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terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24085: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (37): Sentimentos que a farda militar encobre


1. Em mensagem de 18 de Fevereiro de 2023, o nosso camarada José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos mais uma das suas Histórias e Memórias, desta vez relacionada com as trágicas e traiçoeiras minas.


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

37 - Sentimentos que a farda militar encobre

Nos últimos tempos, por razões que para aqui não interessam, tenho estado afastado da escrita, mas continuo atento. O tema “minas” tem-me chamado a atenção não só pelo desaparecimento prematuro de vidas e, como não podia deixar de ser, pela destruição da qualidade de outras, que se prolongaram nos tempos.

A CCaç 3327/BII17, companhia que integrei até ser transferido para o Pel Caç Nat 56, também teve o seu malfadado encontro com aqueles engenhos na zona de Bissássema. Vou deixar que a História da Unidade fale por si na descrição dos acontecimentos e, mais importante que tudo, integrar os sentimentos que então assolaram o Fur Mil Luís José Vargem Pinto, comandante da 3.ª Seccão, do 4.° GComb, do qual eu também fiz parte. Acrescento aqui que na altura deste acontecimento eu já tinha sido transferido para o Pel Caç Nat 56.

Na História da Unidade (CCaç 3327/BII17) – CAP II, FASC XI – PAG 25 é possível ler-se uma descrição bem elucidativa do que aconteceu naquele dia 16FEV72. Os elementos feridos não faziam parte da CCaç 3327. A sua presença no local deveu-se à proteção que fizeram ao comandante do Batalhão de Tite que entendeu deslocar-se ao local do rebentamento e, segundo testemunhos de militares da 3327, por pouco não pisou uma das minas.

Este foi o estado em que ficou o pontão destruído pelo PAIGC. Sem dúvida que foi uma grande carga explosiva. Foi à volta destes escombros que foram implantadas as minas que o Furriel Pinto levantou.

Em 2011, aquando do convívio da CCaç 3327, realizado no BII17, na ilha Terceira, o Fur Mil Pinto presenteou-me com uma pequena descrição daquilo que tinha sido a sua acção no levantamento das minas e os sentimentos que então o assolaram para tomar tal decisão. Importa realçar que toda a sua acção envolve à volta dos mais altos princípios humanos e desprezo total por aquilo que lhe pudesse acontecer.

Pela pena do FurrielMil Pinto:
“...Quando levantei as minas não foi pensando no dinheiro, nem sequer sabia que pagavam 1000 escudos cada mina levantada. Em primeiro lugar pensei que não podia deixá-las no terreno, porque alguma noite podia ser necessário passar por lá e pisar alguma, aí, adeus ó perna.
Em segundo lugar pensei na população, se ficassem no trilho quando alguém por lá passasse iam acioná-las e aí seria o rebentamento com perdas irreparáveis.
Rebentá-las no sítio não era possível, o inimigo sabia à distância a nossa posição.
Portanto decidi levantá-las e levá-las para o quartel.
Quero agradecer ao nosso comandante a confiança que depositou em mim como graduado e aos homens por mim comandados para uma missão tão difícil.”

Convívio no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira, Açores, ano de 2011. Eu (à esquerda) com o Fur Mil Pinto.

Um abraço transatlântico
José Câmara

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22056: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (36): Um levantamento de rancho servido com uma bofetada

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22056: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (36): Um levantamento de rancho servido com uma bofetada


1. Em mensagem de hoje, 1 de Abril de 2021, o nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), envia-nos um recorte de uma carta enviada à então sua madrinha de guerra, hoje esposa, onde relata um acontecimento raro na tropa, um levantamento de rancho, assegurando que não é uma "peta" do 1.º de Abril.


Um levantamento de rancho servido com uma bofetada

Amigos,

Todos nós, uns mais que outros, que tivemos a responsabilidade de conduzir homens, fomos confrontados com situações que bem preferíamos não tivessem acontecido. Foi o que me aconteceu no dia 31 de Março, no AGRBIS, em Brá, Guiné. Nesse quartel estava sediada a minha companhia e outras forças militares de Serviços e Comando.

Naquele dia, a pedido do comandante da minha companhia, Sr. Cap. Rogério Rebocho Alves, estive de Sargento de Dia. Isso obrigou-me a 72 horas de serviço seguido, nada a que os militares da nossa companhia não estivessem habituados, excepto para os três furriéis que desempenhavam as suas funções de Sargento da Guarda no Palácio do Governador que, devido às suas funções, tinham descanso entre serviços. Eu era um desses felizardos.

Naquele dia 31 de Março, quando entrei no refeitório apercebi-me que iria haver borrasca, um levantamento de rancho. Para além de um distraído da minha companhia, que ao aperceber-se do seu erro tentou disfarçar, ninguém tocara no que estava sobre as mesas. O Sr. Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, de quem esqueci o nome, também se apercebeu de que o militar da minha companhia havia tocado no prato, melhor, sujado o prato, e perguntou-lhe porque não comia. Não ouvi a resposta daquele militar, um 1.° Cabo (sinto não ser necessário a publicação do seu nome para esta história) mas o Sr. Oficial de Dia virou o prato e de imediato esbofeteou aquele militar. O silêncio que se fazia sentir tornou-se sepulcral.

Sem outra alternativa os soldados começaram a comer e não houve mais incidentes. Ao fim da refeição, quando me preparava para sair, o Sr. Oficial de Dia chamou-me e ordenou-me que participasse de todos os militares da companhia presentes na refeição. Confesso que fiquei estarrecido e perguntei-lhe o motivo. Insubordinação foi a resposta dele. Na verdade, um preço muito alto a pagar pela bofetada que ele dera num militar da nossa companhia e foi isso mesmo que lhe disse.

Foram 27 participações que tive que escrever e que coloquei sobre a secretária do comandante da minha companhia. Ainda estou a ouvir o Sr. Capitão Alves, um homem de inefáveis qualidades humanas, com ele seu típico, “mas que chatice!”. Havia que haver uma saída para aquela situação, uma saída que de alguma forma se enquadrasse no Regulamento de Disciplina Militar. E assim foi. Naquela altura já se sabia que a companhia iria sair de Bissau. O Capitão reconhecia que eu tinha entregue as participações e ele tinha 30 dias para actuar sobre elas. No mato, num acampamento, quem se iria lembrar das referidas participações?

O Sr. Oficial de Dia esteve muito mal na sua actuação, mas sempre me perguntei porquê? Ele, julgo que em fim de comissão, certamente iria sofrer algumas consequências se o levantamento de rancho tivesse ido por diante. Para além disso, ele não fora o vagomestre e muito menos o cozinheiro. A sua responsabilidade, que era muita, esteve em não ter actuado sobre a qualidade da refeição. Não sei até que ponto ele o poderia ter feito num quartel que tinha como comandante o Cor. Santos Costa, na altura conhecido como o “Onze”.

As participações, passados os trinta dias, passaram ao álbum da neblina das minhas memórias.

Sobre esse assunto, no dia 1 de Abril de 1971, o último dia que estive de Sargento de Guarda ao Palácio, escrevi uma carta há minha madrinha de guerra, da qual publico o que importa para esta pequena história.

Um abraço amigo e a certeza que estou com todos vós e vossos familiares nesta hora difícil que o mundo atravessa.

José Câmara


Extracto da carta que escrevi à minha madrinha de guerra no dia 1 de Abril, a última que escrevi no Palácio do Governador
Foto tirada nos jardins do Palácio do Governador, em Bissau
Um dos meus passeios preferidos no AGRBIS ao longo da plantação de papaeiras
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20488: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (35): Canção de Natal

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20488: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (35): Canção de Natal

1. Mensagem do nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 23 de Dezembro de 2019:


Caros amigos e camaradas d’Armas,

Para nós, sobretudo os que cumpriram a sua comissão de serviço militar no Ultramar, a quadra de Natal traz-nos recordações mil. As saudades das famílias dispersas pelas aldeias de Portugal, pelos confins da Califórnia e terras frias do Canadá, pela França, a dor da partida prematura de um camarada-de-armas, a desilusão da carta que não chegou. Tudo isso contrastava com a alegria daquele “Querido filho que ao fazer esta que te encontres de saúde…" ou o encher dos pulmões com aquele “Recebe um beijo desta que te ama...”, ou ainda aquele “Abraço apertado da tua madrinha de guerra...”, de um rancho nem sempre melhorado mas muito bem molhado, do contar dos dias para o fim da comissão, da alegria do companheirismo no seio uma família diferente, grande lição de vida.

