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domingo, 10 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26135: As nossas geografias emocionais (32): Bafatá, 1959, ano de cheias, fazendo jus ao nome da vila ("o rio vai cheio") (Leopoldo Correia, ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65)

 

Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > O jardim local, na margem direita do rio Geba Estreito. Ao centro, a estátua de Oliveira Muzanty.


Foto nº 2 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (1): Uma das ruas da zona ribeirinha inundadas; à esquerda, o comerciante Carlos Marques da Silva


Foto nº 3 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (2):  uma loja com um passadiço improvisado


Foto nº 4 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (3):  o mercado que já existia nos 30, de arquitetura revivalista



1. Ainda não se falava de "alterações climáticas", mas já o rio Geba Estreito (ou Xaianga) transbordava, periodicamente, as suas margens, inundando a baixa da vila de Bafatá (próspera, a partir dos anos 30/40, graças ao "ciclo da mancarra")...


As fotos chegaram, há uns largos anos atrás, ao nosso blogue, pela mão do nosso tabanqueiro Leopoldo Correia (ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65) (foto à esquerda).

Estas e outras fotos de Bafatá, de 1959, foram tiradas por um familiar seu, ligado ao comércio local (Casa Marques Silva), casado com uma senhora libanesa, filha do senhor Faraha Henen.

Mais tarde, falando com o Leopoldo Correia, ao telefone, vim a descobrir que afinal o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande!...

De facto:

(i) era um homem das sete partidas: depois da "peluda", viveu em Angola, trabalhou na Diamang;

(ii) voltou para o "Puto', trabalhou na EDP, por exemplo na Central Termoelétrica do Barreiro onde fez amizade com amigos e conterrâneos meus, o Carlos e o Hugo Furtado (que andou comigo na escola primária);

(iii) na Guiné, também conheceu, entre outros, o Fernando Rendeiro, comerciante de Bambadinca a cuja casa fui algumas vezes almoçar, no tempo em que lá estive (julho de 69/março de 71)...

(iv) falou-me da viúva do Rendeiro, mandinga, Auá Seid (entretanto já falecida) e dos filhos (que  o comerciante de Bambadinca, natural da Murtosa,  nunca nos mostrava mas de quem falava com tanto carinho e orgulho: tinha uma filha a tirar direito, em Coimbra)...

(v) vivia em Águas Santas, Maia;

(vi) não tenho, há muito, notícias dele.

As fotos revelam um drama que se tem agravado com o tempo: as cheias do rio Geba (ou Xaianga).

A antiga cidade colonial de Bafatá (topónimo que vem do mandinga, "baa faata", "o rio vai cheio), infelizmente ainda não conseguiu ultrapassar a decadência urbana,demográfica e económica, que tem a idade da independència do país. (**)

O fim do "ciclo da mancarra", " a semente do diabo" (imposta pelos "colonialistas", e de queo grupo CUF, através da Casa Gouveia, foi o grande beneficiário)  foi também, material e  simbolicamente, o fim da "princesa do Geba". Em contrapartida, o "ciclo do caju", imposto pela nova economia planificada de Luís Cabral, não produziu a riqueza que se esperava, para a grande maioria dos guineenses, em geral, e os bafatenses, em particular, que criaram novas tabancas  ao longo do eixo rodoviário do leste, que liga Bambadinca a Nova Lamego. 

No nosso tempo havia as tabancas da Rocha,da Ponte Nova, da Nema... Há muitas mais... Mas continua a haver inundações no Vale de Bafatá, como este ano, provocando grandes estragos, em culturas (arroz de bolanhas de água doce) e em habitações, ao longo do curso do rio até Bambadinca,
______________

Notas do editor:

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21130: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - II (e última) Parte


Foto 4 – Cutia (Região do Óio) - "Ronco" da CART 564 [Out63-Out65]. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/


Foto 5 – Cutia (Região do Óio) - Estrada principal para Cutia. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564, 1963/65), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/


Foto 6 – Mansoa (Região do Óio) - Dois elementos da CCAÇ 413 (1963/65), junto à placa toponímica que indicavam algumas das localidades mais próximas para Oeste (Nhacra, a 28 km e Bissau, a 49 km. Para Leste: Enxalé, a 50 km; Bambadinca, a 65 km e Bafatá, a 93 km. – Foto do livro «Nos celeiros da Guiné», de Albano Dias Costa e José Sá-Chaves, com a devida vénia – P3066.



