sonhar com carros de combate, material satisfatório para aquelas picadas sem fim daquele ermo do Leste. Spínola apoia-o, o Ministério da Defesa Nacional entrava o processo, dá-lhe viaturas Chaimite com armas que encravavam, desapontamento maior não podia haver.
E segue-se a ação Mabecos, um desastre, um monumento à incompetência dos seus superiores. Ele decide pôr termo à carreira militar. É punido e louvado, algo que eu também experimentei.
O mais edificante deste livro não é o amor aos carros de combate, é o apreço que ele denota em cada página pelos seus soldados.
Não percam esta leitura.

Um abraço do
Mário


O senhor M5A1: A história prodigiosa do Elefante Dundum (2)

Beja Santos

O Major Mendes Paulo quando chega à Guiné é colocado em Piche, recorda os carros de combate M5A1, que usara com sucesso em Nambuangongo.

Em “Elefante Dundum, Missão, Testemunho e Reconhecimento”, edição de autor, 2006, este oficial de Cavalaria descreve ao pormenor como lhe negaram esse sonho, oferecendo-lhe em alternativas viaturas Chaimite, que se revelaram inadequadas ao terreno. Será na Guiné que irá descobrir que a sua carreira militar chegou ao fim.

Descreve o dispositivo do Batalhão colocado em Piche e com elevado sentido de humor conta como os soldados respondiam de forma sugestiva e humorística à falta de meios. Um pórtico assinalava o “Aeroporto Internacional de Canquelifá”; neste destacamento havia o Largo do Patacão, mas também o beco das necessidades e uma tabuleta colocada numa chapa de bidão:

Noites Festivas de Canquelifá
Programa
Rajadas de Longo Alcance
Corrida para as Valas
Concurso de Palavrões
Salva de Foguetões e Morteiros
Pirotecnia Variada
Com a simpática colaboração do PAIGC

Não demorou a que Mendes Paulo entrasse em litígio com o CAOP 2, ver-se-á adiante o seu desfecho. Confrontado com os graves problemas a que eram sujeitas as colunas auto, obrigadas a laboriosas picagens para a deteção de minas, Mendes Paulo apercebe-se que os M5A1 fariam ali um jeitão. E dá-se a circunstância de Spínola, informado das propostas de Mendes Paulo para trazer carros de combate para a Guiné, convocou de urgência para Bissau. O Comandante-Chefe começou a conversa nos seguintes termos: “Vamos direitos ao assunto. Preciso de blindados para manter abertos os itinerários principais. Empenhamos cada vez mais meios aéreos para garantir a segurança. Dizem que não há mais blindados e que já compraram tudo o que podiam. Conte lá essa história dos M5A1 no norte de Angola”. Mendes Paulo contou.

Vem até Lisboa e dirige-se até ao Ministério da Defesa Nacional. Começaram a chover as objeções: cada revisão de um M5A1 custaria mais de 200 contos e, pior do que tudo, eram material NATO. Mendes Paulo protesta, aquilo é material obsoleto. Há depois uma conversa entre Spínola e o interlocutor de Mendes Paulo. O Ministro da Defesa Nacional manda fornecer quatro viaturas Chaimite e preparar pessoal apropriado.

E começaram a surgir problemas com armamento: as metralhadoras HK-21 encravavam, pediu para se usarem as Browing-30, iguais às do M5A1, responderam que não, que era material NATO. Mendes Paulo sente saudades dos M5A1, com tudo no sítio – metralhadoras, canhão, rádios, intercomunicação, motor auxiliar e até, luxo máximo, giro estabilizador e rotação da torre elétrica hidráulica. Onde as Chaimite davam provas francamente positivas era na capacidade anfíbia, mas não tinham armamento capaz nem rádios eficientes. Na demonstração em João Landim, em fevereiro de 1971, as Chaimite desiludiram, o espetáculo foi um fiasco, salvou-se a demonstração da capacidade anfíbia. Enfim, foram mais cinco blindados para reforçar os parcos meios do Esquadrão de Bafatá.