Recordar tudo isso e muito mais é legítimo. Faz parte das nossas vidas, das muitas lições que nos ajudaram a crescer como homens. Mas o Natal é muito mais que recordações. O Menino Jesus vai nascer, Senhor da Vida, da Esperança, do Amor. Que o Seu exemplo continue a produzir frutos, bons frutos. Saibamos segui-Lo na produção, Hoje e sempre, porque o Natal não é de um dia, mas de todos os dias, de uma Vida que é a nossa. Cheia de surpresas. Que vale a pena viver e partilhar.

Pela manhã, sempre que a vida me permite, debruço-me nesta janela da internet. Recebo os bons dias dos amigos. Do JERO, do Juvenal, do Valério, do Magalhães, do Briote, do Fontinha, do Picado, do Carlos Silva, do JD, do meu mano Carlos Vinhal e de muitos outros. O Miguel sabe que eu gosto de ler as notícias da minha terra mãe e não falta com elas. Confesso que sinto a falta do Jorge, do Faria, do Rebola e de mais uns quantos que da lei da morte se libertaram. Dou um passeio pela Tabanca, que desentorpecer as pernas também faz bem.

Foi num daqueles debruçares matinais que senti uma pancada no peito, uma enorme surpresa. Onde se podia ler: - “Ainda vives em Stoughton? É que no próximo dia 20 vou a Dartmouth MA, e lembrei-me que, se entretanto não te tiveres mudado para a Flórida ou coisa semelhante, eu podia dar aí um salto para nos conhecermos pessoalmente. Se bem que quase te conheço já, graças ao blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné" onde te encontrei, especialmente no post 13528, de 23 de Agosto de 2014).

As tuas palavras - "Concordo que a Guiné nos pregou ao corpo e as recordações, umas bem melhores que outras, trazem-nos emoções que só quem por lá andou compreende a sua extensão. Não sinto nostalgia daqueles tempos, mas tenho saudades da minha juventude de então, dos muitos amigos que criei. Conservo boas recordações daquelas gentes, sobretudo das crianças de olhos esbugalhados e sorridentes, dos meus soldados africanos." - fazem-me crer que temos muito em comum. Faz bem lembrar, partilhar…
Se me permitem, num abraço amigo, os meus votos para que tenhais Festas Felizes e Bons Anos no seio dos vossos familiares e amigos."

João Crisóstomo (na esquerda) e eu na minha casa em Raynham, Massachusetts.

Caros amigos, dias depois, o João Crisóstomo e a esposa entravam com esta simplicidade na minha humilde casa, em Raynham. Eu e a minha esposa demos-lhes o melhor tínhamos para eles, um abraço sincero de respeito, amizade e agradecimento. E, claro, um café e uns doces, que aquele simpático não nos permitiu mais e melhor. E duas horas de um bom e são convívio e camaradagem. Deixámos sair a alma.

Enquanto as senhoras se embrenharam nas suas conversas, o João deu-me a conhecer parte da sua obra. Timor e as suas gentes, sobretudo as crianças, é um dos seus grandes amores. Confesso que ao seu lado me senti muito pequeno, tal a sua força de vontade, da sua franqueza, do tamanho do seu coração no bem querer fazer.

Sim, João, valeu a pena recebido a vossa visita. Que Deus abençoe na vossa obra e a vossa vida.

Sim, o Menino Jesus também tem destes presentes. Depositado que foi numa árvore de Natal, um poilão, na Tabanca Grande.

O Natal é uma canção. Sim, eu continuo criança e acredito que o Menino Jesus nasce todos os dias.

Festas Felizes e Bons Anos para vós e vossos familiares.

Bem hajam.

José Câmara
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17024: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (34): Correspondência do Ultramar: Ressurreição nas Matas da Guiné

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17024: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (34): Correspondência do Ultramar: Ressurreição nas Matas da Guiné

Mata dos Madeiros
Foto: © José Câmara


1. Mensagem do nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 31 de Janeiro de 2017:

Amigos e camaradas,
O tempo vai passando… A terra vermelha que impregnou os nossos corpos é a mesma, as recordações continuam bem vivas na nossa memória, as amizades que criámos ao longo dos tempos continuam.

Não me esqueci da sombra do Poilão que a todos refresca, nem dos belos artigos que animavam a tertúlia. Muito menos do respeito que havia na tertúlia e das discussões, por vezes mais acaloradas, que acabavam sempre num abraço. Nada substitui os afectos, o respeito, a amizade, porque no dia a dia esbarramos com situações que nos fazem acreditar que este mundo é bom, porque há pessoas que, não nos conhecendo de lado algum, têm o cuidado de nos presentear com emoções que um dia julgámos impossíveis.

Foi o que me aconteceu e jamais esquecerei esse momento. Agradecimentos sem fim que vão para todos os intervenientes desta bela jornada humana. O Sr. Coronel Hélder Vagos Lourenço, que fez comissão em Angola como Comandante de Companhia e mais tarde foi Comandante do BII17, hoje Regimento de Guarnição 1, em Angra do Heroísmo, com a colaboração do Sr. Major Costa e dos militares daquela Unidade Militar, presenteou-me com uma cópia de um pequeno artigo que então escrevi nas matas da Guiné e que foi publicado no jornal “O Castelo”, edição de 1 de Junho de 1971.

Passaram-se mais de quarenta anos sobre a minha primeira saída na Mata dos Madeiros e das emoções que me assolaram então e que a passagem do tempo ajudou a suavizar.
Hoje volto à Guiné.

Um abraço
José Câmara


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Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13792: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (33): Um bagabaga que serviu de altar num casamento

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13792: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (33): Um bagabaga que serviu de altar num casamento

 
1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 17 de Outubro de 2014:

Carlos, amigos e camaradas,
O artigo do José Saúde(1) despoletou-me a curiosidade e fez-me recuar no tempo, às minhas experiências vividas na Mata dos Madeiros, naquele longínquo ano de 1971.
Naquela Mata vivi situações reais que mais parecem contos de fadas. Esta é uma delas.

Com votos de muita saúde, um abraço transatlântico.
José Câmara


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

33 - Um bagabaga que serviu de altar num casamento

O José Saúde no seu fino artigo “As arquitetónicas fortalezas das formigas na Guiné” transporta-nos mais uma vez à importância que os bagabagas tiveram nas nossas vidas enquanto militares na Guiné. Diz-nos que felizmente não foi necessário usá-los como defesa, mas como comentou o Hélder Valério, para além da guerra havia uma componente a que não era indiferente, a fauna e a flora da província. Tal como a ele, estou certo que muitos de nós ainda temos na retina muito do belo que a Guiné tinha.

Pelo seu tamanho e estrutura os bagabaga eram um ex-libris da natureza guineense. Na Mata dos Madeiros havia muitos que foram utilizados por nós, militares da CCaç 3327, de várias maneiras, sobretudo de apoio noturno nas emboscadas que montávamos. Mas há um que foi especial na história da Companhia: serviu de testemunha a um casamento, se preferirem, foi o altar possível de uma cerimónia em que a noiva se encontrava a muitas centenas de quilómetros.

Recuando no tempo, no meu Poste 6084(2) faço referência ao casamento do Fur Mil Fernando Pedro Ramos da Silva no dia de Páscoa de 1971, que se encontrava em patrulhamento algures na Mata dos Madeiros. Também é verdade que não tinha nenhuma foto para ilustrar a cerimónia simples que lhe dedicámos no nosso acampamento da Mata dos Madeiros antes de ele regressar ao patrulhamento. E assim continua. Quando escrevi aquele artigo também estava bem longe de saber que o Fernando Silva nos tinha deixado muito cedo na vida.

