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sábado, 16 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13505: Quem era, afinal, o cap art Carlos Borges de Figueiredo, cmdt da CART 2742 (Fajonquito, 1970/72), morto em 2/4/1972, num sangrento domingo de Páscoa? Bem como o infeliz sold Pedro José Aleixo de Almeida? (José Cortes / Luís Graça / Carlos 'Gomes' / Cherno Baldé / António Bernardo)

1. Uma das versões sobre a tragédia de Fajonquito, ocorrida no domingo de Páscoa, de 2 de abril de 1972, já aqui nos foi contada pelo José Cortes, ou melhor, foi-me contada de de viva voz, ao telefone, pelo José Cortes e reproduzida por mim (*).

Recorde-se que o José  Corttes [, foto atual à direita], vive em Coimbra, trabalhou como técnico de manutenção nos SUCH [, Serviços de Utilização Comum dos Hospitais] e  foi fur mil at inf Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito, 1972/74, a companhia que foi render a CART 2742 de que o cap art Carlos Borges de Figueiredo foi comandante até 2/4/1972.

O José Cortes falou-me com emoção desses tempos da Guiné. Ele próprio tem um filho que foi paraquedista e esteve em missões de paz (por ex.,Timor, Bósnia). Mas, como muitos outros camaradas, queixa-se de que nem sempre a família tem pachorra para ouvir as suas recordações da Guiné. Uma das que está bem presente na sua memória é a da morte do capitão e mais três ou quatro militares da companhia (a CART 2742, Fajonquito, 1970/72) que eles foram render.

Recorde-se que a CART 2742, comandada pelo cap art Carlos Borges de Figueiredo e, posteriormente, pelo alf mil art Baltazar Gomes da Silva, era uma unidade orgânica do BART 2920, mobilizada em Penafiel no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, tendo assumido a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 2436, em 13 de Agosto de 1970, e  vindo a ser substituída pela CCaç 3549 em 21 de Maio de 1972.. 

O José Cortes  tinha-me prometido contar essa história,k por escrito,  mas só não o fez o fez por, alegadamente, ter "fraco jeito para a escrita". Aqui vai, pois, a sua versão oral (*):

(i) Havia um soldado da CART  2742 que, uma vez terminada a comissão, queria ficar na Guiné como civil;

(ii) Ao que parece o cap mil art Carlos Borges Figueiredo manifestou, desde logo, a sua fiorme oposição à ideia do soldado, de resto  contrária a todo o bom senso e sobretudo ao RDM: ter-lhe ditro;: "se viesrte comigo, voltas comigo!";

(iii)  Em consequência, as relações entre  o soldado da CART 2742  e o seu comandante tornaram-se conflituosas; neste contencioso, foi envolvido  também o primeiro sargento;

(iv) A mulher do capitão havia mandado, da metrópole, "dez quilos de amêndoas" (sic)b  para distribuir pelo pessoal da companhia; a distribuição foi feita pelo próprio comandante, no refeitório, no domingo de Páscoa, 2 de Abril de 1972;

(v) Quando chegou a vez do soldado em questão, o capitão terá passado à frente, num ato que aquele interpretou como de intolerável discriminação;

(vi) O soldado levantou-se, sem pedir a licença a ninguém, e saiu do refeitório;  dirigiu-se ao seu v abrigo (ou à sua caserna) e veio para a parada com "duas granadas de m~ºao já descavilhadas", uma em cada mã;

(vii) Foi dirto à  secretaria: o primeiro sargento ter-se-á apercebido, a tempo, das malévolas  intenções do soldado, tendo-se posto a salvo em bom tenmpo;

(viii) No interior da secretaria, estavam  o Capitão, um alferes e um furriel; inguém sabe o que se terá  passado  lá dentro; o  soldado terá deixado  cair as duas granadas, descavilhadas; otecto da secretaria foi pelos ares;  lá dentro ficaram 4 cadáveres

(ix) Mortos, em 2/4/1972, todos do Exército, por acidente (sic), constam os seguintes nomes, na lista dos Mortos do Ultramar da Liga dos Combatentes:

- Alcino Franco Jorge da Silva, fur mil
- Carlos Borges de Figueiredo, cap art
- José Fernando Rodrigues Félix, alf mil
- Pedro José Aleixo de Almeida, sold básico

(x) Sabemos que o sold básico Pedro José Aleixo de Almeida era natural de Portel, em cujo cemitério local repousam os seus restos mortais; foi o protagonista desta trágica história (fonte: Portal Ultramar Terraweb > Os mortos em campanha do BART 2920, 1970/72);

(xi) Por sua vez, o  alf mil art op esp José Fernando Rodrigues Félix era de Moimenta da Beira em cujo cemitério local está sepultado:

(xii) O cap mil art Carlos Borges de Figueiredo era natural de Vila Pouca de Aguiar; a  sua última morada era Meadela, Viana do Castelo, possivelmente a terra da sua esposa;

(xiii) Por último, o fur mil Alcino Franco Jorge da Silva também era de op esp,  sendo natural de Carcavelos. Cascais; está sepultado no cemitério de S. Domingos de Rana;

(xiv) Não sabemos o que faziam os dois rangers na secretaria, possivelmente terão vindo em auxílio do capitão com a intenção de desarmar o militar, o sold básico  Pedro José Aleixo de Almeida, que trazia consigo as duas granadas descavilhadas (ou só uma, segundo outras versões), pronto possivelmente para acaber com a sua vida e de quem mais se lhe atravessase no caminho:

(xv)  O José Cortes fala em cinco mortos, mas tudo indica que sejam apenas os quatro que constam da lista da Liga dos Combatentes;

(xvi) Li, em tempos, que o caso foi também utilizado pelo serviço de propaganda do PAIGC (nomeadamente a Rádio Libertação) para desmoralizar as tropas portuguesas: há um documento do PAIGC, no Arquivo Amílcar Cabral, no portal Casa Comum, desenvolvido pela  Fundação Mário Soares (FMS), que faz referência ao sucedido, e e que de momento não consigo localizar;

(xvii) O facto de o insólito caso ter ocorrido em Fajonquito, na fronteira com o Senegal, significa que foi de imediato conhecido da população local, das autoridades do Senegal e do PAIGC; o nosso Cherno Baldé, na altura com 12 ou 13 anos, faz referência, num dos seus postes a este trágico "acidente", que ocorreu a 100 metros, quando ele estava a brincar com outros putos na parada (**);

(xviii) Gostaríamos de ter outras versões deste acontecimento; infelizmente não temos ninguém, na nossa Tabanca Grande, da CART 2742 / BART 2920; julgo que seja difícil, ainda hoje, aos camaradas da CART 2742 abordar esta história, tão trágica quanto absurda...

2. Comentário de L. G.:

Infelizmente, este caso não foi único no TO da Guiné: o acesso fácil a armas de guerra e a usura física e mental da guerra ajudam também a explicar estes surtos de violência patológica que, de tempos a tempos, ocorriam nas nossas fileiras;

Quantos suicídios terão havido no CTIG, ao longo da guerra ? Quantos homícídios terão ocorrido, dentro das NT ? Na lógica da hierarquia militar, eram tratados como "acidentes com armas de fogo".... E assim ficarão, para a história - como acidentes, inexplicáveis - , se não houver da parte dos contemporâneas e das testemunhas presenciais destes casos a vontade de contribuir, com depoimentos em primeira mão, para o seu esclarecimento...

Intrigam-nos casos como este. O que podia levar um militar português a querer ficar na Guiné, na vida civil ? Podia não ter ninguém à sua espera, na sua terra, não ter família, não ter amigos... Podia, por qualquer razão, querer esquecer a sua origem ou condição. Podia estar perdido de amores por alguma bajuda... Podia estar pura e simplesmente deprimido ou psicótico...

Um indivíduo deprimido ou piscótico pode facilmente perder a noção do perigo, ficar indiferente a uma situação de perigo imediato e iminente, e até desejar a sua própria morte. Não nos parece ter sido uma acção premeditada, pensada e amadurecida a frio... Em princípio, foi uma acção precipitada, irreflectida, impulsiva. O tal "acto de loucura" da "vox populi"... A ser verdade que o capitão deliberadamente ou não discriminou o soldado, aquando da distribuição das amêndoas, isso poderá ser sido "a gota de água" que transformou um conflito disciplinar num massacre... No final da comissão de uma companhia, na festa do em que se celebravo o dever cumprido, no domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972...

3. Comentário do nosso leitor (e camarada) Carlos Gomes (*):

Gostava de comentar o drama da Páscoa de 72 em Fajonquito. Longe de mim fazer juizos de valores, de quem quer que seja, nem fomentar polémicas. Da CCS do BART 2920 fui destacado como enfermeiro para a CART 2742, sediada em Fajonquito,  no periodo de 2 dezembro 70 a 20 maio de 71. Por conseguinte um ano antes do trágico acontecimento [2/4/1972]. Se bem me lembro, foi nesse periodo que tambem chegou o sold Almeida à CART  2742. Dizia-se que ele vinha dos comandos, expulso  ou castigado.