O azedume com o CAOP 2 era notório e patente. E é nisto que surge a ação Mabecos. Tratava-se de uma ação de artilharia, o BCAV 2922 devia fornecer a devida escolta às peças. Estudaram-se os itinerários e o apoio aéreo. Os planos pareciam em boa conformidade, o CAOP 2 adia a ação. Para Mendes Paulo, tinha-se perdido a surpresa, o inimigo ia perceber qual era a missão, acabava o segredo, estariam à espera da força que ia sair de Piche. Ordens e contraordens. Para agravar a situação, rebentou uma granada numa caserna, morreram três homens. Caía a tarde quando começou a ação Mabecos.

Não demorou a terem pela frente os guerrilheiros do PAIGC, é um bigrupo fortemente armado. Rebentam granadas por toda a parte. Os artilheiros guineenses de Canquelifá abrem fogo com o 14, em tiro direto. Vai por ali tropa novata. O IN acaba por retirar. O soldado Duarte Dias Fortunato será feito prisioneiro pelo PAIGC, será libertado depois dos acordos de 1974, mas salvou da morte certa o seu comandante, o Alferes José Augusto Rodrigues. O IN vinha com vontade de destruir toda aquela artilharia, e depois daquele vendaval de fogo, retiraram com mortos e feridos e um elemento valioso, um soldado português capturado. As tropas reagrupam-se. O autor descreve a situação:
“Desloquei-me às apalpadelas até ao improvisado posto de socorros, na caixa de um dos Unimog. Felicito o 1.º cabo Louro.
- Como está o alferes Rodrigues? É grave?
- Cego deve ficar, tem várias feridas de estilhaços, estão lá dentro…
- Ele sabe?
- Desconfia.
- E o estado dos outros?
- O Faria é o pior, continua a perder muito sangue. Os outros safam-se.
Fiquei ali, era a primeira vez que falava com o Alferes Rodrigues depois da emboscada. Lembrava-se do Fortunato a disparar a G3 de rajada, os guerrilheiros a avançarem aos gritos. Acordou com o Louro a arrastá-lo para a bolanha e a dar-lhe morfina. Tentei animá-lo, já passou, ia ficar bom, era mais o susto.
- E o outros?
É espantoso: ligadura na cara, braço ao peito, a primeira preocupação era com os seus homens”.

E vem o mais condoído, comovente parágrafo desta bela obra, o momento em que se toma a decisão irrevogável de fechar o livro da carreira militar:

“Era a noite mais longa de todas as noites. Os três mortos em Piche, a emboscada, o sofrimento do alferes Rodrigues e dos outros feridos. Depois, a raiva de ter previsto o que aconteceu. Como podemos ter crédito perante o nosso pessoal quando todos os que tinham dois dedos de testa viram os erros cometidos?

A missão é imperativa. Aprendi, ensinei, cumpri. Expliquei muitas vezes que nos pode parecer estranha uma determinada missão e, no entanto, quem a ordenava teria mais dados e saberia o que estava a fazer. Até aqui nunca tinha posto este princípio em causa.

Noite fora, senti uma vida inteira a passar em ritmo lento. Das primeiras memórias, correndo pela horta da aldeia do Gavião, despreocupado e feliz, quando caçar um grilo na sua toca era o alvo apetecido de cada dia; até Cascais, com cinco filhos e uma mulher que amava – tudo aparecia filmado à minha frente. A correria virou marcha, com a tropa sempre em primeiro lugar. Casámos em julho, em março seguinte já estávamos em Goa, num distante quartel de Valpoy. E depois Moçambique, Angola e agora a Guiné, com a Beira e a academia nos intervalos.