O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, indigitado régulo da Tabanca de Almada e da Tabanca dos Emiratos; tem 256 registos no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963-1964
- O CASO DE ENCHEIA -

II (e última) PARTE


Mapa da região do Óio, com indicação de alguns dos locais de "memórias cruzadas".
Em todos eles, e em todas as gerações de combatentes, com início em 1963, ocorreram factos marcantes para o resto da vida… (de todas as vidas)… em que alguns não tiveram direito a "viagem" de regresso... Lamentavelmente!

► Continuação do P21095 (21.06.20) (*)

3.   - AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS COMANDANTES DE BASES

Os objectivos da missão realizada por Bebiano Cabral d'Almada, dirigente do Bureau de Dakar, entre 12 de Janeiro e 05 de Fevereiro de 1964, incluía contactos com as estruturas partidárias organizadas em território da República do Senegal, na região de Casamansa, e um melhor conhecimento sobre o desenvolvimento da luta no interior da Guiné, através da visita a algumas das bases existentes na região do Óio-Morés.

No entanto, um outro propósito intrínseco aos objectivos supra, passava pela avaliação do desempenho versus comportamento dos diferentes comandantes das bases visitadas, que o relatório dá conta. A justificação para esse desiderato é explicada pelo autor do documento nos seguintes termos:

"Sem qualquer ideia de crítica ou espírito de maldade, mas na obrigação estrita do cumprimento do dever, cumpre-me deixar aqui escrito, certas informações sobre alguns responsáveis, colhidas nas bases visitadas." (Op. Cit., p. 16)

3.1         - INFORMAÇÕES SOBRE DIVERSOS CAMARADAS

● Camarada Mamadu Indjai – responsável da base de Fajonquito [Óio] e da recente base criada em Maqué [viria a morrer em 1973, na região do Boé, fuzilado pelos seus camaradas, por estar envolvido, em Conacri, na conspiração que levou ao assassinato de Amílcar Cabral (1924-1973)].

Não só na organização dos grupos de rapazes e raparigas existentes nas suas bases, como ainda pela muita coragem que tem sempre demonstrado em constantes combates travados contra os colonialistas portugueses, não parando além disso inactivo na sua base, sempre à procura de entrar em acção, quer em terra, como ainda procurando inutilizar as vedetas inimigas em fiscalização no rio, tendo ainda agora, permanecido durante cinco dias vigiando o rio Cacheu, perto de Iador, para ver se conseguia neutralizar a acção duma vedeta que ultimamente tem rondado aquelas paragens, não tendo infelizmente de satisfazer o seu desejo.

Camarada Leandro Vaz – responsável da base de Dando

Tem uma boa organização na sua base, mas isso não é suficiente, em virtude de não se deslocar da base para procurar entrar em acção contra o inimigo e nem sequer em serviço de rotina de ronda.

Camarada Augusto Pique

Encarregado duma base nova a poucos quilómetros de Dando, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz, tem demonstrado sempre muita coragem e a melhor vontade no desempenho do seu cargo.

Camarada Paulo Santi I (1º)

Encarregado duma base recentemente formada, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz e situada entre Mansoa e Dando, tem desempenhado as suas funções a contento do seu responsável.

Camarada Corca Só – responsável da base de Sansabato

Demonstrou a sua coragem no ataque no dia 01 do corrente mês (Fev'64), contra os colonialistas, forças terrestres e aéreas que tentaram atacar a sua base, tendo mesmo defendido corajosamente, somente com seis camaradas na ocasião na base, em virtude dos dois pelotões armados terem saído de ronda, tendo-se valentemente aguentado, dando assim tempo à chegada de reforços saídos da base Central. Merece as melhores referências [morreu em combate, na base Guerra Mendes (Óio-Morés), em 08Out72].

Camarada Inocêncio Kani – responsável da base de Mansodé [, futuro assassino de Amílcar Cabral, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973]

É um incansável e corajoso combatente, tendo ainda há dias, depois de bombardeada a central eléctrica de Farim, assaltado de surpresa uma povoação de fulas, ligados aos colonialistas e dali retirou mais de quarenta cabeças de gado bovino e milho, que servirá para a alimentação das bases.

Camaradas João da Silva e Quintino Robalo – encarregados da base Central, na ausência do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira)

Durante a minha estadia na base Central, nunca se deslocaram da base para qualquer acção ou simples serviço de ronda, a não ser o camarada Quintino Robalo, quando me acompanhou de visita às bases a cargo dos camaradas Inocêncio Kani e Corca Só.