Conheci o Almeida quase de imediato,pois ele tinha problemas de pele em várias partes do corpo que passei a tratar. Passado algum tempo  apercebi-me  que ele,  Almeida,  tinha algumas pertubações a nivel emocional. Não esqueço a forma maliciosa como a rapaziada o apelidava  ou tratava: Almeida, "apanhado,bate mal da bola,  maluco"... 

O Almeida estava sempre a alinhar nas saidas para o mato, dava para perceber que as relações com o comandante .da companhia não eram das melhores. Lembro um episódio em que o Almeida lavava os dentes à porta da camarata e o cap Figueiredo lhe chamar a atenção para o que estava a fazer, o que gerou entre ambos alguma discussão.

Como é óbvio,  tambem conheci o cap Figueiredo, algumas vezes lhe prestei assistência. Homem possante e de elevada estatura, era um  eximio jogador de futebol de salão. Pelo que sei era militar de carreira e não miliciano. As suas atitudes na liderança da companhia,  em vez de gerar confiança, tinham o efeito contrario. Eu sempre que podia evitava-o...

2 de Abril  de 1972: Tragédia.  Pelos relatos que me chegaram,  o Almeida passou-se  de todo,  queria o ajuste de conmtas com o capitão . e o primeiro sargento...Com uma granada na mão, descavilhada, entra na secretaria onde pretende ficar com o capitrão  e o sargento. O alf Alcino e o furriel Félix tentaram demover o Almeida. Disse-se que o Almeida gritou para que eles saissem,  ao alferes e ao  furriel, o que não fizeram ou não tiveram tempo de o fazer. Quanto ao sargento, talvez só ele possa dizer como escapou.

As razões para este acto tavez no concreto nunca se venham a saber, mas duma coisa tenho eu a certeza: actos como estes e tantos outros que aconteceram nesta guerra, não aconteceram por acaso (...)

4. Comentário do Cherno Baldé (**)

(..:) Depois do "acidente" ou melhor do homicidio, a versão que circulou e ficou até hoje entre a população nativa é bem diferente daquela que estou a ler agora na maior parte dos comentários. Pela versão que prevaleceu entre nós, alegadamente, o soldado Almeida estava revoltado por não poder voltar à sua terra após várias comissões de serviço, em virtude de um castigo a que estava sujeito e tinha decidido acabar com a sua vida e com ele, também, a do comandante da companhia. Claro que isto faz parte dos rumores que circularam, na ausência de informações oficiais, na altura.

Quero dizer a quem me quiser ouvir,e isto por minha conta, que o Almeida era um soldado "profissional" muito aguerrido que dificilmente poderia levar uma vida civil pacata no meio indígena ou gerindo uma lojeca ou um restaurante para servir a malta europeia numa cidade qualquer da Guiné.O Almeida não era um soldado vulgar e via-se claramente que no se tinha integrado na companhia dos restantes soldados milicianos aos quais ele nutria muita pouca consideração e/ou respeito.Tão pouco se podia integrar no meio dos pretos embora se identificasse com eles. Penso que, antes de mais, o nosso amigo Ameida (ele era de facto um amigo e defensor das crianças que frequentavam o aquartelamento, ai de quem se atrevesse a fazer mal a uma criançaa na sua presença!) deve ter sido mais uma das inúmeras vitimas daquela guerra terrivel. (..)


 

Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > CART 2742 (1970/72) >  "Fajonquito em festa... Com a CART 2742 (1970-72) o ambiente entre a tropa e a população melhorou bastante, atingindo níveis nunca antes vistos. A foto de 1971 (amigavelmente enviada pelo ex-Furriel Mil. José Bebiano), mostra uma calorosa recepção de um grupo de artistas vindos da metrópole para animar a malta. Ao meio e ao lado de uma das artistas pode-se ver o nosso saudoso Cap Carlos Borges de Figueiredo. O rapazinho nas mãos do homem dos óculos escuros é o Carlitos, filho de um soldado português que, mais tarde, iria à procura do pai, tendo aquele recusado o encontro à última da hora. O ex-Furriel José Bebiano, que era de rendição individual, tendo feito toda a sua comissão em Fajonquito poderia, eventualmente, identificar os soldados que acompanham o seu Comandante nesta foto." (Foto de José Bebibao; legenda de Cherno Baldé).

5. Cherno Baldé > Homenagem póstuma ao Cap Carlos Borges de Figueiredo (**)

(...) Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciavam alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.

O Cap Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.

Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné-Bissau têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap  Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base. O meu caso não é paradigmático porque fui obrigado a ir às aulas que detestava com todas as minhas forças, mas a teimosia dos meus pais, em particular a minha avó, e também, porque o quartel já não servia de refúgio aos refractários, tinha que cumprir as condições do nosso Capitão, depois pouco a pouco o meu horizonte que antes estava confinado à vida da minha aldeia e arredores, foi-se abrindo as maravilhas da ciência e do mundo externo.

Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque,  depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap Carlos Borges de Figueiredo.

A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.

Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen Spínola queria com a sua politica por “uma Guiné melhor” (...)

6. Comentário de António Bernardo [, nosso leitor e camarada, mas não registado na Tabanca Grande; pertenceu à CCS/BART 2920]

Muito embora, seja um dos melhores textos do Cherno Baldé (**), o mesmo peca por um  retrato falseado, no que respeita ao cap art Carlos Borges de Figueiredo, cmdt da CArt 2742, sedeada em Fajonquito e subunidade do BArt 2920 (1970/72).

É bom lembrar que, embora ostentasse galões nos ombros, era  um homem boçal, diria mesmo que labrego, igual a muitos outros que comandavam outros homens.

A sua personalidade conflituosa levou ao ajuste de contas, ocorrido no domingo de Páscoa,de 2 de Abril de 1972, e aqui já abordado no post 5938 (*)

António Bernardo
[CCS/BART.2920, Bafatá, 1970/72]
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de março de  2010 > Guiné 63/74 - P5938: A tragédia de Fajonquito ou as amêndoas, vermelhas de sangue, do domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972 (José Cortes / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

(**)   Vd. poste de 15 de agosto de  2014 >  Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses

Vd. também  poste de 24 de abril de 2010 >  Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada

(...) "O que vou dizer pode parecer paradoxal se não incongruente. O Sr. Carlos Borges de Figueiredo, ao contrário de muitos outros, foi um Capitão pacifista pois ele tinha-se distinguido, sobretudo, pela promoção da educação entre as criancas nativas (o número de alunos na escola local tinha aumentado significativamente facto que poderia estar ligado ao ambiente de paz criado e uma grande sensibilidade pelos problemas sociais da população) e organização de eventos sócio-culturais que, não só afastavam, por algumas horas, o espectro da guerra e da morte entre a tropa mas eram também muito úteis e importantes na construção de relações de aproximação e de confiança com a populaçã local, tão prezada por General Spínola.

Foi nessa altura que, pela primeira vez, recebemos a visita de grupos musicais vindos da metrópole. Numa dessas visitas, lembro-me da presença de uma ou mais mulheres cantavam o Fado. A música era muito morna, lenta demais para o nosso gosto temperado na ritmada, quase violenta dança de tambor mandinga. No meio de tudo isso, não nos escapou um detalhe importante. Notamos a deferençaa e o extremo respeito com que todos a(s) tratavam. O respeito dado àquela(s) mulher(res) contrastava de forma flagrante com a maneira como habitualmente lidavam com as nossas mulheres, fossem elas grandes ou pequenas. E não estou a referir-me, claro esta, à esposa do Capitão que, também, deve ter visitado Fajonquito.

Ele ficou conhecido no meio da populacao local com o nome de Capiton Lelö dahdè o que na lingua fula significa o Capitão cabeça inclinada. Talvez aqueles que o conheceram de perto me possam corrigir, parece que ele tinha o hábito de inclinar ligeiramente a cabeça para um dos lados, daí o nome com que o baptizaram e que fica para a historia." (...)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses

MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (CHERNO BALDÉ)

46 - RETRATO DE UMA FAMÍLIA 
A GUERRA, A POBREZA E A PRESENÇA DOS SOLDADOS PORTUGUESES

A minha família, até meados de 1948, ano da morte de Braima Djame Baldé, mais conhecido por Branjame, régulo de Sancorla, integrava o núcleo restrito da casa real (Lamido) deste regulado, direito esse adquirido atravês da nossa avó materna, Eguê Baldé, tia de Branjame.