Que estás tu aqui a fazer, no meio da noite, numa bolanha perdida, com nove canhões, bouum, bouum, bouum, a cada minuto? Monco caído, moral em baixo, orgulho ferido, quiseste armar em bom e comandar a escolta dos nossos coronéis, convencido de que ias dar uma lição ao PAIGC…
Primeira ilação: os supostos comandantes nunca iriam comandar, fosse na ficada, de avião ou no quartel. Segunda ilação: nunca devia ter contado com o apoio aéreo. Terceira: teria de confiar apenas na nossa tropa e experiência – e aqui a maior revolta, por ter iniciado a ação a uma hora contrária a todas as normas, quer de ordem operacional, quer de segurança”.

E Mendes Paulo chega à vida civil. O livro está profusamente ilustrado, é um registo pessoal que todas as suas comissões e do seu desvelo incontido aos carros de combate.

E não esqueçamos o Elefante Dundum a propósito do carro elefante que apanhou de surpresa a UPA/FNLA. Livro empolgante, sem margem de dúvida.
____________

Nota do editor

Poste anterior de 30 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14418: Notas de leitura (698): “Elefante Dundum – Missão, testemunho e reconhecimento”, por João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, 2006 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14431: Parabéns a você (883): Álvaro Vasconcelos, ex-1.º Cabo TRMS do STM (Guiné, 1972/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de Abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14425: Parabéns a você (882): Carlos Pedreño Ferreira, ex-Fur Mil Op Esp do COMBIS e COP 8 (Guiné, 1971/73)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14430: Convívios (661): Pessoal de Bambadinca 68/71: Trofa, 30 de maio de 2015 (Silvino Carvalhal / Fernando Sousa)


´


_____________

Guiné 63/74 - P14429: Blogpoesia (411): A Estrada do Tempo (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do dia 27 de Março de 2015, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), fez chegar ao Blogue este belo poema dedicado a quem vai somando anos à vida nesta caminhada terrestre:


A estrada do tempo

Os dias vão morrendo,
Velozmente,
À sombra do sol poente,
E eu caminho pela tarde acima, lentamente,
Seguindo a estrada do tempo,
Levo comigo um corpo já cansado,
E deixo para trás, o caminho do passado
Perdido no campo árido da saudade.

A estrada do tempo,
Caminha a largo passo
À minha frente,
Marcando-me na face
A vida que me resta
Em forma de rugas,
Empurra-me para a meta da partida
Que me levará para a “outra vida”,
E não me permite fugas.

Assim me foge o tempo para viver,
Aquele regaço de dias
Que Deus me deu ao nascer
No ventre de minha mãe,
Alegremente,
Dias, que vão morrendo um a um
Velozmente,
À sombra do sol poente.

José Teixeira
____________

Nota do editor

Último poste da série > 31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14423: Blogpoesia (410): Sobre um poema de Herberto Hélder (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14428: Os nossos seres, saberes e lazeres (82): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte II) (Luís Graça)





Berlim > 21 de março de 2015 > Centro de Documentação "Topografia do Terror"Localização: Niederkirchnerstraße 8
10963 Berlin, metro:Potsdamer Platz ou Kochstraße


Exposições permanentes (em alemão e inglês) > das 10h às 20h, todos os dias, entrada gratuita

Interior >  Topography of Terror: Gestapo, SS and Reich Security Main Office on Wilhelm- and Prinz-Albrecht-Straße

Exterior > The Historic Site “Topography of Terror.” A Site Tour in 15 Stations


Mais de um milhão de pesoas visitaram em 2014 o Centro de Documentação  “Topograpia do Terror".... Durante o chamado  “Terceiro Reich” (1933-1945),  as instituições do terror nazi estavam aqui localizadas: a sede da GESTAP0, a Polícia Secreta,  das SS e da Segurança do Reich (na II Guerra Mundial)... Hitler e os seus colaboradores mais próximos tinham, por aqui perto, os seus gabinetes e mais tarde, com a guerra, os seus "bunkers"... Foi no seu "bunker", algures por aqui, que Hitler se suicidoou... Estamos a 1,5 km do antigo Reichtag (o parlamento que ois nazi incendiaram em 1933), e das portas de Brandemburgo...