Camarada Agostinho da Silva "Gazela" – responsável da base de Biambe

Não visitei esta base, não só pela longa distância, como me encontrei com o respectivo responsável na base Central, quando ali fora pedir reforço de material para enfrentar os constantes ataques aéreos e terrestres de tropas colonialistas portuguesas, vindas de Bula, Bissorã, Mansoa e Canchungo. 

Informou-me não ter raparigas na sua base mas que está em vias de as ter dentro em breve, e que a organização da massa se encontra normal. Desse camarada tive a informação que o camarada Marcelino da Mata, é muito cobarde, procurando fugir sempre a qualquer contacto com as tropas inimigas.

Camarada Caetano Semedo – responsável da base de Cubajal (Porto Gole)

Também não visitei esta base, pela sua longa distância, mas fui informado pelos camaradas Maximiano Gama e Irénio Lopes, que por lá passaram, que nessa base existem grande número de raparigas e rapazes bem organizados, apesar também de sofrer constantes ataques terrestres, aéreos e navais. Este camarada, por informações obtidas na base Central tem desempenhado corajosamente as funções do seu cargo, mostrando muito brio e competência.

Camarada Hilário Rodrigues "Lolo"

Segundo informações colhidas na base Central, tem-se desviado de constantes ataques, tanto assim que o camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira) resolveu destacar-lhe em serviço de mobilização e propaganda, o que demonstra não ter o mesmo condições militares. 

Foi depois colocado, como Cmdt da "Zona 3" (Canquelifá - Buruntuma - Piche e Nova Lamego), onde o vamos encontrar em Abril de 1965. Passados cinco meses (Set'65), Amílcar Cabral toma a decisão de o transferir para a Frente Sul, como prisioneiro do Partido, ficando à guarda de "Nino" Vieira, com a seguinte justificação:



Citação: (1965), Sem título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35336, com a devida vénia.

Camarada António Embaná

Encontra-se na base de Fajonquito a trabalhar com o camarada Mamadu Indjai, tendo este realçado as suas qualidades, dizendo ser o seu braço direito e que tem desempenhado as suas funções com competência e coragem, tendo no seu regresso, deixado o camarada António Embaná, incumbindo pelo camarada Mamadu Indjai, em Iador a escolher um local seguro, para uma nova base que pretendem criar, tendo nesse mesmo dia reunido o camarada Embaná, numerosas pessoas para explicar-lhes a necessidade da criação daquela base, em virtude da povoação estar agora livre do traidor Braima Cutô, que servindo de Pide, vinha extorquindo a população, e que foi pessoalmente preso por ele Embaná e executado na base Central por ordem do camarada Mamadu Djassi.

Camarada Julião Lopes
O parecer sobre o Cmdt Julião Lopes será analisado no contexto do ponto seguinte.

Foto 7 – Citação: (1963-1973), "Reunião de combatentes do PAIGC e população em Morés", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43456, com a devida vénia.

4.   - A SITUAÇÃO MILITAR EM ENCHEIA

4.1 - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE ARTILHARIA 564 =
NHACRA - QUINHAMEL - BINAR - TEIXEIRA PINTO - ENCHEIA - MANSOA E CUTIA (1963-1965)

4.1.1 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG
Mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada 2 [RAP 2], de Vila Nova de Gaia, para servir na província ultramarina da Guiné, a Companhia de Artilharia 564 [CART 564] embarcou em Lisboa, no Cais da Rocha, em 08 de Outubro de 1963, 3.ª feira, sob o comando do Cap Mil Art Rodrigo Claro de Albuquerque Menezes de Vasconcelos, seguindo viagem a bordo do N/M «ANA MAFALDA», tendo chegado a Bissau em 14 do mesmo mês, 2.ª feira.

4.1.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL

Após a sua chegada ao CTIG, a CART 564 [14Out63-27Out65] rendeu a CART 240 [30Jul61-19Out63, do Cap Art Manuel Fernando Ribeiro da Silva], ficando colocada no sector de Bissau, com Grs Comb destacados em Nhacra e Quinhamel, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 600 [18Out63-20Ago65, do TCor Inf Manuel Maria Castel Branco Vieira], com vista a garantir a segurança das instalações e das populações da área. 

A partir de 24 de Dezembro de 1963, um Gr Comb foi destacado para Binar e seguidamente para Teixeira Pinto, a fim de reforçar a actividade do BCAÇ 507 [20Jul63-29Abr65, do TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas], enquanto outro Gr Comb se instalou em Encheia, na zona de acção do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], a fim de ocupar aquela povoação. 

