Capa do livro de Ábio de Lápara pseudónimo literário de José António Paradela 1937-2023, "Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos", ed. autor, s/l, 2007, 77 pp. (CDU:
). Prefácio de Luís Graça.
Zé António, meu
querido amigo do peito, “meu mano”:
Já passaste
por este momento doloroso, a perda de alguém muito querido, um pai, um irmão,
um amigo… Ficamos sem palavras, tolhidos pelo choque da notícia. E depois, à
medida que os primeiros minutos e as primeiras horas passam, há um turbilhão de
emoções, antes de começarmos a fazer o processo do luto…
Agora somos
todos nós, a tua Matilde, o teu Marco, o teu Jorge, a tua família mais próxima
e os amigos, os muitos amigos que tu tinhas,
a encarar de frente a brutal realidade da tua perda, da tua morte
física…
É devastador
perder alguém que muito se ama… A nossa primeira reação é de denegação: não é
possível que o meu amigo do peito, o meu “mano”, tenha partido da Terra da
Alegria (para usar uma metáfora do poeta Ruy Belo) sem se despedir de nós…
Infelizmente,
a morte é o maior absurdo da vida, mesmo que seja o corolário da vida, mesmo
que a vida contenha as sementes da morte desde o primeiro segundo em que vemos a luz do dia,
ao nascer… Diz o provérbio que a vida tem uma porta, e a morte cem…Dificilmente
podemos encenar a tragédia da nossa própria morte: não sabemos quando nem como
ela há-de chegar…
No teu caso,
chegou aos 85 anos, e a maldita porta foi a doença de evolução prolongada, que
ainda hoje temos, todos nós, pudor ou dificuldade em nomear.
Por certo,
meu irmão, que morreste em paz (se é que um homem pode morrer em paz depois de
uma prolongada luta contra a doença que acaba sempre, mais tarde ou mais cedo,
por levar a melhor: afinal, morremos todos os dias um bocadinho).
Sim, não
tenho dúvidas que quiseste despedir-te de todos nós. Recordo o que escreveste
no teu Facebook, no passado dia 6, às 21:34, partilhando 10 anos de memórias:
“Tempos felizes que cabem por inteiro
na minha passada ambição. Deixaram sabores doces e tanto me basta.”
Uma frase
lapidar, no duplo sentido da palavra, algo de sublime, que só podia ser escrito
por um grande ser humano como tu. É um belíssimo poema de despedida da vida, mesmo
que tão curto para uma vida que foi grande...É um adeus lúcido, corajoso,
sereno... (Bolas, e a gente sempre a queixar-se do que não fez, não viu, não
viajou, não usufruiu, não amou, não gozou, , não comprou, não escreveu...ou simplesmente desperdiçou– a começar pelo tempo.)
Eras um homem afável, amigo do seu amigo, que
adoravas o convívio e a tertúlia. Amavas
os teus, amavas a vida, adoravas o mar, o sol, o sal, o sul, a ria de Aveiro, o
rio Tejo, as Berlengas, a fotografia, o
desenho, as viagens... Amavas as coisas boas da vida, e partilhavas com os teus
amigos as tuas múltiplas afinidades, talentos, seres, saberes e sabores, desde
a boa comida (o peixe, os mariscos)
à literatura, à música e à arquitetura, a tua profissão.
Nesta hora,
profundamente triste, somos nós que viemos despedirmo-nos de ti. A morte tem
várias dimensões: física, simbólica, cultural, social… Morreste, fisicamente,
na batalha da vida, a tal em que todos nós, seres finitos, acabamos derrotados.
Para aqueles
que te amavam (e te continuam a amar), tu continuas presente entre nós. Porque há uma
coisa que a morte não nos pode roubar: as memórias (e os afetos) que
partilhámos em vida, a par das nossas geografias emocionais… Mais do que a tua
imensa obra como arquiteto e urbanista (e essa falará por si e por ti!), somos
nós que não te esquecemos, enquanto por cá ainda andarmos, e tivermos saúde, força
e ânimo …
Como não
podemos esquecer os livros que, já em fase mais tardia da tua vida, começaste a
escrever… Cito um ou dois que me dizem muito: o teu primeiro, de 2007, “Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos
Dias Líquidos”, a que me deste a honra de prefaciar.
E o outro,
de 2015, a "Rua Suspensa dos Olhos": Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência,
traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...
Ilhéu, lhavense,
filho da terra e do mar, evocas e
descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das
figuras humanas que
marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu
pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e
sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…
Tendo tu
sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste,
no entanto, da figura do teu pai a mais
bela evocação na tua narrativa ilhavense:
“Estávamos todos em casa, isto é, ele não
estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”…
E da recolha
que fizeste dos palimpsestos dos muros da tua Ílhavo, deixa-me por fim citar
duas ou três frases lapidares dos anónimos pichadores e grafiteiros:
- A saudade,
mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a
riqueza….
