sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24093: In Memoriam (472): José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): pequena homenagem póstuma lida ontem, na igreja matriz de Ílhavo (Luís Graça)

O arquiteto José António Paradela (1937-2023), na sua terra natal, Ílhavo, junto ao monumento aos combatentes da Grande Gerra (mortos em França e África). s/d. Cortesia da Câmara Municipal de Ilhavo. Imagem reeditada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023), com a devida vénia...



Capa do livro de Ábio de Lápara pseudónimo literário de José António Paradela 1937-2023, "Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos", ed. autor, s/l, 2007, 77 pp. (CDU: 821.134.3-3, BN, por). Prefácio de Luís Graça.

Zé António, meu querido amigo do peito, “meu mano”:

Já passaste por este momento doloroso, a perda de alguém muito querido, um pai, um irmão, um amigo… Ficamos sem palavras, tolhidos pelo choque da notícia. E depois, à medida que os primeiros minutos e as primeiras horas passam, há um turbilhão de emoções, antes de começarmos a fazer o processo do luto…

Agora somos todos nós, a tua Matilde, o teu Marco, o teu Jorge, a tua família mais próxima e os amigos, os muitos amigos que tu tinhas,  a encarar de frente a brutal realidade da tua perda, da tua morte física…

É devastador perder alguém que muito se ama… A nossa primeira reação é de denegação: não é possível que o meu amigo do peito, o meu “mano”, tenha partido da Terra da Alegria (para usar uma metáfora do poeta Ruy Belo) sem se despedir de nós…

Infelizmente, a morte é o maior absurdo da vida, mesmo que seja o corolário da vida, mesmo que a vida contenha as sementes da morte desde o primeiro segundo em que vemos a luz do dia, ao nascer… Diz o provérbio que a vida tem uma porta, e a morte cem…Dificilmente podemos encenar a tragédia da nossa própria morte: não sabemos quando nem como ela há-de chegar…

No teu caso, chegou aos 85 anos, e a maldita porta foi a doença de evolução prolongada, que ainda hoje temos, todos nós, pudor ou dificuldade em nomear.

 Por certo, meu irmão, que morreste em paz (se é que um homem pode morrer em paz depois de uma prolongada luta contra a doença que acaba sempre, mais tarde ou mais cedo, por levar a melhor: afinal, morremos todos os dias um bocadinho).

Sim, não tenho dúvidas que quiseste despedir-te de todos nós. Recordo o que escreveste no teu Facebook, no passado dia 6, às 21:34, partilhando 10 anos de memórias:

“Tempos felizes que cabem por inteiro na minha passada ambição. Deixaram sabores doces e tanto me basta.”

Uma frase lapidar, no duplo sentido da palavra, algo de sublime, que só podia ser escrito por um grande ser humano como tu. É um belíssimo poema de despedida da vida, mesmo que tão curto para uma vida que foi grande...É um adeus lúcido, corajoso, sereno... (Bolas, e a gente sempre a queixar-se do que não fez, não viu, não viajou, não usufruiu, não amou, não gozou, , não comprou, não escreveu...ou simplesmente desperdiçou a começar pelo tempo.)

Eras um homem afável, amigo do seu amigo, que adoravas o convívio e a tertúlia.  Amavas os teus, amavas a vida, adoravas o mar, o sol, o sal, o sul, a ria de Aveiro, o rio Tejo, as Berlengas,   a fotografia, o desenho, as viagens... Amavas as coisas boas da vida, e partilhavas com os teus amigos as tuas múltiplas afinidades, talentos, seres, saberes e sabores, desde a boa comida (o peixe, os mariscos)   à  literatura, à música e  à arquitetura, a tua profissão.

Nesta hora, profundamente triste, somos nós que viemos despedirmo-nos de ti. A morte tem várias dimensões: física, simbólica, cultural, social… Morreste, fisicamente, na batalha da vida, a tal em que todos nós, seres finitos, acabamos derrotados.

Para aqueles que te amavam (e te continuam a amar), tu continuas presente entre nós. Porque há uma coisa que a morte não nos pode roubar: as memórias (e os afetos) que partilhámos em vida, a par das nossas geografias emocionais… Mais do que a tua imensa obra como arquiteto e urbanista (e essa falará por si e por ti!), somos nós que não te esquecemos, enquanto por cá ainda andarmos, e tivermos saúde, força e ânimo …

Como não podemos esquecer os livros que, já em fase mais tardia da tua vida, começaste a escrever… Cito um ou dois que me dizem muito: o teu primeiro,  de 2007, “Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos”, a que me deste a honra de prefaciar.

E o outro, de 2015, a "Rua Suspensa dos Olhos": Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...