Nesta qualidade, não se pode dizer que não conheciam os portugueses antes do início da guerra colonial, tendo em conta as ligações de uma aliança histórica mais ou menos estreita, de mútua (des)confiança e de dependência que existiam entre os chefes tradicionais e a administração portuguesa sediada nas circunscrições mais próximas em Geba ou Bafatá e/ou mais distantes como Bolama e Bissau, para onde os nossos pais, Nahôr e mais tarde Samba-Gaia (que disputaria o regulado com os filhos de Branjame), nossos patriarcas da família se deslocavam com frequência e, em nome das quais, se convocavam manifestações de júbilo ou se procedia a mobilização de homens válidos para as guerras de pacificação do território no decurso do último quartel do Séc. XIX e principios do Séc. XX.

Nessa altura, ouvia-se falar do homem branco como o eco de um som longínquo, que provocava curiosidade e medo pois se todos o queriam ver com os seus olhos, ao mesmo tempo todos tinham a consciência dos perigos que ele representava antes e depois. Antes porque associado ao temível fenómeno do desaparecimento de pessoas. Sim, pessoas que partiam para os seus campos de cultivo e desapareciam, de repente, sem deixar rastos. Depois porque, infelizmente, em África, este fenómeno de desaparecimento de pessoas não findou com o proclamado fim da escravatura, mas continuou durante algum tempo, inclusive sob a forma de sanções administrativas que consistiam na deportação das vítimas para terras distantes, o terrível desterro.

DESTERRO!!??...

Para o homem africano da época, não podia haver nada pior que o desterro que se traduzia no desenraizamento da pessoa e seu afastamento definitivo ou por largo período longe da sua família. Foi nessa época que apareceu no meio popular, entre os fulas, a frase que dizia: “O Branco que veja se o desterro é bom”, isto quando alguém queria fazer ver ao outro que, também ele, não tinha apreciado uma certa atitude deste num dado momento.


A figura do meu pai, El-haj Tambá Baldé


O meu pai, Aladje Tambá Baldé e o Cabo Tintim (nome emprestado da BD), que frequentava a nossa casa em Fajonquito. A foto é de 1967/68, pelo que o amigo Tintim deve ter pertencido à CCAÇ 1501 do Cap. Rui Antunes Tomaz ou da CCAÇ 1685 do Cap. de Infantaria Alcino de Jesus Raiano, cujas companhias passaram por Fajonquito entre 1967/68.


Nesta família pobre e simples que viveu e atravessou a Guerra colonial de ponta a ponta e, ainda sobreviveu ao genocídio silencioso do pós-independência, quero destacar o importante papel desempenhado pelo nosso pai, como chefe de uma família numerosa que conseguiu sobreviver sem sofrer muitos danos ou perdas de vida a lamentar, e tudo graças ao Deus todo poderoso em primeiro lugar e em segundo, graças ao talento de diplomata inato do nosso pai, acompanhado de uma boa dose de bom senso que o permitiram, sempre, aplicar o princípio segundo o qual: “O que é de César a César e o que é de Deus a Deus”, enquanto esteve à testa da família.

Vivendo num meio difícil, de sobreposição de vários poderes (oficial/tradicional, nacional/local, laico/religioso) e de constantes e rápidas mudanças, de guerras e montanhas de intrigas, soube sempre adaptar-se e relacionar-se bem com as condições vigentes sem nunca se comprometer inteiramente, mas também sem nunca se afastar demasiado para não criar suspeitas. Contrariando a vontade da mãe e nossa avó, desde sempre soube receber bem e criar amizades entre os soldados portugueses que, certamente, vinham a nossa casa por causa das nossas primas-irmãs que, na altura, andavam de corpo nu da cintura para cima e com as mamas ao léu.

Não sei, no fundo, se a sua admiração, como qualquer outro, do seu tempo e etnia, pelos portugueses era acompanhado de uma simpatia especial, o certo é que demonstrou sempre por estes muito respeito e consideração no que era largamente retribuído.

Ao contrário dos seus irmãos, nunca se ofereceu e nem foi mobilizado para a guerra e, felizmente, as suas funções de empregado comercial permitiam-lhe satisfazer o mínimo necessário, sem precisar de entrar em aventuras militares ou intrigas palacianas. O longo trabalho com comerciantes lusos criou nele a ambição legítima de fazer dos seus filhos pessoas preparadas para os desafios do futuro, numa época em que o obscurantismo predominava entre as massas camponesas, decisão a que nunca se renunciou apesar dos numerosos obstáculos pelo caminho.


A minha avó paterna, Eguê Baldé

Ao contrário do filho, a nossa avó paterna não mostrava simpatia pelos brancos em geral e, em particular, dos soldados que invadiam a nossa casa em Cambaju. Dizia sempre, referindo-se a presença destes: “Uoú!... tinha que viver para presenciar isto!..”. Fugia do olhar dos militares para se refugiar no interior da sua palhota. Designava-os por “orelhas vermelhas” e não perdia uma única ocasião para falar mal e criticar o comportamento pouco sóbrio dos jovens soldados que, muitas vezes, se comportavam, de facto, como se estivessem em terras por eles conquistadas bem ao estilo dos tempos romanos. Nunca aceitou nada que viesse do quartel e não queria que os seus netos o frequentassem como se tivesse medo que fossem alienados e entregues à razia da guerra que dava os seus primeiros passos e fazia as primeiras vítimas.

Morreu em Cambaju entre 1966/67, pouco antes de mudarmos para Fajonquito, numa idade bastante avançada. Provavelmente, ela era a única que carregava consigo os ecos dos tempos passados, contendo os resquícios de lembranças menos boas dos primeiros contactos com os europeus em África e da prática nefasta do comércio triangular de má memória e que contribuiu para esvaziar o continente da sua população.


O meu tio Dembaro Baldé

O irmão mais velho do meu pai, Dembaro, era a biblioteca da família, conhecedor profundo do percurso histórico dos fulas desde que saíram de Mácina, as crónicas épicas de Alfa Molo e de seu filho, Mussa Molo, no espaço sócio-cultural Firdunkê. Tinha uma grande admiração pelos portugueses em relação aos quais clamava alto e em bom som: “Sambu ghalel Tubakhô, khabhá pôlle gardânne” o equivalente, na língua fula, da famosa expressão latina “Veni-vidi-vici” de Júlio César ou das Lusíadas “Vós portugueses, poucos quanto fortes” (Canto VII) e, não se cansava de nos falar sobre as míticas figuras das guerras tribais no espaço sudanês de Mali, antes da chegada dos europeus e ainda sobre as guerras de pacificação sob a batuta de inigualáveis e intrépidos chefes de guerra portugueses como o Marques Geraldes, Graça Falcão ou Cap.Teixeira Pinto.


A minha mãe, Cadi Candé

A minha mãe era o que os portugueses vulgarmente chamariam de “moura” da casa, a primeira a levantar-se e a última a deitar-se e sobretudo no período de Ramadão, quando se impunha que as pessoas comessem durante a madrugada para poderem jejuar ao romper do dia, então ela, praticamente, não tinha tempo para se deitar e recuperar da fadiga do trabalho quotidiano da bolanha, do campo, da ordenha das vacas, trabalho caseiro e cozinha, sobretudo a maldita cozinha que lhe deu cabo dos olhos; pequeno almoço, almoço e jantar, quando tudo o que existia em casa era um grande amontoado de milho preto ou milho-basil no seu estado natural e que ainda precisava secar, pilar (esmagar), farinhar, separar em grãos, misturar com folhas da calabaceira em pó (lálôh), buscar lenha, pôr ao fogo, etc., etc.

Não sei o que ela pensava dos brancos, nunca nos disse e nunca ninguém lhe perguntou, mas como boa esposa, ela seguia os passos do nosso pai, isto é, tentar ser gentil, bem educada e acolher o melhor possível os hóspedes. Por falar em hóspedes, aqui está uma palavra mágica para os fulas do antigamente que, no decurso de toda a sua vida não faziam outra coisa senão preparar-se para receber bem e condignamente o seu hóspede. Lembro-me que, na infância, só acontecia comermos arroz e carne de galinha ou de algum outro animal no dia em que aparecia, saído de “nul part”, um hóspede qualquer, mesmo que se tratasse de um viajante maltrapilho, um vulgar vagabundo, bastava que não fosse das redondezas. “Felizes os servos que o Senhor, a sua chegada, encontrar vigilantes... porque o Filho do Homem virá numa hora que não pensais” (Lucas 37/40).

Mas, mesmo nessas raras ocasiões, as crianças tinham muita sorte se lhes calhava algum osso para chupar. Lembro-me de ter comido muita tripa de galinha, sim a tripa que deitavam fora, depois de uma apressada limpeza do conteúdo, metia-se na brasa e a seguir para dentro das nossas barrigas redondas, inflamadas de desnutrição crónica. “Se deitas fora é carne desperdiçada, se o comes, comeste merda”, dizia a nossa avó a respeito das tripas.