No tempo da RDA (República Democrática Alemã) foi tudo arrasado... Hoje há apenas restos arqueológicos dos edifícios (de resto, destruídos pelos bombardeamentos e combates no final da II Guerra Mundial) e uma exposição permanente sobre a ascensão e queda do nazismo e os crimes, dentro e fora da Alemanha... Para que as gerações mais novas, na Alemanha, na Europa, em todo o Mundo, não esqueçam...

O Centro de Documentação e o espaço museológico à volta ficam a escassos 350 metros da cosmopolita Potsdamer Platz, com entrada junto ao edifício Martin Gropius... O muro de Berlim (1961-1989) também passava por aqui...

Passei algumas horas da tarde chuvosa de 21 de março a visitar esta exposição... A profusão e a riqueza da documentação fotográfica abarcam praticamente todos as dimensões do regime totalitário a que Hanna Arendt (1906-1975) chamou o "mal absoluto"... Saímos deste lugar acabrunhados... Mas ao mesmo tempo orgulhosos do que há de melhor nos seres humanos, os que souberam e conseguiram resistir: alemães e outros representantes de outros povos que tiveram a  coragem e a lucidez de lutar contra esta monstruosidade...

Aqui ficam algumas fotos (e respetivas legendas em inglês) que tirei da exposição, e que reproduzo,  com a devida vénia, com um fim meramente informativo e didático (*)... A "Topografia do Terror" é um dos locais da memória de Berlim, da Alemanha, da Europa e do Mundo, que é obrigatório visitar. O acesso é gratuito, e está aberto das 10h às 20h. (**).

Devo acrescentar que achei, de um modo geral, os berlinenses simpáticos e afáveis, dos meus contactos (superficiais) com eles, como turista... O turista é bem vindo a Berlim, o turismo cria empregos... Cerca de 14% da população de Berlim é estrangeira. sendo metade de origem turca... Em relação ao passado (nazismo, holocausto, guerra, muro de Berlim...) julgo que eles estão a saber fazer a gestão desses traumas.... Há uma expressão em alemão para isso: Vergangenheitsbewältigung, saber lidar com o passado... 

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados




1933> Hitler sobe ao poder... democraticamente, sob a República de Weimar,  para logo a seguir destruir a demcracia... A GESTAPO e as SS serão o principal instrumento do terror nazi.




1933 > O início do Reich dos Mil Anos... Desfile nazi, c. março de 1933




1941 > Mogilev > Conquistadores e conquistados...




Cartaz para o "Dia da Polícia Alemã" (1941)






Outubro de 1941 > Execução, pelo exército alemão, de prisioneiros civis sérvios... Na sequência da morte de 22 soldados alemães, atribuída á resistência sérvia, foram executados, em represália, 2100 (!)  sérvios (na maior parte, judeus, comunistas e ciganos)...



1945 > Campo de concentração de Bergen-Belsen > 19 de abril de 1945 > Guardas femininas das SS,  feitas prisioneiras pelo exército britâncio... Três delas serão depois condenadas à morte e executadas.




1945 >  Berlim > Abril/maio... Captura de um elemento SS... 


1945 >  Uma criança nas ruínas de Berlim



Alemanha > 12 de março de 1945 > Cartaz de propaganda do exército dos EUA: granadas decoradas com as palavras "Feliz Páscoa, Adolfo" e "Ovos da Páscoa para Hitler".