Em 12Mai64, assumiu a responsabilidade do subsector de Nhacra, então criado, na zona de acção do BCAÇ 600, continuando, no entanto, a manter o pelotão destacado em Encheia até 01Jul64.

Nesta data, por rotação com a CCAÇ 413 [09Abr63-29Abr65, do Cap Inf Júlio Eugénio Augusto Viegas de Almeida Pires], assumiu a responsabilidade do subsector de Mansoa, ficando integrada no dispositivo do BCAÇ 512 e depois do BART 645 [10Mar64-09Fev66, do TCor Art António Braamcamp Sobral], sendo utilizada, cumulativamente, na função de força de intervenção do sector, de 12Set64 a Fev65, actuando nas regiões de Santambato, Cubonge e Mantefa, em 13Abr65, voltou a ter um Gr Comb em Encheia, tendo ainda mantido efectivos em Cutia, por períodos variáveis. 

Em 27Out65, foi substituída no subsector de Mansoa pela CART 644 [10Mar64-27Jan66, do Cap Art Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques (1.º), Cap Art Nuno José Varela Rubim (2.º) e Cap Art José Júlio Galamba de Castro (3.º), tendo seguido para Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso. p 440.

4.1.3 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL EM ENCHEIA

A chegada de um Gr Comb da CART 564 a Encheia, verificada em 24 de Dezembro de 1963, 3.ª feira, é a resposta do comando militar do Sector C, da responsabilidade do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], ao crescendo das hostilidades na região do Óio iniciadas no mês de Junho de 1963, a partir da base central do Morés, "santuário" dos guerrilheiros do PAIGC.

Em relação a Encheia, merecem destaque, como fonte de informação privilegiada, as referidas pelo Chefe Administrativo do Posto local, José Cerqueira Leiras, ex-militar da CCAÇ 153 (1961-1963), retiradas do seu livro «Memórias de um esquecido», edição de 2003, já referenciado na Parte I deste trabalho – P21095 –, onde o camarada Beja Santos faz a apreciação crítica da narrativa do autor, a quem agradecemos, e que aproveitamos para citar algumas ocorrências – P16503.

São exemplos: 

"Numa coluna para Bissau [provavelmente em Outubro'63], entre Encheia e Binar há uma emboscada, um camião civil carregado de arroz e mancarra saltou pelos ares com o rebentamento de uma mina".

 Passado algum tempo, regressa a Encheia, "e pela estrada de Bissorã, via Mansoa, depara-se um camião civil a arder. Dez quilómetros à frente, duas árvores atravessadas e mais adiante uma grande vala cortando por completo a estrada". (…) 

Este quadro adverso e de terror, onde diariamente assiste à fuga da população para o mato, leva José Leiras a deslocar-se a Bissorã para falar com o Administrador local e pedir reforços, mas tudo lhe é recusado. "No regresso, escapa por um triz a uma saraivada de balas".

A este conceito de "sorte", juntou-se um outro algum tempo depois, provavelmente em meados de Outubro de 1963, durante um ataque à povoação de Encheia.

O ataque teve como consequências a destruição, pelo fogo, de muitas moranças, o comércio saqueado, todo o gado roubado e pessoas levadas para o mato. O comerciante Francisco Beira Mar é assassinado. José Leiras consegue chegar ao Posto Administrativo e resiste ao fogo dos guerrilheiros, apesar de ferido, pois no jipe onde se fazia transportar foi atingido por várias balas numa perna. José Leiras arranja um voluntário para ir a Bissorã avisar a tropa. Esta levou cinco horas para fazer 24 kms, pois na estrada havia dezenas de árvores atravessadas para além das valas.

Ferido, José Leiras é levado para o hospital (?), nessa altura as cuidadoras são religiosas. São-lhe extraídas as balas e algum tempo depois vai de avioneta até Bissorã. Aí passará a noite de Natal de 1963, e no dia seguinte segue para Encheia, onde vai encontrar o Gr Comb da CART 564.

O responsável por este primeiro ataque a Encheia foi o Cmdt Julião Lopes, vindo da base Central do Morés. Quem o afirma é Bebiano Cabral d'Almada no seu relatório, no ponto reservado às informações sobre diversos camaradas (ponto 3.1 desta narrativa).