- Nascemos
para perder absolutamente tudo, sempre, e nada.
- Não faças
sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.
Estas três
frases, pérolas de uma arqueologia dos seres e dos saberes, dizem muito,
afinal, a teu respeito. E não foi por acaso que as anotaste e as resgataste,
nesse teu livrinho que é um belíssimo e comovente regresso ao passado, à tua
infância, à tua ilha, à tua origem ilhavense…
É também a redescoberta da tua/nossa
insularidade fundamental e da situação-limite que é a própria vida, cercada de
sinais de fragilidade, de solidão, de doença, de morte e de finitude por todos
os lados…
Não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista e tu um autor pessimista… No final, o teu “alter
ego” (re)descobre que também faz parte de um vasto arquipélago ,
e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, quando embarca para a Terra Nova, na
“Faina Maior" (a pesca do bacalhau), ou vai para Lisboa estudar e trabalhar, nunca destrói as pontes, nunca
corta o cordão dunar e umbilical que o liga ao passado e ao futuro…
Zé António,
para os amores da tua vida, a tua Matilde, os teus filhos e a tua neta, para os
teus amigos, para todos aqueles que te amaram e que tu amaste, serás sempre
lembrado não só como o arquiteto, um construtor de cidades, como sobretudo um homem
de pontes, de memórias, de afetos: as do amor, da amizade, da beleza, da
solidariedade, da liberdade…
Aceita, lá na estrelinha que te coube em sorte na galáxia celestial
dos homens bons e sábios, esta minha pequena homenagem póstuma. Recuso-me a
dizer “adeus, até sempre”, porque quero/queremos continuar a poder falar contigo.
Luís Graça +
os teus amigos e fãs Alice, Joana e João.
Ílhavo, igreja matriz, 23
de fevereiro de 2023
2. Nota do editor LG:
Desloquei-me ontem, à tarde ao funeral do meu amigo Zé António Paradela, arquiteto, membro da Tabanca Grande, um "ílhavo", orgulhoso da sua terra natal onde, de resto, deixa obra. Tive oportunidade de conhecer pessoalmenet ou reencontrar, nas cerimónias fúnebres, alguns dos seus amigos e conterrâneos tais como:
(i) Jorge Picado, ex-cap mil art, Guiné 1970/72, nosso camarada, membro da Tabanca Grande; dei-lhe um grande abraço, falámos uns escassos minutos; e justificou-se por que é que, com a falta de tempo e os netos, já não vem tantas vezes ao blogue;
(ii) Tito Peixe Cerqueira, vice-almirante na reforma, com um comissão em Moçambique como guarda-marinha, em 1970/72, na Corveta João Coutinho, o primeiro ilhavense ou "ílhavo" a atingir o topo da hierarquia da marinha de guerra numa terra de capitães de marinha mercante e da frota pesqueira, vários deles também presentes no velório do Zé António Paradela (alguns conhecia-os de vista, de nossos convívios anuais):
(iii) João Vizinho, especialista em medicina do trabalho, meu velho amigo das lides da saúde pública:
(iv) o capitão Valdemar Aveiro, um dos últimos "lobos do mar", e grande escritor das memórias da "Faina Maior" (a pesca do bacalhau): tem cerca de uma dezena de publicações (e outras tantas referências no nosso blogue):
(v) o historiador e editor Senos da Fonseca, cunhado do nosso Jorge Picado, uma verdadeira autoridade sobre Ílhavo, a Costa Nova, as suas gentes e falares, as embarcações da ria de Aveiro, a pesca do bacalhau, etc.
De Lisboa, tive o prazer de reencontrar os arquitetos Ricardo Santos Pereira e Luís Gravata Filipe, que trabalharam ou ainda trabalham na PAL - Planeamento e Arquitetura Lda, a empresa de prestígio que o Zé António fundou e dirigiu durante dezenas de anos. Reencontrei também a secretária Teresa Martins Gil, competente e incansável colaboradora da PAL.
E ainda outros amigos comuns, que vieram de Lisboa, como o prof João Salis Gomes (CIES-ISCTE) e familia... e o advogado Manuel Queirós (acompanhado do filho), natural do Marco de Canaveses, colaborador da PAL. Pude confirmar mais uma vez quão estimado era, na sua terra, o Zé António. E que nem sempre é verdade o que diz o provérbio "Ninguém é profeta na sua terra"... O Zé António tinha-se reconciliado há anos com a sua terra natal, que ele muito amava. O município, na sua págima oficial, deixou, com data de ontem, uma nota de pesar pelo seu falecimento:
(...) Natural de Ílhavo, José António Boia Paradela deixa o seu traço no Município de Ílhavo, tendo assinado obras como o edifício dos Paços do Concelho e o Centro Cultural da Gafanha da Nazaré. Mais recentemente, foi responsável pela modernização do Jardim Henriqueta Maia e a reconversão do antigo edifício dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo, também da sua autoria, no Centro de Religiosidade Marítima. (...)
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