Depois de ler o artigo do José Saúde, o Fur Mil João Cruz chamou-me para me alertar para uma foto que me cedera em tempos sobre o casamento do Fernando Silva. Na história que um dia será escrita sobre a guerra da Guiné certamente que os bagabagas terão um destaque importante nas componentes militar e paisagística. Hoje podemos acrescentar que pelo menos um também o foi na formação de uma família, a do casal Fernando e Celeste Silva.

O bababaga que serviu de altar a um casamento. Na Mata dos Madeiros, o Fur Mil Fernando Silva bebe do seu cantil no momento em que a noiva, a Celeste, estaria na cerimónia religiosa do seu casamento, numa igreja algures no Portugal Continental. São testemunhas, a partir da esquerda: os Fur. Mils. Joaquim Augusto Fermento (Minas e Armadilhas), Carlos Alberto R. P. Costa (Operações Especiais) e na frente o João Alberto Pinto Cruz (At. Inf.)

Foto (Cortesia de João Cruz, FMil. CCaç3327)
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Nota do editor

(1) Vd. poste de 12 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13723: Memórias de Gabú (José Saúde) (42): Baga-bagas, castelos de liberdade e de defesa

(2) Vd poste de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros

Último poste da série de 29 de Abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11503: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (32): Bassarel, um paraíso no chão manjaco

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11503: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (32): Bassarel, um paraíso no chão manjaco

1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, BráBachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 6 de Abril de 2013: 

Meu caríssimo Carlos, amigos e Camaradas,
Num passado recente o nosso amigo e camarada José Martins presenteou-nos com dois excelentes trabalhos de pesquisa histórica.
Os artigos debruçaram-se sobre algumas das escaramuças sustentadas pelas nossas tropas contra os nativos da Guiné, muito antes da nossa chamada Guerra do Ultramar. Os belos trabalhos do José Martins evidenciam o cuidado que os nossos antepassados tiveram na feitura da história das suas unidades, que apraz registar. Infelizmente, a esta distância no tempo e por falta de dados suficientes, não me é possível referenciar com rigor histórico o movimento das praças da minha Companhia, nos chamados Destacamentos de Teixeira Pinto. Quedo-me pois pelo movimento dos graduados, aproveitando esta oportunidade única para apresentar aqueles que dignamente tiveram a responsabilidade de comando na CCaç 3327.
Neste escrito que agora trago ao nosso blogue, faço o que me foi possível para facilitar a vida de um futuro José Martins.

Abraço transatlântico.
José Câmara


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

32 - Bassarel, um paraíso no Chão Manjaco

Para trás ficaram os sacrifícios e as privações que sofrêramos na Mata dos Madeiros. Bem acorrentadas ao coração levávamos recordações que a neblina da memória até hoje não conseguiu apagar.

Mata dos Madeiros: Aspecto da nova estrada Teixeira Pinto/Cacheu, recordação de uma vida

A CCaç 3327, agora adida ao BCAÇ 2905 para efeitos operacionais, dava início à sua nova missão, ao ir substituir a CCaç 2637, também esta uma companhia açoriana do BII18, nos Destacamentos de Teixeira Pinto.

Era então o dia 29 de Junho de 1971.

Na altura, eram quatro destacamentos: Bajope, Blequisse, Chulame e Bassarel, tendo a companhia formado um novo destacamento em Calequisse, o mais afastado, a cerca de 25 quilómetros de Teixeira Pinto. Aí ficou o 3.° GComb, sob o comando do Alf Mil José Queiroz Lima de Almeida, coadjuvado pelos Furs Mils Carlos Jesus e André Fernandes.

1971 - Capelinha erguida pelo 3.° GComb da CCaç 3327, em Calequisse

Em Bassaarel, a cerca de 20 quilómetros de Teixeira Pinto, ficou o Comando e Serviços e o 4.° GComb, este sob o comando do Alf Mil Francisco João Magalhães, coadjuvado pelos Furs Mils José Alexandre Câmara e Luís José Pinto, aos quais se juntava o Fur Mil Manuel Lopes Daniel (Armas Pesadas) que para efeitos operacionais integrava esse grupo de combate. As transmissões estavam a cargo do Fur Mil João Nunes Correia, os serviços de saúde sob o Fur Mil Rui Esteves e da alimentação se encarregava o Fur Mil Luís Martins de Moura. A secretaria era da responsabilidade do 1.° Sarg João Augusto Fonseca. O comando da companhia estava a cargo do Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves.

O 2.° GComb, sob o comando do Alf Mil Agostinho Morgado Barada Neves, coadjuvado pelos Furs Mils Joaquim Fermento e João Alberto Cruz, tomou conta do Destacamento de Chulame.

O 2.° GComb, desfalcado de uma Secção, ficou em Chulame

Em Blequisse ficou uma Secção do 2.° GComb, sob o comando do Fur Mil Fernando Ramos Silva. Em Bajope, o Destacamento mais perto de Teixeira Pinto, ficou o 1.° GComb, sob o comando do Alf Mil João Luís Ferraz, coadjuvado pelos Furs Mils Carlos Alberto Pereira da Costa e Francisco Monteiro Caseiro. Os serviços Auto ficaram em Teixeira Pinto, sendo seu responsável o Fur Mil António José Marques e Silva. Infelizmente, a esta distância no tempo, não consigo localizar onde ficou o 1.° Sarg Manuel Pedro Vieira. Em Bassarel não foi de certeza.

O Furriel João Alberto Cruz, mais tarde transferido para Blequisse, fazendo o recenseamento da população neste Destacamento

Feitas as apresentações dos comandos e dispositivo militar, o que ressalta é a separação dos grupos de combate da CCaç 3327, que só voltariam a encontrar-se no dia 24 de Dezembro de 1972, quando a companhia, em fim de comissão, regressou a Bissau.

Com muita pena minha, com esta separação de forças, logicamente as minhas memórias passarão a ser mais concentradas nas minhas vivências em Bassarel.

Durante a deslocação entre Teixeira Pinto e Bassarel pudemos observar que a picada tinha óptimas condições, até porque ali ainda circulava um autocarro de passageiros que ia até Calequisse. A vegetação era bastante densa em ambos os lados. Como ponto de grande apreensão, a Curva da Onça, um autêntico cotovelo dobrado na estrada, a seguir a Chulame, oferecia condições idílicas para plantação de minas e emboscadas.

Outra particularidade verificada no trajeto, foi a ausência de povoados ao longo da picada, exceção para Balombe e Bafundade já muito perto da entrada para o ramal de Bassarel.
Ao entrarmos naquele ramal, foi possível verificar alguns terrenos muito bem cultivados na direita e outros terrenos em face de desbravamento na esquerda, que faziam parte de uma cooperativa agrícola.

Bassarel, sede do regulado com o mesmo nome, outrora campo de grandes tensões entre manjacos e tropas portuguesas, era agora um pequeno povoado, quase todo ele reordenado, relativamente bem arranjado. Mais tarde, foi possível verificar que as pessoas, sobretudo os homens, eram bastante reservadas, mas que depois da desconfiança inicial se mostravam amigas e receptivas aos nossos militares.

Bassarel: José Câmara junto do monumento da CCaç 2637/BII18

O quartel, de pequenas dimensões, cercado por duas fiadas de arame farpado, tinha dois edifícios principais, relíquias da Casa Gouveia. No edifício senhorial ficavam os dormitórios e messe de oficiais e sargentos, serviço de transmissões, arrecadação de géneros e cantina geral. No alpendre das traseiras ficava o refeitório das praças. O outro edifício, um barracão com alguma dimensão, servia de caserna para os praças.

Destacados destes edifícios havia um forno, uma pequena arrecadação e uma cozinha, esta sim com poucas ou nenhumas condições. O poço de água estava seco.

Como complemento de tudo isto, havia um paiol geral em frente ao edifício principal e uma única vala de defesa virada para o lado oposto da entrada principal. Do lado de fora do arame farpado havia um heliporto construído em cimento, que parecia oferecer excelentes condições de aterragem.

Na direita, junto da entrada principal para o destacamento, entre os arames farpados, debaixo de uma grande árvore mangueira funcionava a escola militar para os jovens das redondezas.

