terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24085: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (37): Sentimentos que a farda militar encobre


1. Em mensagem de 18 de Fevereiro de 2023, o nosso camarada José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos mais uma das suas Histórias e Memórias, desta vez relacionada com as trágicas e traiçoeiras minas.


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

37 - Sentimentos que a farda militar encobre

Nos últimos tempos, por razões que para aqui não interessam, tenho estado afastado da escrita, mas continuo atento. O tema “minas” tem-me chamado a atenção não só pelo desaparecimento prematuro de vidas e, como não podia deixar de ser, pela destruição da qualidade de outras, que se prolongaram nos tempos.

A CCaç 3327/BII17, companhia que integrei até ser transferido para o Pel Caç Nat 56, também teve o seu malfadado encontro com aqueles engenhos na zona de Bissássema. Vou deixar que a História da Unidade fale por si na descrição dos acontecimentos e, mais importante que tudo, integrar os sentimentos que então assolaram o Fur Mil Luís José Vargem Pinto, comandante da 3.ª Seccão, do 4.° GComb, do qual eu também fiz parte. Acrescento aqui que na altura deste acontecimento eu já tinha sido transferido para o Pel Caç Nat 56.

Na História da Unidade (CCaç 3327/BII17) – CAP II, FASC XI – PAG 25 é possível ler-se uma descrição bem elucidativa do que aconteceu naquele dia 16FEV72. Os elementos feridos não faziam parte da CCaç 3327. A sua presença no local deveu-se à proteção que fizeram ao comandante do Batalhão de Tite que entendeu deslocar-se ao local do rebentamento e, segundo testemunhos de militares da 3327, por pouco não pisou uma das minas.

Este foi o estado em que ficou o pontão destruído pelo PAIGC. Sem dúvida que foi uma grande carga explosiva. Foi à volta destes escombros que foram implantadas as minas que o Furriel Pinto levantou.

Em 2011, aquando do convívio da CCaç 3327, realizado no BII17, na ilha Terceira, o Fur Mil Pinto presenteou-me com uma pequena descrição daquilo que tinha sido a sua acção no levantamento das minas e os sentimentos que então o assolaram para tomar tal decisão. Importa realçar que toda a sua acção envolve à volta dos mais altos princípios humanos e desprezo total por aquilo que lhe pudesse acontecer.

Pela pena do FurrielMil Pinto:
“...Quando levantei as minas não foi pensando no dinheiro, nem sequer sabia que pagavam 1000 escudos cada mina levantada. Em primeiro lugar pensei que não podia deixá-las no terreno, porque alguma noite podia ser necessário passar por lá e pisar alguma, aí, adeus ó perna.
Em segundo lugar pensei na população, se ficassem no trilho quando alguém por lá passasse iam acioná-las e aí seria o rebentamento com perdas irreparáveis.
Rebentá-las no sítio não era possível, o inimigo sabia à distância a nossa posição.
Portanto decidi levantá-las e levá-las para o quartel.
Quero agradecer ao nosso comandante a confiança que depositou em mim como graduado e aos homens por mim comandados para uma missão tão difícil.”

Convívio no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira, Açores, ano de 2011. Eu (à esquerda) com o Fur Mil Pinto.

Um abraço transatlântico
José Câmara

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22056: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (36): Um levantamento de rancho servido com uma bofetada

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, ao Zé Câmara e ao Luís José Vargem Pinto, por mais testemunho respeitante aos engenhos exlosivos que nos deixaram marcas no corpo e na alma... Quase toda a gente tem histórias destas para contar...Mas é preciso pô-las no papel!...Para enriquecer o nosso património de memórias... LG

Anónimo disse...

Caro José Camara,
Não posso deixar de "comentar' o testemunho aqui deixado. Para te dizer do meu apreço pelas considerações sobre este assunto e da minha muita admiração pelo Luis Pinto e tantos outros pela coragem que demostraram e pela qual também pagaram muitas vezes bem caro como todos sabemos.

E faço-o também porque quase me sinto na obrigação de o fazer, para mais destacar esta coragem de tantos. É que eu experimentei uma situação em que essa coragem de despoletar minas era precisa e eu não a tive.

No Post 22558 de 20 de setembro 2021 em que descrevi o fatídico dia 6 de Outubro de 1966 em que sofremos duas minas e dois mortos na zona de Mato Cão, eu relatei que durante a busca pelos resto mortais do soldado açoreano Manuel Pacheco foi descoberta uma mina anti-pessoal "que foi destruída no mesmo momento.” Mas não descrevi os detalhes.

Não sei porque cargas d’água eu na altura achei que a mina devia ser desactivada!… era, fui estúpido, mas foi o que aconteceu. Na ausência do furriel Mano, especialista em minas , que tinha sido vítima da primeira mina desse dia , eu dei instruções a um soldado, também supostamente treinado e especialista em minas, para a desactivar. Mas ao ver o soldado, visivelmente a tremer olhando para mim com uma cara de perdido, eu não tive coragem em insistir e decidi fazê-lo eu mesmo. Mandei toda a gente afastar-se, e nem eu sei como, lá me aproximei da mina, com um arame de tropeço bem visível. E aí permaneci o que na altura me pareceu uma eternidade estudando os meios para desligar o fio… . Lembro ainda como se fosse ontem o pavor que de mim se apoderou; e não sei qual me fazia suar mais na altura, o suor escorrendo cara abaixo, se era do calor ou se era o medo. Sei que acabei por dar ouvidos ao senso comum de alguns que de longe me gritavam para deixar a mina em paz e que a explodisse com uma rajada de G3…

E foi com um tiro certeiro da G3 que a mina foi destruída. Por isso eu sei o que é ter coragem—ou a falta dela— nestas situações e por isso estou em condições de "poder falar”. Agora!…

Nem sempre respondo aos teus oportunos comentários-- e de outros-- que merecem ser respondidos , mas isso não quer dizer menos interesse. Sabes como é e compreendes que nem sempre dá para o fazer.

Cumprimentos com um grande abraço para ti e tua esposa também.

João ( e Vilma ).

Anónimo disse...

Luís Graça,
Obrigado pelas tuas palavras. O Furriel Pinto bem as merece.

João Crisóstomo,
O vosso abraço, o teu e da Vilma, chegou bem quentinho. Eu e a Isabel agradecemos e retribuímos.
Se havia alguma coisa que me metia medo era a possibilidade de pisar uma mina ou ver um dos meus homens estropiados por uma. Mais, a minha preparação para as enfrentar tinha sido muito limitada. Não fazia parte da minha especialidade. Por tudo isso, na Mata dos Madeiros, a zona mais difícil em que estive envolvido, evitava pisar os trilhos desnecessariamente. Era a minha melhor defesa contra aquele engenho horroroso. E podia sempre contar com o Furriel Pinto e o comandante de Pelotão, este também com preparação de minas e armadilhas.
Há uma verdade que não podemos esquecer. Em todos os princípios da vida, o serviço militar não nos é alheio, também é preciso coragem para reconhecer as nossas limitações. Correr riscos desnecessários, quando havia outras opções, foi a causa de muitos acidentes, de vidas jovens que se perderam. Tal como o Furriel Pinto equacionastes as tuas opções e tomastes a decisão que te pareceu ser a mais acertada. Fizestes bem. Não houve consequências. Aplaudo-te por isso.
Haja saúde.
José Câmara