_____________________

Guiné 63/74 - P14427: Os nossos seres, saberes e lazeres (81): Mau tempo no canal: do Faial ao Pico, ali perto está S. Jorge (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Pela primeira e talvez última vez na minha vida, fui duas vezes numa semana aos Açores.
Aqui vos deixo o relato da ida ao Pico, com mau tempo no canal, a montanha cheia de forro, impossível de fotografar, seria blasfémia reproduzir o que vem nas brochuras turísticas. Havia ventania a rodos, o avião foi parar à Horta, seguimos para a Madalena, passeei ao fim do dia.
Na manhã seguinte, deu para ir a S. Roque, havia luz, parecia que S. Jorge queria que eu lá fosse e eu cheio de saudades pelas férias que lá passei com as minhas queridas filhas.
Espero que gostem.
Estou sempre pronto para regressar àquelas ilhas de que me sinto cativo e nativo.

Um abraço do
Mário


Mau tempo no canal: do Faial para o Pico, ali perto está S. Jorge (1)

Beja Santos

A viagem da Portela até à aproximação do Pico foi muito agradável. Depois mandaram apertar os cintos, o focinho da aeronave enterrou-se no algodão das nuvens e avisaram aterragem para breve. Mas não houve aterragem nenhuma, parecia voarmos no vento ciclónico, subíamos e descíamos em autêntica montanha russa, o comandante pôs a aeronave a circundar à volta, certamente à procura de que aqueles amaldiçoados ventos cruzados desaparecessem. Foram minutos de suspense, avistava-se o Faial e S. Jorge, mais de perto e mais de longe, até que o comandante informou que íamos aterrar na Horta. Por pura coincidência, ia na altura na página 157 da quarta edição de Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, para mim a mais importante obra-prima da literatura portuguesa dos primeiros 50 anos do século XX, tudo isto é subjetivo, cada um responde pelos seus gostos, no que me toca não conheço melhor.

O comandante anunciou a mudança de destino e eu li no romance de Nemésio: “E o Pico sem tirar o seu capote e capelo das tardes acinzentadas em que parece haver fios entre as nuvens e os nervos”. É um romance soberbo, tem uma organização sem igual, famílias decadentes e ascendentes, amores malogrados, o território particular do triângulo Faial-Pico-S. Jorge, a região do Canal, transformado num território universal, com chuvas diluvianas, mar encapelado, os Dulmos, os Garcias, o Barão da Urzelina, o linguajar do povo, a Lisboa do ditador Sidónio, a tia-avó Secundina e a sua língua desbragada, as conversas cochichadas, os Clark, símbolo da presença britânica desde o ciclo da laranja, inevitavelmente a pesca da baleia, mas também há a peste, a vegetação e o tempo, o mau tempo do canal… Metaforicamente, a ascensão e a queda da riqueza, a sua passagem de testemunho, o romantismo em confronto com a industrialização e a fúria demolidora dos negócios, o misticismo religioso dos açorianos e a sua curiosidade intelectual, exposta no livro como expoente do naturalismo. Margarida Dulmo acaba por se envolver na pesca à baleia, um dos momentos mais empolgantes da escritura de Nemésio, o manejo talentoso do mundo local:
“Vendo a golfada de um grande cachalote perto, o João da Cezilha meteu a antegalha, arreou a vela e o mastro, que emechava de dobradice, e empunhou o remo de esparrela. Os baleeiros encaixando os remos no fundo da canoa, armaram as seis pás. E, sem pinga de sangue, contendo o fôlego, como uma quadrilha de gangsters à beira de um golpe desesperado, aproximaram-se do Leviatã”.
Uma pausa na obra-prima de Nemésio. Já estamos no cais da Horta, vamos de embarcação para a Madalena, na ilha do Pico. Toca de juntar material sobre o que está a viver e a ler.


A ilustração desta obra-prima é de outro mestre, neste caso das artes gráficas, do desenho e da aguarela, Bernardo Marques, felizmente que não está esquecido.


É uma das últimas recordações da arte dos baleeiros, estes trabalhos em osso, há hoje artífices que os reproduzem, são obras vibrantes da caça à baleia e da vida dura do caçador.