A parada, de terra batida de boas dimensões, também servia de campo de jogos.

Na verdade, Bassarel oferecia condições logísticas muito razoáveis. Para além disso, a zona estava perfeitamente pacificada.

Para nós, que ainda recentemente vivêramos o inferno das Mata dos Madeiros, Bassarel era um paraíso terrestre que importava que assim continuasse.

Quando ali chegámos, cedo na tarde daquele dia 29 de Junho, reparámos que ficaríamos alojados em Tendas de Campanha. Era a nossa sina, mas compreendemos ser razoável e normal num pequeno quartel, cujas instalações não tinham capacidade para tanta tropa.

Fomos recebidos com simpatia e alegria pelos elementos da CCaç 2637. Para estes, era o princípio do fim da sua comissão. Para além disso, havia muita gente conhecida entre os elementos de ambas as companhias. Mas toda aquela simpatia e alegria tinham um preço.

Ainda antes de descarregarmos as viaturas recebemos ordem para nos prepararmos para a primeira patrulha. Iria dar-se o início à sobreposição.

Nessa altura estava bem longe de saber que nos dias mais próximos iria protagonizar o dia mais negro das minha curta carreira militar.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (31): Operação Sempre Alerta: a morte de um amigo diferente

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (31): Operação Sempre Alerta: a morte de um amigo diferente

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 6 de Junho de 2012:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história sobre as minhas memórias lá para os lados da Mata dos Madeiros.
Como sempre fica ao teu dispor fazer com ela o que bem entenderes.

Para ti, para os nossos camaradas, votos de muita saúde e de um bom verão.

Um abraço fraterno,
José


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS (31)

Operação Sempre Alerta: a morte de um amigo diferente

Era então o dia 25 de Junho de 1971. Os dois grupos de combate da CCaç 3327, que tinham estado a fazer segurança ao acampamento na Mata dos Madeiros, regressaram na manhã daquele dia. Sem o pessoal das transmissões, o que avolumava as suspeitas de que estava eminente uma operação de grande envergadura.

Como acontecia muitas vezes, durante a tarde fui ajudar na Secretaria. Gostava de o fazer. Para além de ser útil, mantinha alguma actividade que me ajudava a passar o tempo.

Ao cair do dia, o Sr. Cap. Rogério Alves entrou na secretaria. Vinha tenso e o seu semblante denotava preocupação. Carregava um punhado de papéis e mapas nas mãos que chapou, esse é o termo, em cima da secretária e à qual se sentou. Colocou os cotovelos no tampo e a cabeça entre as mãos. Era a imagem completa do desalento num homem que, pela sua dinâmica e trato fino, transmitia confiança e algum à-vontade. O que o levara àquele estado tinha que ser muito sério.

Pressentindo que estava ali a mais, levantei-me e dirigi-me para a saída. Ao passar junto da secretária do Capitão Alves, este, com um pequeno gesto, empurrou os mapas na minha direção.

Estaquei! Durante semanas andara com eles na Mata dos Madeiros. A diferença, a grande diferença, eram as linhas vermelhas estampadas nos mapas, que partiam em paralelo do nosso último acampamento da Mata dos Madeiros até ao fundo da Mata do Balenguerez.

Ali, pela confiança depositada em mim por aquele homem bom, tomei conhecimento antecipado da enormidade e dos perigos que aquela operação acarretava. Estava em marcha a operação “Sempre Alerta”.

Senti um calafrio enorme. Não pela operação que já todos esperávamos, mas pela forma como ia ser executada, para um sítio que desconhecíamos completamente. Com a duração de cerca de nove horas, seria executada por toda a Companhia, dividida em dois bigrupos em progressão paralela, com as duas linhas de penetração muito perto uma da outra. Não me recordo de alguma vez termos praticado esse tipo de progressão, daí a minha grande apreensão.

Conjeturando com os meus próprios pensamentos, decidi dar uma volta pelos arredores. Na parada, encontrei o Fur Mil André Manuel Lourenço Fernandes, do 3.° GComb, em amena brincadeira com o seu amigo predileto, o Piriquito. Este, um tecelão amarelo ainda jovem, tinha sido apanhado pelo André, que o alimentou e matou a sede. Enquanto um corria o outro voava. Ao chamamento do André, lá vinha o passarito que pousava no seu ombro e aguardava pacientemente que o André lhe reconfortasse o bico com algum acepipe. Eram inseparáveis! Aquela cena enternecedora contrastava com o turbilhão de desencontros que me ia na alma.

Os meus passos levaram-me até à porta de armas, subi a avenida principal de Teixeira Pinto e entrei num bar muito frequentado pelas nossas tropas. Era a primeira vez que ali ia. Não dei pelo fumo dos cigarros, tão pouco pelo cheiro do álcool e muito menos pelo barulho ensurdecedor que se fazia ouvir. Tudo isso era-me indiferente. Estava ali para beber uns copos, eu que não conseguia beber duas cervejas seguidas.

Foi então que aquela voz chegou até mim, melhor, estalou no meu cérebro, de tal forma que ainda hoje não esqueci:
 - Eh Furriel, manga de ronco no Balenguerez!

Na penumbra do estabelecimento tentei descobrir quem era aquele guineense alto, vestido à civil, que já sabia do que me ia na alma. Talvez devido à surpresa do momento, saí muito mais lesto daquele estabelecimento do que quando entrei. Fui para o meu quarto que, entretanto, tinha sido distribuído. O dia acabava repleto de emoções.

 
A Senhora que nunca nos abandonou

Três dias depois, na madrugada do dia 28 de Junho, cerca das três da manhã, estavam em pleno os últimos preparativos para o começo da Operação. Dada a ordem de partida, a coluna deixou Teixeira Pinto em direção ao nosso último acampamento na Mata dos Madeiros. Ainda era noite quando lá chegámos.

Como previamente ficara estabelecido, os 1.° e 2.° Grupos de Combate sob o comando dos Alferes Ferraz e Neves, respetivamente, seguiriam a linha da esquerda. Os 3.° e 4.° Grupos de combate sob o comando dos Alferes Almeida e Magalhães seguiriam a linha da direita. O nosso Cap. Alves iria integrado no 4.° Grupo.

O Alferes Magalhães, comandante do meu grupo, aproximou-se de mim e entregou-me o Mapa da Operação e a bússola. Era um gesto normal. Acontecera tantas vezes antes. Já não foi normal quando o Cap. Alves nos informou que ia integrado na minha Secção. Tentámos, eu e o Alferes Magalhães, dissuadi-lo, sem o conseguirmos. Mais uma vez admirei a sua coragem e compreensão ao permitir-me dar-lhe uma posição na Secção, que também me obrigou a mudar o dispositivo que normalmente usava. Não tanto por ele, mas por causa do homem das Transmissões, que queria suficientemente perto de mim, sem ficar muito longe do Capitão e não perder potencial de reação. A nossa missão, reconhecer o terreno, encontrar e destruir o inimigo, independentemente dos imponderáveis, só poderia ser bem sucedida à custa de muita disciplina, sacrifício, alguma inteligência e, acima de tudo, muita proteção divina. O inimigo, os guerrilheiros do PAIGC, estava à nossa espera algures na Mata do Balenguerez. Para isso se espalhou a notícia desta operação com três dias de antecedência.

Com os primeiros alvores do dia, partimos rumo ao nosso destino! Para trás ficava o acampamento e a Mata dos Madeiros. Atravessámos a estrada antiga que ligava o Bachile a Cacheu e entramos naquele mundo desconhecido, a Mata do Balenguerez. Esta não tinha sofrido queimadas durante os últimos tempos e não recebera visita de tropas há alguns meses.