Samba Candé ou Sam-forrea, meu avô materno

Por várias ocasiões, já aqui evoquei a figura do meu avô materno, o seu nome era Samba que as pessoas transformaram em Sam-Forrea por ser originário da região de Forrea (Contabane). Era caçador profissional e fez parte do contingente mobilizado para a guerra de Canhabaque. Conta a minha mãe que, quando voltou da guerra, estava irreconhecível devido a enorme cabeleira e a barba de muitos meses que lhe cobriam toda a face. Fizeram mais de 60 km a pé, de Bafatá a nossa aldeia de Farimbali. Voltaram de mãos a abanar, como tinham partido, sem dinheiro, sem espólio de guerra. Tinham lutado pela honra de Sancorla e da pátria portuguesa, afirmavam. Claro que esperavam obter alguma compensação material, o que neste caso não aconteceu.

No caminho de regresso a casa teria cruzado com o grupo de pessoas da sua aldeia que o vinham acolher, mas nem eles o puderam reconhecer envolto naquela enorme cabeleira e barba de um ano nem ele os reconheceu vindo daquela ilha maldita dos Canhabaques onde muitos dos seus companheiros tinham perdido a vida, incluindo o príncipe herdeiro de Sancorla, Abdu Branjame, que pouco antes tinha participado numa exposição colonial em Portugal, muito provavelmente a de junho de 1934 no Porto.

Na Guiné, desde o Séc. XIX que os portugueses tinham descoberto e privilegiado a contribuição da classe dos caçadores nos conflitos que os opunham a certos grupos indígenas. Homens singulares, de coragem ímpar e conhecedores do terreno, seriam largamente utilizados também, durante a guerra colonial, principalmente, como guias e/ou para organizar os grupos nativos de milícias e de auto-defesa.

Ao contrário do meu pai, ele era o que se podia classificar de anti-social e politicamente nulo, pois passava todo o seu tempo metido no mato a conviver com as aves e animais selvagens e raramente participava em eventos da comunidade. Homem de poucas palavras, durante as festas religiosas, quando toda a gente se preparava para vestir as suas melhores vestes e pavonear-se na reza colectiva, ele se oferecia para pastar o nosso gado bovino em substituição das crianças que, por norma, tinham essa incumbência.

Em Fajonquito, foi ele que teve a ideia genial de introduzir-me no quartel, quando, na verdade, nunca lá deveria pôr os pés por imposição da minha avó. Se não falava com os seus próprios conterrâneos muito menos o fazia com os jovens soldados portugueses que, inebriados com a visão das bajudas semi-nuas, raramente perdiam tempo com os velhos da tabanca. Pela manhã, quando estes entravam na morança ele pegava na sua “Longa” (arma de fogo de fabrico artesanal que funcionava por meio de pólvora e pedaços de metal embutidos no interior do cano, de frente para trás) e saía para o mato, onde fazia dias ou semanas antes de voltar. De vez em quando lá trazia partes de uma gazela ou de porco-espinho que distribuía pelos familiares, amigos e vizinhos.


Mariama Baldé ou Néné-Maudhô, a minha avó materna

De todos os membros da família, foi ela que mais me marcou em virtude da sua insistente e inútil teimosia de fazer de mim um homem de bem, deveras. Nunca desistiu, desde a idade de 4 ou 5 anos, em meados de 1964, quando fugimos juntos do primeiro ataque a nossa aldeia e, desorientados pelo medo, acabamos por dormir no meio de uma bolanha infestada de bichos e capim selvagem, com folhas tão afiadas que nem facas de cirurgião. No dia seguinte, quando finalmente nos encontraram, tínhamos cortes em tudo que era corpo, mas pelo menos estávamos vivos.

Incansável, todas as manhãs ia a casa que servia de dormitório dos rapazes para nos lembrar que a sorte estava com aqueles que se levantavam cedo, depois da primeira oração da manhã. Até hoje não o consegui fazer. Todas as tardes, antes de escurecer ia procurar-me a fim de certificar-se que já tinha tomado banho e trocado de roupa.

O seu nome era Mariama Baldé, ou Néné-Maudhô (Mamãe-velha) e faleceu em 1994 estava eu, na altura, em Lisboa. Como habitualmente acontece, só damos o devido valor àquilo que já perdemos. Era uma mulher alta e sofria de elefantiase numa das pernas o que lhe dava um aspecto algo bizarro em que uma das pernas era normal e pequena e a outra exageradamente grande e deformada, facto que a impedia de usar sapatos.

No entanto, era a todos os títulos uma pessoa especial e de valor inestimável para mim, pois ela foi a minha guardiã e verdadeira educadora durante a nossa atribulada infância e adolescência que se estende, praticamente, desde o inicio da guerra no norte (1964) até 1975, altura em que deixei a família para continuar os meus estudos no Liceu de Bafatá.

Dizem que ela viveu os cem anos, é bem provável. Não raras vezes, nas narrativas sobre a sua juventude, referia-se à cidade de Farim, importante centro de trocas comerciais em princípios do Séc. XX, onde as jovens bajudas iam trocar ou vender produtos junto dos comerciantes europeus e sirio-libaneses como o Coconote ou a borracha natural, extraído de uma planta selvagem e concentrado em formatos redondos como as bolas de futebol, resultado de meses e meses de labuta na floresta.

A Néné-Maudhô encarava a sua obrigação de nos dar uma boa educação de tal modo que era capaz de tudo para cumprir com a sua obrigação. Uma vez, já era quase noite e ainda não tinha saído do quartel para casa quando, surpreendendo tudo e todos pela ousadia, a minha avó penetrou dentro do quartel à minha procura. Passou pela sentinela na porta de armas que ou estava apanhado do clima e já não distinguia uma bajuda de uma mulher grande ou se calhar julgara tratar-se da lavadeira do 1.º Sargento e por isso, não queria arranjar encrencas.

A semelhança de todas as mulheres grandes que conheciam o irreverente atrevimento dos soldados nas tabancas, procuravam sempre ficar longe para não servir de bode expiatório às suas maluquices o que, de forma alguma não queria dizer ter medo, pois no dizer da minha avó, estes não passavam mesmo de “crianças grandes”, irrequietas e mal-educadas.

A sentinela saiu da sua sonolência acordado pelo barulho das vozes que de todos os lados gritavam dentro do quartel dirigindo-se a pobre da minha avó com uma canção que lhes era peculiar naquele tempo:
- “mulher grande cá tem cabaço óh-lé-lé-lé-lé... foi o Manel que o tirou óh lé-lé-lé-lá...”- no meio da algazarra de assobios e gargalhadas.

Imperturbável, ela seguiu caminhando e a todos que a perguntavam através da mímica gestual o que procurava ali, respondia em língua fula por uma única frase que ela sabia ser irreversível, aconteça o que acontecesse, universal, até ao fim do mundo: “Tcherno Abdulai!.. o meu neto... vai pra casa... já e agora!..”. Com excepção dos meus colegas rafeiros, ninguém sabia quem era o Tcherno Abdulai, pois no quartel o meu nome era Chico e por isso, os soldados pensavam estar diante de uma velha maluca com duas pernas diferentes uma da outra.

Assolada por uma multidão cada vez maior de soldados curiosos, não arredou pé enquanto não foram à caserna dos condutores, onde era faxina, para me alertarem. Tinha sido a primeira vez, mas não seria a última e, as tantas, o Dias (o meu amigo e patrão), quando via a sua silhueta invulgar aproximar-se da porta de armas, antes que se iniciasse o diálogo de surdos entre a sentinela e a minha avó, gritava com a sua voz rouca:
- Óh Chico, desanda dai que a velha já está a tua espera!...

Com estas palavras de alerta, sabia que estava na hora de deixar o quartel e voltar pra casa, que a minha avó estava ali a minha espera donde não arredaria o seu pé de elefante com que assustava os soldados, mesmo com tiros de G3.

Passados muitos anos depois, quando li o maravilhoso livro “A Mãe” do escritor russo, Máxim Gorki (Alekxei Makxímovich Peshkov), não podia deixar de pensar na minha avó e compreender finalmente, que estava perante um fenómeno universal. Então os meus sentimentos de raiva e de ódio devidos a teimosia daquela mulher grande se transformaram, de repente, numa grande compaixão.

No que me concerne, depois do choque inicial, pouco a pouco comecei a ser atraído pelo quartel tal qual a luz nocturna atrai os pequenos bichos voadores. A curiosidade de conviver e conhecer pessoas diferentes, o gosto pela comida do quartel tinha começado desde Cambaju entre 1965/67, mas em finais de 1967 ou inicio de 68, o nosso pai foi transferido e mudou com a família para Fajonquito. Nessa altura o aquartelamento situava-se no meio da tabanca e havia alguma promiscuidade entre a população local e os militares ocupantes do quartel que se traduzia na infiltração constante das crianças na zona ocupada pelos soldados.