Estamos pois no cais da Horta, ao fundo avista-se o Monte da Guia, por detrás é Espalamaca, e depois Porto Pim, vem tudo no romance de Nemésio, as águas não estão revoltas, mas já se sente a ventania, dentro em breve holandeses, britânicos e alemães vão andar com estômago revoltado, vão ceder ao enjoo, tenham paciência, são trinta minutos de tormenta.


O que nos espera é isto, a lava batida pela fúria do mar, irei adormecer à noite com estes gemidos, por vezes roncos que tudo fazem estremecer. A montanha do Pico está encastelada de nuvens, dou a palavra a Nemésio: “O Pico estirava no negrume a sua enorme massa de lavas, que o dia costumava pintar docemente de lilás e de azul. O pico era aquilo: aquela Terra Santa aproada a Sueste e carregada de vinhas, de baldios, de barcos-de-boca-aberta, de bofage e de iscalho de baleia”. E ponto final neste extraordinário romance que se enrola na triste sina de Margarida Dulmo que juntará o seu nome aos barões da Urzelina, é a metáfora do velho nome com pergaminhos que se consorcia aos novos-ricos, tudo no triângulo do canal. E assim se chegou à Madalena, aqui nasceram o presidente Manuel Arriaga e o patriarca das Índias, D. José da Costa Nunes.


A Igreja da Madalena é singela, contempla o mar, e daqui a pouco o visitante vai ficar de boca abanda com os quilos de folha de ouro, não se brinca com o orago da terra, é tudo esplendor.


Altar-mor com a Santa a dominar o templo. É impressionante, e os azulejos também contam. E logo a seguir vem a grande surpresa para contento do viajante. Ora vejam.


Estes santos tinham também uma vertente didática, lembravam aos crentes a ascensão aos céus e a descida aos infernos. Mas o que aqui empolga o turista em viagem são as cores, os matizes e a advertência dos castigos. E fica a visita feita, a cicerone é natural para lá das Lajes do Pico, já avisou o viandante que temos pouco mais de uma hora de luz, é urgente retomar a viagem até à Criação Velha, espera ter uma agradável surpresa a dar ao seu acompanhante, quer mostrar-lhe o santuário de S. Mateus, prepare-se para o assombro.


Seguíamos viagem quando este contraste obcecou o fotógrafo amador, o contraste entre o amontado da lava e aquela luz diáfana entre nuvens em correria, dá para perceber porque existe este misticismo açoriano, esta espiritualidade sem rival, se não é assim é pelo menos a ilusão de quem capta a imagem.


Este é o moinho flamengo da Criação Velha, freguesia da Madalena. O viandante já andou a fotografar alguns currais, daqueles que fazem parte do Património da Humanidade, como decretou a UNESCO. O moinho está bem restaurado e muito bem situado, dá para imaginar o que foi a vida daqueles povoadores a conquistar uma natureza tão áspera, o terreno do Pico não tem paralelo com o das outras ilhas, aqui pontifica a lava e a montanha e florestas de faia e cedro, com muito incenso à volta. Este é o traço dominante da ilha que ganhou fama pela baleação e o seu verdelho, sempre presente à mesa dos czares, diga-se o que se disser o verdelho é o melhor aperitivo alcoólico do mundo.


A imagem é chocha, pretendia-se mostrar os currais e ao fundo a Criação Velha, ficou esborratada, havia necessidade de mais luz mas o fotógrafo amador estava tão embevecido com aquelas nuvens em viagem que pede desculpa pelo mal-entendido.


E lá fomos em correria até ao santuário, o evangelista parece caminhar para os céus, quem aqui entra vem cheio de devoção, acorrem crentes das ilhas e das Américas, é aqui que está o Senhor Bom Jesus Milagroso, abaixo da escala do Senhor Santo Cristo, mas que ninguém ponha em causa o seu poder de ajudar os aflitos.