Apanhada que foi a ponta do trilho marcado no mapa, de imediato mandei obliquar à direita, saindo por completo daquele. Assim fomos progredindo em ziguezague à ilharga do trilho. Apercebi-me que o avanço seria muito penoso e mais lento do que o calculado. O arvoredo e palmeiral muito denso e baixo impediam o avanço rápido, obrigando-nos, muitas vezes, quase a rastejar em alguns sítios. Mas o trilho, prometera a mim mesmo, não seria acariciado pelas solas das nossas botas. Com cerca de três horas de progressão, deparámos com a primeira grande clareira. Apenas capim de altura média Por ventura um antigo terreno de cultivo. Dividia-se pelos dois lados do trilho. Um campo de morte com cerca de oitenta metros, local ideal para uma emboscada.

José Câmara bem protegido pelo soldado Alberto Teixeira Dutra

Estávamos afastados do trilho. Numa breve análise visual ao terreno à nossa volta e pelo mapa, pressenti que a melhor solução seria mesmo atravessar a clareira, até porque a partir daí iríamos encontrar situações muito semelhantes. Mandei avançar. O meu homem de ponta, carregando a HK21, olhou para mim. O seu olhar pareceu-me angustiado. Aquele não era o local para hesitações, coloquei-me ao seu lado, atravessámos a clareira rapidamente. Os outros seguiram-nos.

Do outro lado da clareira, embrenhados no arvoredo, fomos ao encontro do trilho. Não me enganara. Ali tinha estado gente e as suas intenções não seriam certamente dar-nos as boas vindas com foguetes, como era costume fazermos aos forasteiros ilustres que chegavam às nossas terrinhas açorianas. A prová-lo estava um pequeno jarro de barro partido, a água empapando o trilho, alguns rastos de pegadas de calçado.

Foi dada ordem para ninguém pisar o trilho ou tocar nos estilhaços.

Rapidamente, afastámo-nos daquele local e do trilho. Minutos depois, uma avioneta transportando o comandante do CAOP 1, Sr. Ten. Cor. Paraquedista Durão, fazia algumas passagens sobre o local onde tínhamos estado antes. De lá de cima não nos via, bom sinal. Perante a insistência de contacto, demos-lhe a nossa indicação.

Segundos depois passava à nossa perpendicular.

Na sua passagem indicou-nos que estávamos a afastar-nos do nosso objetivo. Foi informado do nosso contacto visual com o jarro, sinal irrefutável da presença do inimigo e que não era aconselhável a nossa progressão nas imediações do trilho. Aos poucos, o barulho dos motores da avioneta foi desaparecendo.

Cerca das onze horas da manhã estávamos nós a atingir o nosso objetivo. Mais uma vez a avioneta a sobrevoar-nos. Desta vez com uma boa notícia, regressar ao acampamento. Cansados, algo esfarrapados, famintos, mas não podíamos descurar a disciplina e os cuidados no nosso regresso. A nossa missão ainda não tinha terminado.

Só começamos a sentir algum alívio quando finalmente atravessámos a antiga estrada e voltámos a pisar a Mata dos Madeiros. Aqui tínhamos feito grandes amigos ao longo dos dias, das semanas, dos meses. Conhecíamos as formigas pelos seus nomes próprios e aprendemos a cantar canções de amor com os pombos verdes. Os mosquitos, nos seus voos picantes, lembravam-nos constantemente do zumbido dos aviões que vindo das Américas passavam pelas nossas terrinhas açorianas. Os tecelões, lindos que eram, davam-se ao luxo de gozarem connosco, chamando-se a si próprios canários de peito amarelo, avezinhas que um dia se enamoraram dos rochedos plantados entre a Europa e as Américas e por ali ficaram. Tudo isso ficava ali, cada passo nosso uma recordação.

No acampamento desmanchavam-se as antenas de transmissões, o morteiro 107 e carregavam-se as viaturas que já estavam à nossa espera. A tarde avançava e havia que chegar a Teixeira Pinto antes do anoitecer.

Finalmente foi dada a ordem de partida e um último olhar ao acampamento que tinha sido a nossa casa durante oitenta e três dias. Pelo caminho passámos junto ao local onde o nosso Manuel Veríssimo Oliveira sofreu o acidente que o vitimou. Muitos braços estendidos naquela direção. Nas circunstâncias era o único gesto possível de homenagem ao nosso amigo e companheiro de luta.

Outros continuariam a estrada que deixamos aberta até ao cruzamento com a estrada antiga

Para trás ficava a Mata dos Madeiros e uma estrada que outros continuariam e concluiriam. Ali, a história foi escrita no barro vermelho com o sangue de muitos combatentes e o suor de muitos mais. De nativos também. Para os guineenses, em paz, ficou uma excelente obra alcatroada para que um dia pudessem ter uma vida melhor. Finalmente chegámos a Teixeira Pinto. Em paz. Missão cumprida. Dirigimo-nos aos nossos quartos. Ali, uma desagradável surpresa nos esperava.

O Fur Mil André Fernandes, com as lágrimas nos olhos e o seu amigo entre mãos, balbuciou:
- O Piriquito morreu!

 A avezinha, que ficara fechada no quarto, sucumbira ao calor, sede e saudade. Também ela fora uma vítima de uma guerra que cada um sentia à sua maneira. Naquele momento o André era o espelho de um desses sentimentos. Para ele, depois de uma operação com aquele perigo e envergadura, ainda houve tempo para chorar a morte de um amigo especial, certo que diferente dos demais, mas amigo da mesma maneira.

No dia seguinte, 29 de Junho de 1971, a CCaç3327 seguiria para os Destacamentos de Teixeira Pinto.

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Notas soltas:

Nos 72 dias que a CCaç 3327 esteve toda na Mata dos Madeiros, diariamente saíam dois grupos que permaneciam fora do acampamento por 24 horas a fazer a segurança afastada da estrada e do acampamento.
Dos outros dois grupos um fazia a picagem do traçado da estrada e a segurança próxima às máquinas e capinadores durante 12 horas diárias.
O Outro mantinha a segurança do destacamento e realizava as escoltas ao Bachile para abastecimento de pão, água e correio. A segurança imediata noturna do acampamento era garantida por estes dois grupos. Cada posto de sentinela era reforçado por 3 elementos.
Cada Secção, na ausência de imprevistos, tinha um descanso de 12 horas a cada 13 dias.
Acções: 72
Emboscadas: 72
Escoltas a Teixeira Pinto e Bissau: 24
Operações a nível de Companhia: 1 (Sempre Alerta)
Mortos: Manuel Veríssimo de Oliveira, Sold At. Inf. NM 09624870, natural da Ilha de São Miguel.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9537: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (30): Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9537: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (30): Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 27 de Fevereiro de 2012:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Não tenho estado afastado do nosso blogue e muito menos dos amigos. Apenas menos activo.

Junto mais uma pequena história da minha passagem pela Mata dos Madeiros. Como sempre fica ao teu dispor a sua (ou não) publicação. Como as anteriores é uma história simples. Certamente que trará à memória de alguns dos nossos camaradas situações em tudo muito semelhantes.

Para ti e para os nossos camaradas um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (30)

Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

Os dias que se seguiram à nossa chegada a Teixeira Pinto foram aproveitados por nós, cada um à sua maneira, para aliviar a alta pressão psicológica a que tínhamos estado sujeitos, nos últimos meses, na Mata dos Madeiros. O descanso, as incursões pela vila e os seus locais de diversão fizeram parte desse alívio bem merecido.

Como gostava de trabalhar na secretaria da Companhia, era ali que passava muito do meu tempo. Também tive a oportunidade de assistir a uma missa dominical e a um casamento entre gente da mesma etnia Manjaca. Destas coisas fiz referência muito superficial numa carta que então escrevi à minha madrinha de guerra.

Hoje, a esta distância no tempo, o Coro da Capela formado por jovens em idade escolar, constitui a imagem que ainda retenho da missa que me foi possível atender, no dia 27 de Junho de 1971, na Vila de Teixeira Pinto. Do casamento, lembro-me que foi feito durante a noite. A noiva, natural da zona do Pelundo e acompanhada de muitos familiares, veio de urbana buscar o noivo que morava em Teixeira Pinto. No regresso juntou-se o batuque. Na verdade, é muito pouco o que recordo e sinto pena de não ter escrito mais sobre esse casamento.