Em 1969, com a chegada da companhia do Cap. Carvalho fez-se um reordenamento que transferiu toda a população do lado oeste para leste e isolou o aquartelamento com arame farpado e portas fechadas. Este sistema de apartheid, por assim dizer, por um lado permitiu separar as águas e impor certa ordem e disciplina no quartel, mas por outro criou um fosso enorme entre dois mundos que se complementavam mutuamente e que, pouco a pouco, se foi aumentando para se transformar numa guerra fria de mútua desconfiança. Este facto não será alheio ao destino final do comandante da companhia antes do fim da sua comissão.

 Cherno Baldé, aos 14 anos, em Fajonquito (1974)

Cherno Baldé, estudante do Instituto Superior de Economia de Kiev (1986/90), com duas colegas (russa e ucraniana) da mesma promoção. A imagem que serve de fundo é o rio Dnepr que divide a cidade de Kiev em duas partes

O meu irmão Carlos (2 anos mais velho, hoje Farmacêutico, formado pela faculdade de Farmácia da Universidade Técnica de Lisboa), durante a alocução por ocasião do dia 10 de Junho de 1971, Dia de Portugal e de Camões, na escola primária de Fajonquito. Na imagem estão dois oficiais da companhia do Cap. Figueiredo (CART 2742), um dos quais, o Alferes Félix encontrou a morte no mesmo dia que o seu Capitão. Talvez o José Bebiano que esteve na mesma altura em Fajonquito, em rendição individual, possa ajudar o identificar os dois oficiais aqui presentes.

 O amigo José Cortes (CCAC.3549 - 1972/74), junto a porta d’armas do quartel de Fajonquito

Festa em Fajonquito com a presença de artistas portugueses para animar a malta (1971), ao fundo está o Cap. Borges de Figueiredo a esquerda da cantora Eva Maria. 
Foto cedida por José Bebiano

O mesmo grupo de artistas portugueses, constituido por Eva Maria, Tino Costa e Fernando Correia, actuando no palco, em Galomaro (1971)
Foto de Antonio Tavares, BCAC 2912 (1970-72), extraida do nosso Blogue (P13433)

Os nossos amigos da Ferrugem, Torres Berliet e o 1.º Cabo Sérgio (CCAC 3549) na nossa morança, em Fajonquito (1972/73).

O 1.º Cabo Condutor-auto, Sérgio Rodrigues, fazendo companhia às bajudas, Fajonquito (1972/73)


Homenagem póstuma ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo(*)

Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap. Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciava alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.

O Cap. Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.

Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap. Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base. O meu caso não é paradigmático porque fui obrigado a ir às aulas que detestava com todas as minhas forças, mas a teimosia dos meus pais, em particular a minha avó, e também, porque o quartel já não servia de refúgio aos refractários, tinha que cumprir as condições do nosso Capitão, depois pouco a pouco o meu horizonte que antes estava confinado à vida da minha aldeia e arredores, foi-se abrindo as maravilhas da ciência e do mundo externo.

Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo.

A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap. Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.

Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen. Spínola queria com a sua politica por “uma Guiné melhor”.

Bissau, Agosto de 2014
Cherno Abdulai Baldé (Chico de Fajonquito).
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Notas do editor

(*) - Sobre o Cap Carlos Borge de Figueiredo, ver poste de Cherno Baldé de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)

Último poste da série de 3 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12200: Memória dos lugares (247): Fajonquito em Festa (1971) (Cherno Baldé)

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, um dos nossos meninos de Fajonquito, com data de hoje, 25 de Outubro de 2013:

Caros Luís Graça e Carlos Vinhal,

O amigo José Bebiano, ex-Furriel Mil. que fez a sua comissão em Fajonquito, enviou-me estas fotos que quero compartilhar com os amigos da Tabanca Grande.

Numa das fotos está o Cap Figueiredo (Carlos Borges de Figueiredo) morto em Fajonquito a poucos meses do fim da sua comissão por um ex-soldado Comando.

O ambiente de Fajonquito nos anos 70 é deveras inesquecível, devido ao largo horizonte de liberdade e relativo bem-estar social que se prefigurava, com abertura de escolas e muita abertura com a tropa.

Um abraço amigo,
Cherno Baldé



FAJONQUITO EM FESTA (1971)



Com a CART 2742 (1970-72) o ambiente entre a tropa e a população melhorou bastante, atingindo níveis nunca antes vistos. A foto de 1971 (amigavelmente enviada pelo ex- Furriel Mil. José Bebiano), mostra uma calorosa recepção de um grupo de artistas vindos da metrópole para animar a malta.

Ao meio e ao lado de uma das artistas pode-se ver o nosso saudoso Cap. Carlos Borges de Figueiredo. O rapazinho nas mãos do homem dos óculos escuros é o Carlitos, filho de um soldado Português que, mais tarde, iria à procura do pai, tendo aquele recusado o encontro à última da hora.

O ex-Furriel, José Bebiano, que era de rendição individual, tendo feito toda a sua comissão em Fajonquito poderia, eventualmente, identificar os soldados que acompanham o seu Comandante nesta foto.


PRINCESAS DE CANHAMINA 

Na foto vê-se a(s) mulher(es) de Nharó Baldé, ex-Alferes e comandante de um pelotão de Milícias na área de Sancorla/Fajonquito.

NOTA: Faleceu na noite do dia 19 Outubro, em Bissau, o nosso pai e tio, Sidi Baldé, que exercia a função honorifica de Régulo, o último dos príncipes de Sancorlã do período da guerra colonial, ex-Alferes e comandante de pelotão de milícias em Sare Uali e Sumbundo (área de Fajonquito).

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé

Comentário do editor:
Em nome dos editores e da tertúlia, apresento ao nosso amigo Cherno Baldé, assim como à sua família, o nosso pesar pela morte do seu tio Sidi Baldé, Régulo e Príncipe de Sancorlã, ex-Alferes, CMDT de Pelotão de Milícias.
Mais um camarada e amigo que lutou a nosso lado e que nos deixou no dia 19 de Outubro.
Paz à sua alma. Honremos a sua memória.
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12011: Memória dos lugares (246): Gabu / Nova Lamego, 1972/73 (Joaquim Cardoso)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)

1. Comentário de  Cherno Baldé ao poste P9028 (*):

Caros Nuno Dempster e Luís Graça,

Antes de mais quero felicitar o Nuno pela publicação do seu livro de poemas que, se bem me lembro, em tempos já nos tinha sido anunciado.

Sobre o poema ora apresentado, com odor de sangue e de morte, duas coisas espalmadas em frases muito sentidas me chamaram a atenção e motivam este meu comentário como que a testemunhar os traumas que persistem, também, na memória de quem viveu no teatro de uma guerra violenta e indesejada, à semelhanca dos fumadores passivos.

Uma vez, trouxeram ao aquartelamento de Fajonquito, provavelmente para evacuação, um grupo de civis, trabalhadores de uma casa comercial, que tinham sido feridos no rebentamento de uma mina A/C na estrada de Cambaju.

Entre os feridos, havia um que de forma insistente emitia este mesmo pedido de cortar a respiração de quem ouvia e que ainda hoje parece que estou a ouvi-lo: "Água, água, quero água!!!".

Na altura, não tinha compreendido que, no meio de tanta gente, ninguém se tivesse oferecido a ajudar o desgraçado do homem que, de forma ininterrupta, continuou até a madrugada, a cortar o silêncio da noite, com o seu grito lancinante. De manhã, quando voltámos ao quartel, era um silêncio completo. Das duas uma, ou sucumbira ou tinha sido evacuado.

A segunda observação, menos dramática, tem a ver com o que se parece ser uma forte ligação entre os Comandantes das companhias (os Capitães) e os elementos constituintes destas mesmas companhias que tenho constatado amiúde nos relatos de antigos soldados e mais uma vez se expressa numa frase do poema: "Capitão, meu Capitão, não nos deixes sós".



Numa recente troca de mails, o meu amigo e camarada de Fajonquito, José Cortes , da companhia "Deixós-poisar" [, a CCAÇ 3549 ,] disse-me que um dos acontecimentos mais marcantes da sua companhia durante a comissão tinha sido a perda do seu Comandante, Cap Patrocínio, a quem tinham muita estima. [ De seu nome, José Eduardo Marques Patrocínio].


E algumas semanas antes da chegada desta companhia, a outra que vinham substituir [, CART 2742,] a tinha perdido, num acidente, o seu comandante, Cap Figueiredo[, de seu nome completo, Carlos Borges Figueiredo]. Esta perda foi tão brutal e dolorosa que ainda hoje, ao que parece, não se reencontraram em parte alguma, tendo perdido o fio a meada, aglutinador, ao contrário de outras cujos encontros se tornaram habituais.