A capela do santo não permite que seja fotografado, já para ali preside o lusco-fusco. Salva a situação a existência de pagelas, à disposição dos crentes. É esta pagela que nos salva da arrelia, pois era impensável ter vindo da Criação Velha, passando pela Candelária e chegar aqui a S. Mateus e não mostrar o seu orago tão estimado. E vem outra surpresa, nunca o viajante viu colunas tão floreadas, parece que estamos numa igreja da Toscana, o santuário excede-se em animação e cor.


Foi o que os últimos raios de sol permitiram, até se vê uma luz especial ao fundo do arco, foi a luz que atravessou a janela e que permitiu esta vivacidade, coisa rara em arcos e colunas nos Açores.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14424: Os nossos seres, saberes e lazeres (80): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra (Parte I) (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P14426: Brunhoso há 50 anos (4): A Páscoa (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 31 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos da Páscoa de antigamente na sua terra natal, Brunhoso.


Brunhoso há 50 anos

4 - A Páscoa

A Quaresma era o inverno das nossas vidas de meninos e adolescentes, depois do Natal, festa tão diáfana, tão alegre, do menino Jesus e da Sagrada Família, com prendas se bem que pobres, à medida da nossa pobreza mas que sendo as únicas, eram fantásticas. No período entre o Natal e o fim do carnaval havia tantas brincadeiras de garotos, o lançamento do pião, a bilharda, o arranca trigo, a louta, as raparigas tinham o jogo da macaca e outras. Logo após a terça-feira de Carnaval, essa grande festa pagã, com tanto desvario e diversão, caímos, mal dormidos como que empurrados por pecados que não sei se tínhamos cometido nas festas carnavalescas, na quarta-feira de cinzas, com missa bem cedo, era dia de trabalho, em que o padre Zé nos punha a cinza na testa, enquanto repetia a mesma advertência em latim: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" - "Lembra-te ó homem que és pó e em pó te tornarás". Em termos teológicos e filosóficos, esta será uma afirmação discutível, mas este blogue não é um concílio de bispos, nem uma ágora ou assembleia de filósofos.

Nesse dia todas as pândegas e excessos vínicos dos homens e rapazes, bem como as nossas brincadeiras de garotos passavam a ser pecaminosas por ofender ao sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo que tanto terá penado por nós, no Monte das Oliveiras, nas ruas de Jerusalém, na cruz, no gólgota ou calvário, há mais de 2000 anos.
Dias negros e sombrios, entre o Carnaval e a Páscoa, que iriam marcar as nossas vidas pela tristeza e pela culpa, para todo o sempre. Todos nós meninos, garotos e jovens, mais ou menos inocentes, tivemos que nos arrastar por esse túnel longo e escuro.

A Igreja ancestral, a velha Igreja institucional, pecaminosa e libertina, do poder imperial, temporal e espiritual, da Roma sagrada, depois confinada ao Vaticano, das guerras santas e cruzadas, da arte e da opulência, marcou-nos a alma com ferro em brasa, a nós filhos de Brunhoso e de tantas outras aldeias do vasto mundo, por pecados que ainda não conhecíamos.

A Igreja comandava a nossa vida espiritual dentro da moral rígida que esses bispos e padres formados na escolástica de S.Tomás de Aquino e no cantochão igualmente antigo, falando, nas igrejas, esse latim clássico que ninguém entendia, mas que dava mistério e pompa aos rituais solenes que se celebravam em igrejas e catedrais.

A quaresma, esse tempo de luto, em que o padre e toda a igreja se cobriam de roxo, era o tempo da penitência, da abstinência, das cruzes, das bulas, da desobriga tão exigente sobretudo para os homens que fugiam à confissão, como o diabo da cruz.