=> Diz o relatório (p. 18):

"Por informações colhidas na base Central sobre este camarada [Julião Lopes], soube que num ataque [realizado em Outubro de 1963] do grupo por ele dirigido, em Encheia, contra o Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras] e não contra a tropa colonial, que numa rajada da sua metralhadora matou três camaradas, a saber: Luís Mendes "Mambará", João Balimbote e Joãozinho Amona, ficando ele, Julião, ferido com uma bala de um dos camaradas daqueles que morreram, que o atingiu propositadamente com a intenção de o matar, procurando assim vingar-se por si e seus companheiros, tendo nesta altura também ficado ferido, e ainda pelo camarada Julião Lopes, o camarada Paulo Santi

Depois de arrebentada a porta da residência do Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras], para ser liquidado, o respectivo chefe, o camarada Julião Lopes, impediu os seus companheiros de o fazerem, alegando bastar já o mesmo ter uma perna quebrada [balas nas pernas].

O Cmdt deste ataque, Julião Lopes, foi depois transportado para o Hospital de Ziguinchor, a fim de ser intervencionado, onde se manteve até ao dia 09 de Janeiro de 1964, 5.ª feira, data em que deu início ao seu regresso à base Central do Morés.


4.2 - ANTECEDENTE DESTE ASSASSINATO COLECTIVO

Segundo os factos narrados no ponto anterior, procedemos ao seu aprofundamento realizando nova pesquisa onde encontrámos um registo datado de 25 de Setembro de 1962. Trata-se de uma carta escrita em Zinguinchor, em "linguagem codificada", dirigida a Amílcar Cabral, onde constam alguns nomes dos que foram assassinados pelo Cmdt Julião Lopes, em Encheia, e que seguidamente se transcreve o conteúdo e se reproduz o documento original.

=> Ziguinchor, 25 de Setembro de 1962 (3.ª feira).

Camarada Cabral,

Esta tem por fim pedir-lhe o envio urgente, caso seja possível, de 4 bonecas daquelas que trazem sapatos e roupa sobressalente pois que tenho que ir presentear pessoas da minha estima.

Seria conveniente enviar-me também o mapa e croquis do número 10 [Zona 10? - Bula a Teixeira Pinto] porque faz muita falta na conclusão do trabalho que tenho entre mãos.

Não se esqueça também de algumas caixas de supositórios para levar aos meus doentes bem como os respectivos suportes suplementares.

Cito-lhe o nome de alguns doentes: - Augusto da Costa, William Tubman, Luís Mendes e João.

O amigo Brauner [Braima Camará?] pediu-me um pé suplente para a boneca da sua filha porque só veio com um pé. É das bonecas maiores, conforme ficha de recebimento.

Receba cumprimentos do camarada sempre ao dispor,
Julião Lopes.

Citação: (1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37368, com a devida vénia.
Concluído.
► Fontes consultadas:

Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.011. Título: Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné. Assunto: Relatório enviado a Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por Bebiano Cabral de Almada, Membro do Bureau de Dakar, sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné Bissau. Data: Sábado, 15 de Fevereiro de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).

Ø  Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde… sem ajuntamentos.

Jorge Araújo.
21JUN2020
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 21 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21095: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - Parte I

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19415: In Memoriam (333): Auá Seidi (c.1935-2018), viúva do comerciante de Bambinca (c. 1925-2011), Rodrigo Rendeiro, natural da Murtosa, já falecido em 2011 (Leopoldo Correia, amigo da família, ex-fur mil, CART 564, Nhacra,Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65).


Audá Seidi (c. 1935-2018), viúva de Rodrigo Rendeiro (c. 1925-2011), comerciante de Bambadinca, natural da Murtosa, foto que nos foi remetida pelo nosso camarada Leopoldo Correia, amigo da família, e que vive em Águas Santas, Maia (, foi fur mil, mil da CART 564, Nhacra,Quinhamel, Binar, Teixeira PintoEncheia e Mansoa, 1963/65).

O nome completo do marido era Rodrigo José Fernandes Rendeiro, e terá ido para a Guiné em plena II Guerra Mundial, com 17 anos, pelo que terá nascido por volta de 1925/26. A Auá Seidi era mais nova do que ele cerca de 10 anos. E era muito bonita,  dizia-se. O casal teve 9 filhos.

Já aqui contámos a "odisseia" do Rendeiro, às mãos do PAIGC, quando era comerciante no Enxalé, em 1963 (**). Levado para o  Senegal, conseguiu chegar à Gâmbia e, com apoio do consulado da Suiça, teve a sorte de regressar a Bissau.