Entre nós há um provérbio que diz que os mais velhos são como as lixeiras, sítios/espaços para (des)carregar as mazelas e...o lixo dos outros. Na língua Fula chamam-lhe "Donha" e em crioulo é “Muntudo”, ou seja a capacidade de sofrimento na humildade.

Estas observações me levam a uma tese (questionamento) que lanço à discussão de todos e em especial ao meu irmão de Contuboel, Luís Graça na qualidade de antigo combatente e sociólogo:
A forma (modelo de base) como as companhias (de quadrícula) eram formadas, estruturadas criava laços de união (ver cumplicidade) tão fortes que, por sua vez recriavam, no conjunto do pessoal, uma espécie de confiançaa/dependência exclusiva e quase paternal nos comandantes como única forma de alcançar reais sucessos no teatro de operações ou de, pelo menos, conseguir sair do inevitável sem grandes prejuízos.

Cherno Baldé
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9028: Blogpoesia (167): K3, de Nuno Dempster: excerto: "Capitão, meu capitão, não nos deixes sós!"

(**) Último poste da série > 14 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8901: Memórias do Chico, menino e moço (29): O sold cond auto Dias ou Manuel Alberto Dias dos Santos, da CCAÇ 3549 (Fajonquito, 1972/74) (Cherno Baldé / José Cortes)
 

terça-feira, 18 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Contuboel > Ponte sobre o Rio Geba > 16 de Dezembro de 2009 > Foto de João Graça, médico e músico, membro da nossa Tabanca Grande. O Cherno Abdulai Baldé, o Chico de Fajonquito,  é natural de Fajonquito, que pertence ao Sector de Contuboel, Região de Bafatá. Entre os de Fajonquito (na fronteira com o Senegal) e os de Contuboel (que,  no meu tempo,  Junho/Julho de 1969, era centro de instrução militar, foi lá que foi formada a futura CCAÇ 12...) havia (ou ainda há) uma certa rivalidade... nomeadamente em termos futebolísticos (diz-nos o Cherno).


Foto: © João Graça (2010). Direitos reservados

1. Mensagem do guineense Cherno Baldé, amigo e membro do nosso blogue, com data de 17 do corrente

Caro Luis Graça,

Na continuação das crónicas de Chico (Cherno Baldé,  de Fajonquito), envio mais esta, esperando que suscite reacções mais positivas do que as anteriores.

De notar, entretanto, que não existe nenhuma motivação, pró ou contra relativamente ao nome de Mortágua ou de outras possiveis conotações.Tudo foi fruto do simples gosto de escrever recordações e de partilhar pontos de vista. Como poderão notar, não conheço esta localidade ou freguesia e nunca convivi com outra pessoa que tivesse estas origens salvo o soldado a que me refiro e do qual me lembro vagamente.

Cherno Abdulai Baldé - A partir de Bissau.


2. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15):  O Mortágua (*)


Para todos aqueles que conhecem minimamente terras Lusas, Mortágua deve significar uma aldeia, vila, freguesia ou cidade,  situadas algures no centro norte de Portugal. Para as crianças "rafeiras" do quartel de Fajonquito por volta de 1970/72 (**), Mortágua era o nome dado a um dos soldados cozinheiros da messe dos oficiais,  situada nas traseiras da casa comercial Ultramarina, onde trabalhava o meu pai. 

Por detrás desta cozinha, encontrava-se o salão de futebol de cinco, onde passávamos a maior parte do tempo a brincar ou a observar aquelas crianças adultas, como lhes chamava a minha avó, que eram, nesse caso, os soldados portugueses, a jogar a bola no meio de gritos e, quase sempre, como que para impor a ordem, um ou outro oficial espectador junto ao murro que circundava o salão.

Indiferente, sorumbático e a destoar de tudo e de todos,  estava o Mortágua ocupado nos seus afazeres de todos os dias. O homem não era muito vulgar, a começar por seu tamanho que saltava fora do comum dos portugueses. Era alto e possuía enormes pés,  sempre descalços,  ou em chinelas que mais pareciam trompas de elefante, pintados de nódoas pretas da caldeira da cozinha e o corpo invariavelmente habitado por cascas de batata, penas de galinha e restos de comida. 

Tanto o víamos ocupado à volta da sua cozinha que pensávamos que ele passava lá as noites. Quando matava as galinhas, não se dava ao trabalho de cortar a garganta e segurá-las até esfriar para não saltitarem enquanto lutavam entre a vida e a morte, momentos que todos os seres humanos devem respeitar, como mandam as regras. Ele, ao contrário, segurava nelas e batia a cabeça das pobres criaturas contra as bordas salientes de um tanque e, de seguida deixava-as rolar no chão até perderem a vida. 

Esta crueldade da parte de um homem, certamente, criava um misto de medo e de ódio contra ele da parte das crianças e por extensão da aldeia, também. Não era dado a passear ou a brincar, nem tão pouco frequentava a aldeia, plantada mesmo ao pé do quartel,  doutro lado da estrada para além da vedação de arame farpado. A sua postura de homem solitário, triste e cruel,  fazia pensar numa alma infeliz.

Ora, ai é que estava o cerne da questão, e que me intrigava sobremaneira. Na minha opinião, era difícil imaginar que pudesse haver pessoas infelizes num sítio com tanta abundância de alimentos e de vida, jovem e saudável. Certamente, estes brancos não sabiam a felicidade que Deus lhes tinha concedido ao enviar-lhes neste mundo sem as mazelas que atormentavam a população nativa, pensava eu. 

Se não vejamos: Não tinham bebés para amamentar e levar as costas, aliás não eram obrigados a aturar as birras das mulheres que diariamente engendravam mil e um conflitos nas nossas moranças criando fissuras na coesão social e familiar com as suas histórias trelelé, sem pés nem cabeça, nascidas da sua eterna insatisfação sexual; não tinham velhotas intrometidas como a minha avó que queria saber e controlar tudo e todos ao pormenor só para se manter ocupada e não definhar; não tinham doenças, pelo menos, nunca tinha visto sequer um soldado que o estivesse, salvo algumas diarreias que entupiam as casas de banho em certas ocasiões.

Desde o primeiro contacto, para mim, o quartel transformou-se irremediavelmente num local atractivo porque era o lugar ideal, quase perfeito, para viver, longe das misérias do mundo. Os homens em geral têm tendência natural para justificar as suas fraquezas. Foi assim que, confrontados com a força conquistadora e dominante dos Portugueses, os nossos velhos encontraram uma forma subtil e engenhosa de explicar a supremacia e também, a sorte dos brancos. Diziam: "A eles, Alá (Deus) deu tudo o que desejavam neste mundo e a nós, pretos, Deus nos reservou o paraíso na eternidade, na condição de sermos pacientes e cumpridores das obrigações contidas nos cinco pilares da religião". 

Todavia, não era assim tão simples no espírito de uma criança que tinha fome e muita curiosidade. E mais, a fome podia ser enganada ou controlada mas era mais difícil ocultar a evidência, para lá das barreiras e dos dogmas.

Desculpem pois, estava a falar do Mortágua. Pensava eu ser esse o seu nome, todos o chamavam assim. Não raras vezes, gritávamos, escondidos noutro lado do murro do pequeno salão: 
– Mortábua !!! Mortábua !!!

Era uma festa de risos e assobios, após uma breve escapada, seguros da nossa impunidade. Mais que a zombaria, era a sonoridade do nome que nos divertia. Mas ele nunca reagia as nossas provocações, continuando impávido a descascar batatas ou a depenar as suas galinhas dessacralizadas.

Num dia em que me tinha levantado mais cedo que o habitual como que empurrado pelo Satanás, fui ao centro da aldeia, onde se situava a única escola e, como não estava ninguém naquela hora do dia, desci para os lados do quartel. No refeitório cruzei-me com o sempiterno Zeca Mané, auxiliar da cozinha, ainda com os vestígios da bebedeira de ontem, a lavar as panelas e a pôr lenha no fogão para o café da manhã, acompanhado de algumas crianças que o ajudavam a troco dos restos de comida da véspera. Do forno da padaria, situado entre a cozinha e a caserna dos condutores, saia o cheiro agradável do pão a cozer mas, ainda a maior parte da malta estava dentro das casernas a preparar-se para o novo dia que começava.

Encostado ao murro do refeitório, para não ser visto por Matos,  o Chefe da cozinha, que por razões que não sei explicar, não simpatizava comigo, dirigi-me aos colegas suplicando-lhes que me dessem um pouco dos restos de comida, para segurar a barriga . Talvez devido à vida de rafeiros que levavam no quartel, normalmente nenhuma das crianças cedia em tais condições em oferecer comida aos outros. Nenhum deles sequer olhou para mim. Como não respondiam, dirigi-me para o local onde sabia estar escondida a comida e então chamaram o patrão:
- Xô Matos, olha o desenfiado!