Para divertimento dos rapazes e exasperação das mulheres mais velhas, havia nessa época o ritual que numa noite, que não recordo, percorria toda a aldeia, que se chamava "o serrar das velhas" que imitando o barulho duma serra manual e fingindo um prolongado carpir, iam recitando quadras, das quais só recordo uma: "Estamos no meio da quaresma, sem provar o bacalhau, serramos esta velha, como quem serra um pau".
Achei sempre este ritual desumano e violento para as avós da nossa terra, não faço ideia qual será a sua origem.

Antes da Páscoa, no sábado de aleluia, o ambiente começava a desanuviar, deixavam de se ouvir as matracas que na semana santa convidavam os crentes para as cerimonias religiosas, para dar lugar a alguns toques de sinos, ainda tímidos.

Os sinos tocariam com entusiasmo e continuadamente a partir da meia-noite de sábado. Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitara e isso era motivo de júbilo para todos os cristãos. Os rapazes não iriam dormir nessa noite, atarefados em enfeitar o campanário da igreja com as melhores flores que encontrassem no campo, e em manter os sinos a tocar durante toda a noite e todo dia de Páscoa.

Saídos dos grandes fornos de lenha, esses grandes pães feitos de farinha, azeite, ovos, presunto, linguiça e toucinho, abençoados com gestos e rezas por essas sacerdotisas, nossas mãe, avós, irmãs, eram, continuam a ser, melhores, mais saborosos e mais divinos do que o pão ázimo da Páscoa dos judeus.

A festa da Páscoa já estava a ser preparada pelas mãos das mulheres que na sexta-feira ou sábado, faziam os folares.

Os fornos, aquecidos com giestas e estevas, eram como altares de fogo onde a alma dessas mulheres se elevava em preces de amor à família e a esse Deus que ressuscitava.

A Páscoa era a festa das flores, os rapazes davam o tom ao enfeitar o campanário, a festa do folar, a festa da primavera, a festa da renovação.

Os rapazes, os mais felizardos, vestiam fatos novos, tal como as raparigas, vestidos novos, nesse dia.

De muito novo e já adolescente, lembro-me de ir com amigos, amigas, irmãos, irmãs, primos e primas, a comer o folar pelos lameiros dos vales cheios de flores primaveris

Em Brunhoso, no tempo do padre Zé, que terá pastoreado a aldeia quase tantos como o Salazar governou o país, não havia visita pascal, ou compasso. Depois da morte dele, foi para lá um padre da terra que quis instituir essa cerimonia. No primeiro ano acabou por entrar em choque com a tolerância do povo que não lhe perdoou a facto de não ter entrado numa casa onde o homem e a mulher não eram casados.

Durante muitos anos não voltou a haver compasso em Brunhoso. A Páscoa, sempre a associei a prados verdejantes e floridos, ao renascer das folhas, das árvores e das flores, à grande festa da natureza, à festa da primavera festejada por muitos povos antigos e modernos de muitas culturas e religiões.

Pelo sabor do folar, pelo repicar dos sinos, pela família, a presente e a que já partiu, pela beleza renovada dos vales e dos montes, gosto muito de Brunhoso no dia de Páscoa, somente não fui lá em dois anos da minha vida, foram os dois anos que passei lá longe, na Guiné do nosso descontentamento mas que apesar disso nos deixou tantas saudades.

Boa Páscoa, um abraço.
Francisco Baptista

Fotos: Com a devida vénia a Brunhoso
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14399: Brunhoso há 50 anos (3): Festejos do Entrudo (Francisco Baptista)

Guiné 63/74 - P14425: Parabéns a você (882): Carlos Pedreño Ferreira, ex-Fur Mil Op Esp do COMBIS e COP 8 (Guiné, 1971/73)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14417: Parabéns a você (881): António Graça de Abreu, ex-Alf Mil do CAOP 1 (Guiné, 1972/74); Benjamim Durães, ex-Fur Mil Op Esp do BART 2917 (Guiné, 1970/72) e Rosa Serra, Alferes Enfermeira Paraquedista do BA 12 (Guiné, 1969)