Outro acontecimento de extrema relevância para nós foi a saída de algumas tropas de Teixeira Pinto, que nos permitiu deixar as tendas de campanha e ocupar as instalações muito razoáveis do quartel de Teixeira Pinto.
Foi nesse ambiente, não constituindo qualquer surpresa para nós, que fomos informados de que a nossa Zona de Intervenção continuaria a ser a Mata dos Madeiros. O facto dos nossos camaradas das Transmissões continuarem ali instalados deixava antever isso mesmo. A missão é que seria diferente, bem mais perigosa.
Até ali a protecção do acampamento era feita à distância por dois grupos de combate da CCaç 3327 e ainda de uma outra força de intervenção do CAOP1. A defesa imediata do acampamento era também assegurada pela nossa Companhia. Com a nova estratégia as forças de defesa afastada foram eliminadas e passámos apenas à defesa imediata do acampamento, cujas condições de defesa eram exíguas. As valas eram extremamente abertas e os obuses do Bachile não tinham o alcance suficiente para nos ajudar em caso de flagelação. Contávamos com o nosso Morteiro 107.

Em contrapartida, o moral dos nossos soldados era bastante alto, pois sabiam que o dia 25 de Junho seria o do adeus definitivo da CCaç 3327 à Mata dos Madeiros. Pelo menos assim pensávamos.

No dia 22 de Junho de 1971 escrevi assim à minha madrinha de guerra:

“O tempo que disponho (para escrever) é bastante escasso. Durante o dia estive a trabalhar na Secretaria da Companhia e agora a noite já vai adiantada. Amanhã, pelas 6:30 horas da manhã, vou para o mato e tenho que descansar. Irei passar 24 horas no acampamento onde estivemos. Contudo, deve ser a última vez.” 

Certamente que me referia ao meu grupo de combate.

Aspecto da Mata dos Madeiros 
Foto de José Câmara

No dia 23 de Junho de 1971, estávamos nós no acampamento quando vimos passar alguns bombardeiros em direcção a Ponta Costa, área do Cacheu. Foram lá deixar naquela zona a sua carga mortífera. As explosões eram enormes. O fumo e o pó subiam nos ares, a terra estremecia debaixo dos nossos pés e os corações tremiam perante tamanha bestialidade. Pessoalmente, pela primeira vez assistia a uma acção directa da nossa Força Aérea.

Os bombardeamentos, a meia dúzia de quilómetros do nosso acampamento, pareceram-nos normal naquela zona. Foram as repetições durante o dia que nos chamaram a atenção. Era evidente que aquilo não era mais que o pronúncio de uma grande operação militar e a CCaç 3327 iria estar de, algum modo, envolvida nela.

Estava explicada a razão do nosso posto de transmissões manter-se em actividade no acampamento, enquanto o Morteiro 107 descansava preguiçosamente no seu espaldar. Aos poucos também aprendíamos a ler os sinais dos homens e da guerra. Da experiência se fazia a velhice.

Na manhã do dia 24 de Junho, quando fomos substituídos no acampamento e regressámos a Teixeira Pinto, tínhamos a certeza de que voltaríamos a ouvir as vozes e os ruídos que aprendemos a distinguir na Mata dos Madeiros.

Só faltava mesmo saber como, onde e quando.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 23 de Novembro de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto um pequeno trabalho para fazeres dele o que entenderes melhor.

A história, a sua crueldade intrínseca, foi vivida por muitos de nós. Naquelas alturas os segundos contavam e eram dramáticos. Jubilávamos quando o nosso esforço e sacrifício eram recompensados. Chorávamos quando víamos o destino cruel ser mais forte que a nossa vontade. Do que não podemos ter dúvidas é que num caso ou no outro sempre, mas sempre, cumpríamos com o nosso dever humano e militar.

Amanhã, dia 24 de Novembro, é dia de Acção de Graças nos EUA. Ao longo dos anos habituei-me a compreender, a respeitar e a participar nesta grande festa da Família Americana. Aqui fica o meu convite para que tu e todos os nossos amigos da Tabanca, celebrem comigo o dia do Thanksgiving.

Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (29)

Quando o destino cruel desabafava a sua ira

Ao fim da manhã do dia 17 de Junho de 1971, a coluna da CCaç 3327 deixava para trás o seu último acampamento na Mata dos Madeiros e um grupo de elementos das Transmissões agora protegidos por outras forças de intervenção. Pelo caminho fez uma breve paragem no Bachile para pegar os militares e nos haveres da secretaria, tendo seguido em direcção à Ponte Alferes Nunes. Esta que, recentemente, sofrera algumas reparações tinha uma estrutura forte, mas o seu tabuleiro, por ser estreito, requeria alguns cuidados, sobretudo com as viaturas mais pesadas. Daí a perda natural de algum tempo na sua travessia.
Mas que importava isso, se depois da ponte entrávamos no paraíso comparado com o inferno que tinha sido a nossa vivência nos últimos meses?

A meia tarde, a coluna entrava na avenida principal de Teixeira Pinto e, finalmente, cruzava a Porta de Armas do quartel sediado naquela vila. Ali receberíamos a primeira grande desilusão do dia. Pela indisponibilidade de instalações, foi-nos ordenado que montássemos o nosso bivaque na parada grande que ficava em frente aos edifícios de Comando e Serviços. O solo guineense continuaria a ser o lençol onde se deitariam os nossos corpos ansiosos por um descanso condigno.

Estávamos a findar a nossa tarefa quando nos apercebemos que ali fazíamos parte de uma outra guerra. Um clarim soou o toque de Ordem. A verdade é que os nossos corpos, depois de cerca de trinta e seis horas de actividade, precisavam mesmo de descanso e os nossos estômagos de serem reconfortados com aquela ração de combate que esperava por nós.

Como quase sempre fazíamos, eu e os militares da minha Secção sentámo-nos juntos para darmos início ao nosso repasto. Para além do ambiente social normal dessas ocasiões, aproveitávamos para trocarmos entre nós as conservas que cada um mais gostava. Já tínhamos aberto algumas latas quando o clarim voltou a soar. Desta vez, o som era mais angustiante, o som do formar piquete.

Era certo que o 4.° GComb, o meu grupo, estava de serviço mas, acabados de chegar àquele quartel, aquele toque não devia ter nada a ver connosco. Como estava enganado!

Alguém gritou:
- Furriel Câmara mande formar o grupo de combate! - A ordem tanto pode ter vindo do Comandante do Pelotão, o Alf. Mil. Francisco Magalhães ou directamente do Comandante da Companhia. Para o caso pouco importava. Tudo era feito com disciplina compreensível, sem atropelos.

Os soldados que me acompanhavam ainda tentaram um pequeno protesto. Tinham alguma razão, estavam exaustos e eu também.
Apenas disse:
- Vamos! - A ordem simples não deixava margem para dúvidas. A verdade é que aqueles rapazes, habituados à minha maneira de ser, devem ter percebido na minha voz que eu não agoirava nada de bom e assim era. Naquele momento, o meu coração estava na Mata dos Madeiros e nos camaradas das Transmissões que deixáramos lá de manhã. Felizmente que essa suspeita não se materializou, mas a verdade é que a noite que se aproximava seria longa e muito dolorosa.

Acampamento na Mata dos Madeiros. O Posto de Transmissões estava na tenda montada à esquerda.

Com o Pelotão formado e pronto para receber ordens, fomos informados que houvera um acidente grave na CCaç 2637/BII18, adida ao BCaç 2905, precisamente aquela que iríamos substituir nos Destacamentos de Teixeira Pinto. Um soldado caíra de uma viatura e sofrera um traumatismo craniano grave. Hoje, a esta distância no tempo, não me recordo em qual dos Destacamentos.

Na pista de Teixeira Pinto uma avioneta aguardava a chegada do sinistrado para a evacuação, mas devido ao adiantado da hora poderia ter que levantar voo e regressar a Bissau antes da chegada daquele. Infelizmente foi o que aconteceu e, como alternativa, fizemos uma coluna a Bissau para evacuar o sinistrado.