A seguir, talvez no fim desse ano ou princípios de 1964,  deve ter ido para Moçambique, onde tinha parentes,m  para fugir à guerra e às represálias do PAIGC. Presumimos que tenha voltado e regressado à Guiné, fixando-se então em Bambadinca  por volta de1965(66. Terá regressado à sua terra natal,  em 1974, amargurado. Receio bem que tinha tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua colaboração com as NT e, eventualmete, com a PIDE/DGS.

1. Mensagem de hoje do nosso editor Carlos Vinhal, às 10h59:

Luís,

O Leopoldo Correia acaba de me comunicar o falecimento da esposa do senhor Rendeiro, Auá Seidi,  pessoas que parece teres conhecido em Bambadinca, onde ela era conerciante. Faleceu ontem e é sepultada hoje na Murtosa. Queres publicar a notícia no blogue ? Junto foto da senhora.

Abraço,
Carlos Vinhal




Notícia necrológica (Cortesia da funerária ToniFuner, da Murtosa)

2. Nota do editor Luís Graça:

Obrigado ao Leopoldo Correia e ao Carlos Vinhal.  Sim, conheci e estive, algumas vezes,  na casa da família Rendeiro, em Bambadinca, entre julho de 1969 e março de 1971.  E provei, nessas ocasiões,  o famoso chabéu da nhá Auá Seidi (ou Seide). Mas nunca tive o prazer de a conhecer pessoalmente. Nem sequer alguma vez a vi. E ao Rendeiro também nunca mais o vi, depois do nosso regresso a casa.

No meu tempo, ele convivia não só com a malta da CCAÇ 12 bem como com alguns camaradas nossos das CCS (BCAÇ 2852, 1968/70; e depois BART 2917, 1970/72)... Era nosso "vizinho", a sua casa e a sua loja situavam-se períssimo do quartel, na tabanca de Bambadinca. Além disso, fazíamos colunas logísticas juntos, ele tinha uma ou mais camionetas que alugava à tropa...Fica esta nota de saudade (*). E o apreço da Tabanca Grande a esta grande família. Infelizmente, o Rodrigo Rendeiro  (**) já nos tinha deixado há cerca de oito anos, conforme notícia dada também pelo Leopoldo Correia:

(...) Infelizmente já não está entre nós, [, o Rendeiro,] pois foi sepultado na sua terra natal [, Murtosa,] em 10/09/2011, tendo eu assistido ao funeral e tido contacto com toda a "ínclita geração", os filhos de Fernandes Rendeiro / Auá Seide, da qual só tenho a dizer bem. A que estudava em Coimbra, era licenciada em direito e era magistrada: faleceu também há cerca de 5 anos. Era juíza do Ministério Público em Lisboa. (...). 

Diz-nos o Paulo Santiago, em comentário do dia 19, às 00h17: "Não sabia que a filha do Rendeiro, Ana Maria, julgo ser este o nome,tinha morrido. Entrou para Direito juntamente com a minha irmã, infelizmente também falecida há quinze anos,aos 53 anos de idade."

O nosso editor comentou: "Nome completo: Ana Maria Fernandes Rendeiro Bernard (, este último apelido deve ser do casamento).  Nasceu em 1953 e terá morrido em 2006 ou 2007, com 53 anos. (Em 1 de setembro de 2006 ainda era viva, constando da listagem dos Magistrados do Ministério Público no Distrito Judicial de Lisboa.) 

A fotografia que se vê ao fundo, na mesa de cabeceira da cama da Auá Seidi, deve ser dessa filha, prematuramente desaparecida. E que era a 'menina dos olhos' do nosso amigo Rendeiro, por andar a estudar na Metrópole. De facto, cursou direito e entrou para o ministério público. A Auá, por sua vez, deve-se ter convertido ao cristianismo ao casar-se com o Rodrigo Rendeiro.
_________

Notas do editor:


(**) Vd. postes de:


2 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17926: (D)o outro lado do combate (15): continuação da odisseia do Rodrigo Rendeiro que acabou por regressar a Bissau, com um salvo-conduto do consulado da Suíça em Dacar, que o levou até à Gâmbia...

3 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17929: (D)o outro lado do combate (16): O Rodrigo Rendeiro, depois de regressar a Bissau, terá fornecido preciosas informações à FAP , permitindo a localização (e bombardeamento) das bases do PAIGC em Morés e Dandum, segundo Maria José Tístar, autora de "A PIDE no Xadrez Africano: conversas com o inspetor Fragoso Allas", Lisboa, Colibri, 2017 (pp. 191/192)