O Matos era um brutamontes e, sabendo do perigo que corria, deixei o refeitório e afastei-me para os lados do salão. Estas circunstâncias salvaram-me de uma morte certa mas, vamos por partes.

Sem saber ao certo o que fazer perante a recusa dos colegas que sabia ser irreversível mas ainda com a barriga vazia, dirigi-me para os lados do salão de futebol e, aí, avistei uma figura conhecida, era o Mortágua nas suas lides diárias. Inclinado sobre um caixote de madeira semi-aberto, ele apanhava com uma das mãos as batatas inglesas munido de uma faca de cozinha. Talvez devido a monotonia da hora e, sem pensar nas consequências, chamei:
- Mortábua!

Como que picado por uma vespa, o homem levantou-se com uma facilidade que não suspeitava nele e lançou-se na minha direcção com a faca em punho. Com a surpresa do momento, ainda perdi alguns segundos sem reagir. Pensei em fazer marcha atrás mas, na cozinha estava o Matos mais um grupo de soldados da companhia de operacionais, que não hesitaria em caçar-me. Pensei em fugir e entrar na caserna dos condutores mas ainda alguns estavam na cama e arriscava-se a levar dupla porrada. A única saída eram os arames farpados.

Com o medo à flor da pele, dei meia volta, como que a querer dirigir-me a cozinha, de seguida virei na primeira porta do refeitório e que dava para a padaria, tendo voltado de novo ao salão do qual saltei o primeiro e o segundo murro sem dificuldades, tendo-me, depois, lançado em grande velocidade, em direcção ao cercado mais distante, situado ao sul e que dava acesso ao morcunda, bairro Mandinga. A distância a correr era razoável e convinha fazê-lo rapidamente e em ziguezague senão arriscava-me a ser atropelado pelo monstro.

O Mortágua não cedia um passo. Não podia supor, nem por um triz que aquele calmeirão fosse tão ágil e resistente na corrida. Sentia o bafo de ar quente por cima da minha cabeça e eu corria e corria. No quartel, já se tinha perfilado um certo número de curiosos a observar a corrida. Só pedia a Deus que a sentinela estivesse a dormir, senão... Sentia que as pernas estavam cada vez mais pesadas e as mãos do gigante me arranhando as costas no desespero de me agarrar. Socorro!

O que o Mortágua não sabia era que tudo estava calculado, de antemão, assim como fazem os animais que vivem sob ameaça permanente. Havia sítios onde tínhamos feito aberturas com as pontas redondas do arame viradas para cima, de modo a permitir a passagem de um corpo minúsculo e, foi por ai que me escapuli, deixando cair o corpo a terra e rolando por baixo, da mesma forma que nos tinha ensinado o nosso "instrutor militar". 

O Mortágua, incrédulo e impotente,  começou a mandar vir com imprecações acompanhadas de mil ameaças caso voltasse a pisar o quartel. Atirou-me ainda algumas pedras mas a partida já estava perdida para ele, pelo menos, desta vez. Pelos vistos, era preciso mais que a fúria de um gigante para encurralar um rafeiro.

Como se nada tivesse acontecido, com o corpo riscado de arranhões e a camisa em tiras, juntei-me ao grupo de rapazes que seguia para Morcunda. Agora era preciso encontrar os mantimentos necessários e juntos partir para a bidal, ponto de encontro da malta jovem nos períodos matinais. Devíamos preparar alguma provisão em mangas que íamos roubar no bairro mandinga. E foi ai que começou o desenrolar do drama que dava sequência ao episódio do refeitório e que viria a ceifar a vida de alguns dos nossos colegas.

Os primeiros sinais foram de náuseas e vómitos mas não tardou a que todos aqueles que tinham passado pelo refeitório e que se tinham servido da comida da véspera no quartel, estivessem estatelados no chão sem forças. Pusemo-los dentro dos caixotes que nos serviam de carros para os arrastar mas as cordas cediam e, então,  fomos obrigados a carregá-los nas costas até à casa Gouveia, no centro da aldeia, onde funcionava o hospital ou o que fazia passar por tal. Antes de chegarmos ao local já uma das crianças estava morta. As outras, ainda receberam alguma assistência e medicamentos mas muitas vieram, mais tarde, a sucumbir. Os mortos foram enterrados e a vida continuou, era o destino.

O que tinha acontecido? Segundo as informações que depois circularam, eles tinham comido carne de atum em mau estado de conservação que as tinha intoxicado. Esta carne vinha em latas largas e redondas. Verdade ou não e, como não podia avaliar do seu estado, nunca mais voltei a comer atum, pelo menos, enquanto durou a presença das tropas em Fajonquito.

Durante algum tempo, impediram a entrada dos civis no quartel, mas a medida durou pouco e não teve o efeito desejado pois, apesar disso,  nós entrávamos no quartel violando as ordens com conivência dos nossos amigos e os soldados que, também, continuavam a fugir a coberto da noite para visitar as suas bajudas nas nossas moranças. Era inútil.

Este acontecimento ilustra, se necessário fosse demonstrá-lo, a grande capacidade de sofrimento humano e de perdão de que são imbuídas as populações Africanas e, também da sua força espiritual na crença em Deus ou algo de transcendência superior. Quantas vezes, estes comportamentos passivos, lentos e conformistas,  não foram entendidos como sinais de fraqueza e de incapacidade. Uma vez, o meu pai, que raramente entrava em conversas inúteis, quando ouviu falar da chegada dos brancos à Lua, falou naqueles seus monólogos que nos tinha habituado, dirigindo-se a nós: 
- Estes brancos, sempre apressados, para onde nos hão-de levar?

Ainda hoje pergunto-me a mim mesmo, o que teria feito ao Mortágua para suscitar tanta raiva nele? Seriam as nossas provocações infantis ou o facto de o chamar pelo nome que, suponho, não seria o dele mas da sua terra de origem? Ou então, foi Deus que quis salvar-me por seu intermédio?

Ainda, passados muitos anos, estas questões me habitam e, esteja onde estiver, quero que saiba que ele salvou-me de uma morte quase certa, mesmo que o tenha feito de uma forma muito estranha. Espero, também, que,  com idade madura, ele tenha percebido da importância de lidar com a vida com a simplicidade e o sacramento que a nossa existência como humanos nos impõe. Obrigado,  Mortágua.

Bissau, Abril de 2010.

Guiné-Bissau > região de Gabu > Fajonquito > c. 1975 > "A nossa equipa de futebol de salão no quartel de Fajonquito entre 1974-1975, podendo-se ver em pé: Mamudo, Algássimo e o professor António Tavares; sentados: Eu (Cherno) e Aruna (filho do antigo padeiro) à minha esquerda" (CB)

Fotos: © Cherno Baldé (2009). Direitos reservados

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Chico,  grande rafeiro de Fajonquito, e sobretudo obrigado  meu amigo e irmãozinho Cherno. Já conquistaste o coração destes tugas que nos idos tempos de 1963/74 tu conheceste e admiravas, com um misto de reverência, terror, curiosidade, simpatia e compaixão... Já aqui escreveste páginas admiráveis, e únicas (que nenhum de nós poderia escrever), sobre a inocência em tempo de guerra, sobre a condição dos meninos guineenses dentro e fora do arame farpado, sobre o quotidiano dos soldados portugueses visto pelo desarmante e fascinante olhar infantil, sobre a vida e a morte das crianças numa tabanca fronteiriça  militarizada, sobre a atracção e a repulsa da cultura europeia... 

Cherno, as tuas crónicas, pela emoção que nos provocaram, pela autenticidade do teu testemunho, pelo fascínio das tuas memórias de infância e pela beleza literária da tua narrativa,  já bem merecem um editor português. Não tenho dúvida, não temos dúvidas: és um talentoso escritor de língua portuguesa. E o nosso blogue orgulha-se de estares entre nós, como guineense, como homem, como amigo, como lusófono. Espero que esta crónica chegue ao conhecimento do Mortágua, onde quer que ele esteja, dos Mortáguas que tu conheceste e que, como dizia a tua avó, não eram mais do que crianças crescidas que a guerra veio roubar às suas famílias e às suas tabancas...  
________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada



10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Vd. também:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)

20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)

(**) Vd. poste de 3 de Abril de 2009 >Guiné 63/74 - P4136: As Unidades que passaram por Fajonquito (José Martins)

(...) Companhia de Caçadores n.º 1501, comandada pelo Capitão de Infantaria Rui Antunes Tomaz, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 1877, mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1497, em 26 de Janeiro de 1967, vindo a ser substituída pela CCaç 1685 em 19 de Setembro de 1967.