Ilhéu, lhavense, filho da terra e do mar,  evocas e descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das figuras humanas   que  marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Tendo tu sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste,  no entanto, da figura do teu pai a mais bela evocação na tua narrativa ilhavense:

 “Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”…

E da recolha que fizeste dos palimpsestos dos muros da tua Ílhavo, deixa-me por fim citar duas ou três frases lapidares dos anónimos pichadores e grafiteiros:

- A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….

- Nascemos para perder absolutamente tudo, sempre, e nada.

- Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.

Estas três frases, pérolas de uma arqueologia dos seres e dos saberes, dizem muito, afinal, a teu respeito. E não foi por acaso que as anotaste e as resgataste, nesse teu livrinho que é um belíssimo e comovente regresso ao passado, à tua infância, à tua ilha, à tua origem ilhavense… 

É também a redescoberta da tua/nossa insularidade fundamental e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de doença, de morte e de finitude por todos os lados…

Não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista e tu um autor pessimista… No final, o teu “alter ego” (re)descobre    que também faz parte de um vasto arquipélago , e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, quando embarca para a Terra Nova, na “Faina Maior" (a pesca do bacalhau), ou vai para Lisboa estudar e trabalhar, nunca destrói as pontes, nunca corta o cordão dunar e umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, para os amores da tua vida, a tua Matilde, os teus filhos e a tua neta, para os teus amigos, para todos aqueles que te amaram e que tu amaste, serás sempre lembrado não só como o arquiteto, um construtor de cidades, como sobretudo um homem de pontes, de memórias, de afetos: as do amor, da amizade, da beleza, da solidariedade, da liberdade…

Aceita, lá na estrelinha  que te coube em sorte na galáxia celestial dos homens bons e sábios, esta minha pequena homenagem póstuma. Recuso-me a dizer “adeus, até sempre”, porque quero/queremos continuar a poder falar contigo.

Luís Graça + os teus amigos e fãs Alice, Joana e João.

Ílhavo, igreja matriz, 23 de fevereiro de 2023


2. Nota do editor LG:

Desloquei-me ontem, à tarde ao funeral do meu amigo Zé António Paradela, arquiteto, membro da Tabanca Grande, um "ílhavo", orgulhoso da sua terra natal onde, de resto, deixa obra. Tive oportunidade de conhecer pessoalmenet ou reencontrar, nas cerimónias fúnebres, alguns dos seus amigos e  conterrâneos tais como:

(i) Jorge Picado, ex-cap mil art, Guiné 1970/72, nosso camarada, membro da Tabanca Grande; dei-lhe um grande abraço, falámos uns escassos minutos; e justificou-se por que é que, com a falta de tempo e os netos, já não vem tantas vezes ao blogue;

(ii) Tito Peixe Cerqueira,  vice-almirante na reforma, com um comissão em Moçambique como guarda-marinha, em 1970/72, na Corveta João Coutinho, o primeiro ilhavense ou "ílhavo" a atingir o topo da hierarquia da marinha de guerra numa terra de capitães de marinha mercante e da frota pesqueira, vários deles também presentes no velório do Zé António Paradela (alguns conhecia-os de vista, de nossos convívios anuais):

(iii)  João Vizinho, especialista em medicina do trabalho, meu velho amigo das lides da saúde pública:

(iv) o capitão Valdemar Aveiro, um dos últimos "lobos do mar", e grande escritor das memórias da "Faina Maior" (a pesca do bacalhau): tem cerca de uma dezena de publicações (e outras tantas referências no nosso blogue):

(v) o historiador e editor Senos da Fonseca, cunhado do nosso Jorge Picado, uma  verdadeira autoridade sobre Ílhavo, a Costa Nova,  as suas gentes e falares, as embarcações  da ria de Aveiro, a pesca do bacalhau, etc.

De Lisboa, tive o prazer de reencontrar os arquitetos Ricardo Santos Pereira e Luís Gravata Filipe, que trabalharam ou ainda trabalham na PAL - Planeamento e Arquitetura Lda, a empresa de prestígio que o Zé António fundou e dirigiu durante dezenas de anos. Reencontrei também a secretária Teresa Martins Gil, competente e incansável colaboradora da PAL.

E ainda outros amigos comuns, que vieram de Lisboa,  como o prof João Salis Gomes (CIES-ISCTE) e familia... e o advogado Manuel Queirós (acompanhado do filho), natural do Marco de Canaveses, colaborador da PAL. Pude confirmar mais uma vez quão estimado era, na sua terra, o Zé António. E que nem sempre é verdade o que diz o provérbio "Ninguém é profeta na sua terra"... O Zé António tinha-se reconciliado há anos com a sua terra natal, que ele muito amava. O município, na sua págima oficial,  deixou, com data de ontem, uma nota de pesar pelo seu falecimento:

(...) Natural de Ílhavo, José António Boia Paradela deixa o seu traço no Município de Ílhavo, tendo assinado obras como o edifício dos Paços do Concelho e o Centro Cultural da Gafanha da Nazaré. Mais recentemente, foi responsável pela modernização do Jardim Henriqueta Maia e a reconversão do antigo edifício dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo, também da sua autoria, no Centro de Religiosidade Marítima. (...)
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3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Transcrição de excertos artigo do DN - Diário de Notícias, do Funchal, com a devida vénia (tras várias fotos e links para vídeos que se omitem):

https://www.dnoticias.pt/2023/2/22/349417-adeus-ao-pai-do-planeamento-do-territorio-na-madeira/#

MADEIRA
Adeus ao ‘pai’ do planeamento do território na Madeira
Morreu, ontem, o arquitecto José António Paradela, coordenador Plano de Ordenamento Territorial da Região Autónoma da Madeira (POTRAM)

DN - Diário de Notícias, Funchal | Erica Franco | 22 fev 2023 14:30

José António Bóia Paradela faleceu, esta terça-feira, 21 de Fevereiro de 2023. Tinha 86 anos.

As cerimónias fúnebres estão marcadas para amanhã, dia 23, na Igreja Matriz de Ílhavo, de onde era natural.

Nascido em Ílhavo, a 30 de Outubro de 1937, Paradela foi serralheiro civil e embarcadiço na pesca do bacalhau até aos 18 anos.

Foi, depois, Bolseiro da Fundação Gulbenkian durante 5 anos, tendo-se formado em Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (1960/1961).

Este homem do mar feito arquitecto dedicou-se também à escrita, tornando-se referência nos meios culturais. Escreveu e partilhou tertúlias literárias, tendo ficado conhecido sob o pseudónimo Ábio de Lápara.

A ligação à Madeira – onde deixaria extensa obra – começa na juventude, nomeadamente, através da amizade com Lourdes Castro, de quem foi colega na Escola Superior de Belas Artes.

No final dos anos 60, Lourdes Castro, René Bertholo e os amigos, entre os quais José Paradela, mas também Pitum Keil do Amaral, Eduarda e Marcelo Costa, juntavam-se nas férias e divertiam-se a fazer novelas nas ruas do Funchal, com playboys, “raparigas modernas” e sheiks árabes.

Desses “Verões passados” ficaram perto de 200 diapositivos, dois filmes em Super 8, uma banda magnética, um disco em vinil e ainda um filme em 16mm, que foram recuperados pela Porta 33. Veja aqui.(...)

Mais tarde, Paradela seria convidado pelo Governo Regional para coordenar o POTRAM, Plano de Ordenamento Territorial da Região autónoma da Madeira, sendo também responsável pelos Planos Directores Municipais (PDMs) de Machico, Santa Cruz e Porto Santo, bem como pelo Plano de Urbanização do Amparo, os Planos de Ordenamento da Orla Costeira do Norte e Porto Santo e a Carta de Riscos de Erosão, deixando a sua marca no planeamento do território na Madeira.(...)

Paradela assina também alguns edifícios emblemáticos construídos, na Madeira, nas últimas décadas. Entre as suas inúmeras as obras na Região destacam-se: o Estádio do Nacional, o Edifício da Caixa Geral de Depósitos, o Centro Comercial Europa, o Edifício da Loja do Cidadão, o Hotel Four Views, Hotel Alto Lido, Hotel São Vicente, Hotel Torre Praia Porto Santo, o Forum Machico, entre outras.

A notícia da morte de José António Paradela foi divulgada nas redes socias por nomes da arquitectura regional, como Danilo Matos e Pedro Araújo, que recordam com "saudade" o "grande amigo" e "patrão".(...)

Anónimo disse...

Camarigo e Homem Grande desta Tabanca, Luís Graça
Foi com grande emoçãon que ontem pude dar-te um grande abraço e tive pena de não ter mais tempo para permanecer no local.
Bela homenagem que prestaste ao José António. A tua sensibilidade e os teus dotes literários, são fabulosos. Sei, que muitos dos presentes ficaram surpreendidos, o que não aconteceu comigo hoje, depois desta leitura, já que conheço bem "a fonte".
Desejo-te rápidas melhoras, pois ainda tens de cumprir mais uns anitos de "comissão", pelo menos até "ao limite" do "teu mano Paradela".
Abração para ti e tua Família

Jorge Picado

Hélder Valério disse...

Meu amigo Luís

Uma bela e sentida homenagem que certamente terá comovido alguém.
Sendo que certo que a morte é, como escreveste, o corolário da vida e que, por tal, a nossa tristeza não consegue inverter esses desfechos, resta-nos então fazer com que a memória perdure o mais possível.
É nessa linha que a tua homenagem se inscreve e, deixa que diga, de modo inigualável.

Que o teu "mano" descanse em paz.

Hélder Sousa