Honra seja feita a muitos soldados e graduados da minha Companhia que se voluntariaram para fazerem parte da coluna de evacuação que partiu para João Landim. Nesse trajecto foram vistas patrulhas de segurança nocturnas saídas do Pelundo, Có e Bula. A todo aquele aparato de forças bem poderia chamar-se, com toda a propriedade, um aparato de solidariedade humana e militar, só possíveis num exército bem formado, capaz e disciplinado.

Em João Landim, fizeram a travessia do rio Mansoa o sinistrado e uma força suficiente para a sua segurança até ao Hospital Militar. O resto da coluna aguardou o regresso daquela força.

Cerca das duas da manhã, já no dia 18 de Junho de 1971, os militares e as viaturas que tinham ido até ao Hospital regressaram e com eles a notícia que nenhum de nós gostava de receber. O Soldado sinistrado Agostinho Lopes Miranda, natural da Ribeira Seca, Ilha de São Miguel, sucumbira aos ferimentos recebidos no acidente.

Cabisbaixos e pesarosos regressámos a Teixeira Pinto. Os céus, em solidariedade com a nossa tristeza, juntaram as suas fortes e grossas lágrimas às nossas. Tínhamos a consciência do dever cumprido, infelizmente, atraiçoados por uma força muito mais forte que a nossa vontade.

Chegados ao quartel completamente encharcados, exaustos e abatidos pelo drama a que acabáramos de assistir, procurámos refúgio nas nossas tendas inundadas pelas chuvas que caíam insistentemente.

O despontar dos alvores da madrugada não conseguiu trazer luz à escuridão que cobria os nossos jovens corações. Para nós a noite tinha sido muito longa.

No meio do oceano Atlântico, quem sabe se no mundo da emigração, para uma família ficava o vazio deixado pela ausência eterna do seu soldado. Que partira nas vésperas do seu regresso a casa.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9059: Memória dos lugares (163): Mampatá saúda Mampatá (António Carvalho / José Câmara / José Eduardo Alves / Mário Pinto)

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8964: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (28): Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

domingo, 30 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8964: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (28): Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 30 de Outubro de 2011:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena e simples história das minhas andanças pela Mata dos Madeiros. Os segredos militares, quando bem usados, eram muitas vezes as bases dos sucessos e da disciplina. O Cap Mil Rogério Rebocho Alves usava-os com mestria ponderada.

Para ti e para os nossos camaradas vai um abraço imenso do
José Câmara


Memórias e histórias minhas (28)

Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

No regresso de Bissau a coluna da CCaç 3327 foi pernoitar ao Bachile, sede da CCaç 16. Ali, talvez por falta de instalações ou pela falta de lembrança de quem comandava, não éramos acomodados ou recebíamos instruções de defesa em caso de ataque. Nas poucas noites que ali pernoitei, sempre estranhei esse procedimento.

Independentemente dos motivos que me faziam sentir parte de uma outra guerra, chegada a hora do recolher, acomodei-me, juntamente com os meus camaradas, no alpendre de um dos edifícios ali plantados. A minha amante, como era seu costume, recolheu-se entre as minhas pernas, encostou o seu corpo ao meu e apoiou a sua cabeça no meu ombro. No nosso primeiro contacto surgira um sentimento profundo, aquilo a que bem poderíamos chamar amor à primeira vista. Os adornos, amarrados à minha cintura, pareciam sorrir daquele inocente amor, prontos para ajudar em qualquer pezinho de dança que acontecesse nas imediações.

José Câmara com a sua amante, par inseparável, algures na Mata dos Madeiros

A noite avizinhava-se longa, cheia de visitas indesejáveis. Estas, talvez deliciadas com o meu cheirinho natural e pela falta daquele perfume pestilento, com o qual normalmente me besuntava, eram de tal maneira agressivas que me faziam perceber que não estava necessariamente no paraíso. Mesmo assim sonhei, de olhos bem abertos, com chuvas torrenciais que me levariam a Teixeira Pinto e aos seus destacamentos. Chuvas que só tinham aparecido uma vez e que tardavam em reaparecer.

Passei em revista a minha ida a Bissau. Naquela cidade as pessoas, dentro do possível, tentavam passar pela vida. Eu, ali sentado contra uma parede, só podia fazer pela vida. Não podia aspirar a mais.

Pela manhã, a nossa coluna juntou-se à escolta matinal que viera do acampamento e rumámos à Mata dos Madeiros. Ali ainda não havia notícias quanto à nossa saída daquele lugar. Tínhamos entrado em compasso de espera.

Na noite de 10 para 11 de Junho fomos surpreendidos com outro temporal. Tal como acontecera no primeiro, fiquei extasiado com aquele espectáculo da natureza que tinha tanto de belo como de pavoroso. Os relâmpagos e os trovões deflagravam por todos os lados, o firmamento transformava-se numa autêntica bola de fogo e a chuva caía como um caudal. Esses elementos naturais chegaram repentinamente e com a mesma ligeireza se foram, dando lugar à lua e às estrelas.

Sempre confessei à minha madrinha de guerra o meu fascínio por esses dons da natureza. Desta vez não foi diferente. Mas estas chuvas trouxeram outra novidade, em tudo muito semelhante às primeiras, as que levaram os capinadores a regressar aos seus lares com as primeiras chuvas e às sementeiras do arroz.
Agora, com este novo temporal, foi a vez dos trabalhadores das máquinas recusarem continuar a trabalhar na estrada.
Sobre este assunto escrevi o seguinte:

Mata dos Madeiros, 11 de Junho de 1971
“Há algumas coisas novas por aqui, entre elas a proximidade da nossa saída deste sítio. A minha afirmação é bastante contingente pois que, formalmente, nada se sabe. Falar assim é proveniente da recusa dos trabalhadores das máquinas que estão a trabalhar na estrada, em continuarem os trabalhos.”

Essa recusa, melhor a saída destes últimos trabalhadores da estrada, deixou-nos apreensivos. Sabíamos que sem civis ficaríamos mais vulneráveis. Compreendíamos isso, mas nada se poderia fazer. A nossa ordem de marcha tardava a chegar, ou se existia e alguém sabia dela, neste caso o nosso comandante de companhia, mantinha muito bem o segredo.

Escrever à minha madrinha de guerra não era um passatempo, mas uma necessidade

Por incrível que pareça, na correspondência seguinte, não voltei a tocar na saída da CCaç 3327, diria iminente, da Mata dos Madeiros.

No dia 15 de Junho de 1971, escrevi à minha madrinha de guerra aquele que foi, sem saber que o era, o último aerograma que escreveria no acampamento da Mata dos Madeiros. Sobre a situação militar foi isto que lhe escrevi:

“Cá vai mais este bate estradas ao teu encontro para uma pequena conversa, dando assim algumas notícias minhas. Estas são poucas e sem interesse, daí o serem breves. Por aqui tudo continua bem, felizmente.
Mais uma saída para o mato, sem problemas na ida e no regresso. Isso, por si só, é motivo suficiente de regozijo; aliás, nem poderia ser de outra maneira.”

No dia 16 de Junho de 1971, dois grupos de combate, sendo um deles o meu, saíram normalmente para mais uma acção de patrulha e emboscada com a duração de 24 horas. Como todas as outras que fizéramos antes, esta também correu bem. A surpresa estava reservada para o nosso regresso, na manhã do dia 17.
Ao entrarmos no acampamento, como vinha na frente com a minha secção, reparei de imediato que algo de anormal se passava no acampamento, sobretudo, não vi os grupos preparados para nos substituir no mato. Apesar das minhas observações quase nem tive tempo para perguntar o que se passava.

Que teria sido de mim, de nós, sem a sua protecção

As ordens breves e rápidas voavam por todos os lados. Passar de imediato pela cozinha de campanha, beber o café, levantar nova ração de combate, preparar as malas pessoais, carregá-las nas viaturas, acima de tudo não destruir nada no acampamento. Tudo cumprido sem confusões, sem rasgos de alegria, disciplinadamente. Nessa altura, apenas sabíamos que tínhamos cumprido uma missão e que iríamos embalar noutra.