Companhia de Caçadores n.º 1685, comandada pelo Capitão de Infantaria Alcino de Jesus Raiano, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 1912, mobilizada em Évora no Regimento de Infantaria n.º 16, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1501, em 19 de Setembro de 1967, vindo a ser substituída pela CCaç 2435 em 14 de Dezembro de 1968.

Companhia de Caçadores n.º 2435, comandada pelo Capitão de Infantaria José António Rodrigues de Carvalho e, posteriormente, pelo Capitão de Infantaria Raul Afonso Reis, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1685, em 07 de Dezembro de 1968, vindo a ser substituída pela CCaç 2436 em 20 de Abril de 1970.

Companhia de Caçadores n.º 2436, comandada pelo Capitão de Infantaria José Rui Borges da Costa, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 2435, em 20 de Abril de 1970, vindo a ser substituída pela CArt 2742 em 13 de Agosto de 1970.

Companhia de Artilharia n.º 2742, comandada pelo Capitão de Artilharia Carlos Borges de Figueiredo e, posteriormente, pelo Alferes Miliciano de Artilharia Baltazar Gomes da Silva, unidade orgânica do Batalhão de Artilharia n.º 2920, mobilizada em Penafiel no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 2436, em 13 de Agosto de 1970, vindo a ser substituída pela CCaç 3549 em 21 de Maio de 1972.

Companhia de Caçadores n.º 3549, comandada pelo Capitão Quadro especial de Oficiais José Eduardo Marques Patrocínio e, posteriormente, pelo Capitão Miliciano Graduado de Infantaria Manuel Mendes São Pedro, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 3884, mobilizada em Chaves no Batalhão de Caçadores n.º 10, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CArt 2742, em 27 de Maio de 1972, vindo a ser substituída pela 2.ª Companhia do BCaç 4514/72 em 15 de Junho de 1974.

2.ª Companhia do BCaç 4514/72, comandada pelo Capitão Miliciano de Infantaria Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 4514/72, mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 3549, em 15 de Junho de 1974, vindo a iniciar o deslocamento para Bissau a partir de 30 de Agosto de 1974, tendo um pelotão efectuado a desactivação e entrega, ao PAIGC, do aquartelamento em 01 de Setembro de 1974. (...)

domingo, 28 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6061: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (5): A mina A/P que estropiou o Vasconcelos na estrada para Cambajú

1. Mais um texto, singelo mas comovente,  do José Cortes, que vive em Coimbra (*):


Data: 7 de Março de 2010

Assunto: Narrativas de Fajonquito

Como prometi na minha entrada para a tertúlia, aqui vai a narrativa de um acontecimento, durante a comissão na Guiné.

A mina que estropiou o Vasconcelos.

Estamos em Outubro de 1972, mais ou menos 6 meses de comissão, dia 12 ou 13.

Ao fim da tarde daquele dia, três viaturas civis estão estacionadas na parada do aquartelamento, junto ao parque auto, a carregar pessoal. Como sabes,  a lotação das viaturas era mais que lotada.

Partiram logo de seguida com destino ao Senegal,  via nosso destacamento de Cambajú, que ficava junto á fronteira.

Passado pouco tempo de terem partido, talvez uma hora, ouvimos rebentamentos. Contactados os destacamentos, Cambajú dizia que era na estrada de acesso ao destacamento, mas que não havia NT no local.

Informamos que iam a caminho três viaturas civis com destino ao Senegal.

Saiu o grupo do furriel Deus, e ao chegar à picada,  o que demorou algum tempo pois tiveram que cumprir as normas de segurança entre as quais picar a estrada, depararam com as três viaturas incendiadas dentro do mato e com os civis alguns mortos e outros feridos,  principalmente queimados. Foram atacados a roquetada.

Foram levados para o destacamento e foi pedida a evacuação dos feridos.

A evacuação só podia ser feita no dia seguinte pois entretanto escureceu e os helis não voavam de noite.

No dia seguinte logo cedo é formada uma coluna de apoio ao destacamento, tanto para reabastecimento como para ajudar a cuidar dos feridos civis.

A coluna partiu, e a partir da Bolanha de Nhacra, começa-se a pôr em prática os processos de segurança entre os quais a picagem da estrada. A velocidade da coluna é reduzida e avançamos a passo de caracol, como era necessário.

Eu seguia na Mercedes,  uma viatura pesada de carga,  que transportava colchões para os civis que não precisavam de evacuação mas ficavam no destacamento para serem tratados. E outros artigos de reabastecimento. A meu lado seguia o condutor,  salvo erro era o Celestino, apoiado no guarda lamas e em cima do pára-choques ia o Vasconcelos,  soldado mecânico,  que era a primeira vez que saía do aquartelamento.

Como a velocidade das viaturas era reduzida devido à picagem, e a segurança até ao local do acidente no sentido Cambajú - Fajonquito estava feita pelo pessoal do destacamento, quando nos aproximamos do local onde as viaturas tinham sido atacadas, a coluna parou, para que a segurança que estava na estrada seguisse nas viaturas para o destacamento e deixávmos os nossos na estrada.

O Vasconcelos,  pela sua inexperiência, mal viu as viaturas queimadas,  saltou do pára choques da Mercedes, para ir ver as viaturas que estavam dentro da mata aí uns 20-30 metros. Ao dar os primeiros passos,.  ouviu-se um rebentamento... Tudo no chão... Quando o pó começou a assentar,  os gritos do Vasconcelos quebram o silêncio que entretanto se estabeleceu pelo susto. O Vasconcelos tinha pisado uma mina A/P que estava colocada no trilho de acesso às viaturas civis.

A experiência do comandante do pelotão de milícia de Cambajú,  e talvez não só, não se safou de ser apontado como sabedor da localização das minas, tal foi a rapidez com que detectou a segunda mina e procedeu ao seu levantamento.

Depois de levantada a mina,  fomos buscar o Vasconcelos que não parava de gritar. A sua perna direita tinha desaparecido até á coxa, o fémur estava sem carne até ao joelho e a sua perna esquerda tinha fractura exposta do perónio e no joelho.

Colocado o Vasconcelos num colchão dos que vinham na viatura, a mesma partiu em direcção ao destacamento, onde tinha acabado de chegar heli que ia fazer a evacuação dos civis feridos no ataque do dia anterior.

No destacamento foi outra guerra,  porque os civis não queriam deixar que o nosso homem fosse evacuado e eles não. Os ferido mais graves acompanharam o Vasconcelos e os mais ligeiros ficaram, mas foi preciso o furriel Deus impor a sua autoridade de arma em punho.

Isto passou-se salvo erro (pelo dia) no dia 14 de  Outubro de 1972. Nunca mais soubemos nada do Vasconcelos.

Em Novembro de 1998, 26 anos depois, ouvi na Rádio Renascença uma mensagem onde só apanhei a palavra Deixóspoisar, liguei para a RR onde me foi dado o contacto de quem tinha deixado a mensagem. Quando liguei e do outro lado me responderam que quem falava era o Vasconcelos,  as lágrimas caíram pela cara abaixo,  a minha mulher de volta de mim a perguntar o que era, eu sem poder falar, tal era a emoção de estar a falar com a pessoa que eu nunca mais pensava encontrar. No fim de semana seguinte o Vasconcelos almoçou em minha casa comigo,  começamos a trocar alguns contactos que tínhamos e a partir daí os encontros da companhia fizeram-se anualmente, coisa que nunca tinha acontecido nos 27 anos antes.

Pronto,  esta foi uma das ocorrências em que estive envolvido, depois hão-de seguir outras.

Um abraço, José Cortes

2. No mesmo dia o José mandou a seguinte mensagem do seu camarada José Bebiano, com conhecimento ao nosso blogue:



Caro amigo José Bebiano: Espero não te maçar com os meus emails,  nem sei se queres recordar os tempos da Guiné.

 Queria-te perguntar se te lembras de um furriel da companhia 2742, que era de Coimbra.  Só o conheco lá e mesmo assim falámos pucas vezes, porque eu andava a ser enganado pelo sargento que a companhia tinha,.  do material de guerra. Entregou-me listas com armas que já não existiam e depois vi-me enrascado para me safar no fim da comissão. Valeu-me um sargento ajudante do Batalhão do Serviço de Material, que era pai do nosso alferes Filipe.

 Caso te lembres do nome do Furriel, que salvo erro se chamava Borges mas não tenho a certeza, agradecia pode ser que o encontre por cá. 

Já agora ainda não te disse mas eu sou de Coimbra,  nascido e criado. Sou funcionáriodo SUCH (Serviço de Utilização Comum dos Hospitais), faço serviço já vinte e seis anos, como técnico de manutenção nos Hospitais da Universidade de Coimbra, ainda estou no activo pelo menos mais dois anos não quero ir já para casa. Tenho dois filhos, uma com 34 anos e um com 32 anos e um neto de cada um, que são a alegria dos avós.