Ao fim da manhã, a coluna da CCaç 3327 punha-se em marcha a caminho de Teixeira Pinto. Para trás ficava a Mata dos Madeiros, um acampamento intacto, as antenas de rádio montadas e alguns dos nossos camaradas das Transmissões, entre eles o Fur Mil João Nunes Correia, agora protegidos apenas e só por uma das outras forças de intervenção.

Aquilo que deveria constituir um motivo de alegria, a nossa saída daquele inferno, acabava por ser um motivo de grande preocupação. Tudo levava a crer que a nossa missão na Mata dos Madeiros ainda não tinha terminado.
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Nota do Editor

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8597: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (27): Algumas fotos de Tite

domingo, 24 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8597: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (27): Algumas fotos de Tite

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 23 de Julho de 2011:

Caro amigo Carlos Vinhal,
O poste P8590 fez-me ir ao álbum das recordações. Nele encontrei estas preciosidades que trarão emoções fortes aos que por ali passaram.

Estas fotos foram tiradas em Dezembro de 1972 quando, já com a comissão concluída, por ali passei.

A estes monumentos falta o dedicado ao Cap João Bacar Jaló. Infelizmente o slide não tem condições para ser revelado.

Um abraço amigo para ti e para todos os nossos camaradas.
José Câmara


Memórias e histórias minhas (27)

Fotos de Tite

Bolanhas de Tite a caminho de Enchudé

Tite > Bandeira nacional hasteada no interior do quartel. Também de notar o monumento na frente do edifício do Comando

Tite > O monumento referenciado no poste P8590

Tite > A esta distância no tempo não tenho a certeza de este ser o outro lado do mesmo monumento [aos mortos do BCAÇ 1860]

Tite > Monumento de requintada beleza e bom gosto
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8564: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (26): A minha primeira vez

domingo, 17 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8564: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (26): A minha primeira vez

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 17 de Julho de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história sobre as minhas andanças pela Guiné. Tenho a certeza que a sua leitura despertará reacções e emoções desencontradas. Isso é precisamente o meu objectivo ao abrir um livro que é por demais íntimo.
Deste episódio e do seu desenlace último nunca me arrependi. Preparou-me para outras oportunidades bem mais difíceis que esta. Um dia, se possível, lá chegarei.
Ainda hoje, quando lembro deste desencontro sexual da minha vida na Guiné, dá para um sorriso. Afinal já sou um sexa e posso dar-me ao luxo deste tipo de indulgência.

Um abraço muito amigo para ti e para os camaradas que tiram o seu tempo para lerem estas pequenas coisinhas.
José Câmara


Memórias e histórias minhas (26)

A minha primeira vez

Nos anos sessenta, a juventude açoriana, cercada por princípios de ordem moral e religiosa e ainda pela pequenez do meio onde toda a gente sabia tudo, tinha que ter muito resguardo sexual. Nas ilhas, raparigas namoradeiras ficavam quase sempre solteiras e os rapazes sujeitavam-se a nunca serem pais.
Era na tropa que muitos mancebos, saídos do seu ambiente habitual, tinham a sua primeira experiência sexual com elemento do sexo oposto. Para os que o conseguiam era o esvaziar de um sonho tantas vezes recalcado ao longo das suas vidas ainda jovens.

Como açoriano prezado que era dos meus princípios sociais e religiosos também passei por essa sede recalcada durante os anos da minha juventude. Já na tropa nem Tavira, Funchal ou Angra do Heroísmo me proporcionaram as oportunidades de saciar a sede sexual. Confesso que também não as procurei.

Foi na Guiné, mais propriamente em Teixeira Pinto, que surgiu a grande oportunidade. E que oportunidade!
Andava eu pela Mata dos Madeiros quando tive que me deslocar a Bissau para ser vacinado contra a febre-amarela e marcar a minha passagem para ir de férias aos Açores.

Por motivos alheios à minha vontade tive que desistir desta passagem. No ano de 1971 acabei por não gozar as férias a que tinha direito.

A escolta a Bissau para além de ser muito perigosa, sobretudo o troço entre os quartéis do Pelundo e Bula, era extremamente cansativa. Tínhamos que pernoitar em Teixeira Pinto encostados a uma parede qualquer ou no assento do unimog, um luxo para quem estava habituado a dormir na terra todos os dias. No regresso conforme a hora da chegada a Teixeira Pinto podíamos pernoitar ali, mas quase sempre íamos fazê-lo ao quartel do Bachile. Este ficava muito mais perto do acampamento. Isso facilitava a vida daqueles que tinham que avançar para o mato logo à chegada.

Sobre a deslocação a Bissau escrevi um aerograma à minha madrinha de guerra:

“Mata dos Madeiros, 7 de Junho de 1971
Este aerograma será para umas breves notícias. Hoje de manhã vim do mato e daqui a pouco vou para Bissau. Devo regressar depois de amanhã. Vou ao hospital civil levar a vacina contra a febre-amarela; preciso de a ter para quando for de licença. Também irei à Agência de Viagens.”

Chegados que fomos a Teixeira Pinto, enquanto aguardávamos pela hora do recolher para um merecido descanso, eu e o Fur Mil APes Manuel Lopes Daniel fomos dar uma volta pela avenida principal desta vila. Foi durante esse passeio que surgiu a ideia de irmos à procura de mulher que quisesse partir catota.

Se bem pensamos, só haveria que saber onde. Não faltaria quem nos informasse o que de melhor podíamos ter por aquelas paragens.

Beldade manjaca junto a um poilão (Edição da Confeitaria Império - Bissau)

Um dos nossos informadores apontou-nos uma casa que ficava para além de um café muito frequentado pela tropa, que ficava ao fundo da avenida e no enfiamento para Bassarel. Segundo a informação as frutas eram um pouco verdes, lindas, doces. Rematou que eram de gritos, apitos e de se chorar por mais.

Estava lançado o ambiente que nós, quais bezerros cheios de testosterona, desejávamos e precisávamos.

Tratava-se de duas irmãs jovens segundo a nossa informação. Para azar meu apenas estava uma e o Daniel tinha-se adiantado à porta. Desapareceu por ela, enquanto me preparei para aguardar.

Raios! O Daniel já de volta assim como quem entra por uma porta e sai pela outra. Nem à mão, sem menosprezo algum para esta anciã ferramenta, se conseguiria ser tão rápido. Logo compreenderia o porquê de tamanha façanha.

Ao entrar à porta deparei com uma mulher, a mãe da jovem, a cobrar o capim. Não me lembro quantos pés do dito me pediu. Na escuridão da casa era possível ver-se a um canto uma porca a amamentar bacorinhos; crianças dormiam profundamente numa cama e debaixo desta estavam cachorrinhos às turras com as mamas da mãe cadela.

A jovem, a grande razão de eu estar ali, disse-me que tinha apenas 16 anos; manjaca, negra luzidia, linda, convidativa, disposta ou obrigada à prostituição, num ambiente impressionante.

Rapariga Manjaca lavando roupa (Bassarel)

O peito encheu de ar, latejante o coração falou mais alto.

Meu Deus, eu ainda tinha princípios morais que nada conseguira destruir até então. Bem presentes estavam os conselhos maternos de afectividade e conduta social: nunca esquecer que tinha irmãs, não fazer pouco das filhas de ninguém, que os homens usavam calças por alguma razão.

Foi então que me apercebi que nada do que estava ali a viver tinha a ver com os meus sonhos tantas vezes acalentados. Voltei as costas. Ainda não seria desta vez que me iria prostituir.

Com o Daniel segui em direcção ao quartel. Cada um de nós embrenhado no pensamento da experiência acabada de viver.

No dia seguinte, muito cedo pela manhã, seguimos para Bissau. Nesta cidade fui tratar dos assuntos que ali me levaram. Para além disso, eu tive a oportunidade de visitar o meu grande amigo do Liceu Nacional da Horta, o Alf Mil Art. Eduardo Manuel da Silva Camacho, acabado de chegar à Guiné com a esposa Filomena. Como não podia deixar de ser, este casal, fresquinho da boda, andava, disseram-me eles, apanhadinho pelo clima.

Pudera, eu também andava, só que por uma razão muito diferente: a falta dele. Do clima pois claro!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8479: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (25): Abençoada chuva que tanto tardaste