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quarta-feira, 5 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
A sorte não favorece só os audazes, há bancas da Feira da Ladra onde se podem descobrir pepitas, esta conferência de António Júlio de Castro Fernandes tem muito que se lhe diga, recordo que em 1955 ele produziu, e seguramente que não era um exclusivo para a administração do BNU, um documento bem encorpado sobre a situação da Guiné e já numa previsão de mudanças geoestratégicas e geopolíticas, queixando-se da falta de qualidade dos funcionários da administração e da estagnação económica, baseada numa avidez de duas ou três culturas, de fraquíssima qualidade, só de puro escoamento em Portugal, escreveu para quem o quis ler que a Guiné em termos socioeconómicos e culturais tinha que dar uma grande volta. O que não aconteceu. Seguramente escalado para se dirigir à administração colonial, aos empresários locais, adoçou o discurso, nada de temores com subversões (houve quem previsse que os tumultos nacionalistas podiam começar pela Guiné), e vendeu a receita tão cara aos dirigentes do Estado Novo que a nossa presença em África era uma especificidade em prol da civilização ocidental e da mensagem cristã. No ano seguinte a esta alocução de fé e da inabalável crença do Estado Novo de que não haverá política de abandono, a subversão estará em marcha.

Um abraço do
Mário



Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas

Mário Beja Santos

Nome sonante do Estado Novo, economista, banqueiro, membro do Governo, Presidente da Comissão Executiva da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes era grande conhecedor da realidade económica da Guiné. Queria lembrar ao leitor o documento que assinou pelo seu punho em 1955 e enviado à administração do BNU, a que ele pertencia, documento que parcialmente transcrevi no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", o BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019, onde revela que não se pode perder mais tempo numa atitude de desenvolvimento, estavam previstas grandes alterações em torno da colónia, era um risco não mudar o estado das coisas. Se o leitor estiver interessado tem o documento integral à sua disposição na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

A conferência que ele vai proferir em 23 de abril de 1960 direciona-se para três temas: Portugal na Guiné; presente e futuro da Guiné; e condicionalismo político. Não traz nada de novo acerca do descobrimento da Guiné, a não ser não ter referenciado Nuno Tristão como o primeiro a chegar à região, mas sim Diogo Gomes, em 1456. Refere sumariamente a colonização e dirige-se ao auditório falando do presente e do futuro. Estamos em 1960, na fronteira norte está a República do Senegal que então fazia parte da Federação do Mali. “Sobre vários aspetos, a Guiné Portuguesa é um país singular, que se destaca pelas características próprias entre as paisagens do Sudão e o grande planalto da Guiné Superior, com a sua particular estrutura de terras baixas, irrigadas por rios largos e numerosos, um território meio continental e meio insular.”

Dá-nos uma água-forte do mosaico étnico, e discreteia sobre a economia, baseada na agricultura. “O ponto fraco do sistema reside na monocultura, não em sentido literal porque, na área da província, há três ou quatro culturas com relevante valor económico. Assim, temos: a mancarra em Farim, Bafatá e Gabu; a palmeira de azeite em Cacheu, Geba e Arquipélago de Bijagós; o arroz em Mansoa, Catió, Fulacunda, Bissau e São Domingos. É visível que a agricultura guineense está concentrada em número restrito de produtos: o amendoim, o coconote e o óleo de palma, que são artigos de exportação; o arroz e o milho, de consumo interno. O primeiro problema que se põe é o de transitar para um esquema em que os produtos cultivados sejam mais numerosos e em que as explorações evoluam no sentido da policultura. É preciso imprimir à economia agrícola da Guiné características de variedade e flexibilidade que lhe faltam. As grandes culturas tradicionais correspondem a direções que estão certas e bem pode dizer-se que têm sentido funcional. O arroz e o milho são os produtos-base da alimentação do indígena. As oleaginosas são o ouro da província. Mas não só podem aclimatar-se outras culturas como aquelas são suscetíveis de adquirir maior extensão. Há que vitalizar e enriquecer um sistema que se enquistou na rotina, sem que nela encontrasse um equilíbrio salutar.”

E tece considerações sobre os problemas da qualidade, o amendoim era de baixa qualidade, o óleo de palma dificilmente colocável no estrangeiro, a mancarra ia acarretar o empobrecimento dos solos, impunha-se sanear e valorizar a agricultura da Guiné, que se encontrava num quadro de estagnação. A indústria da Guiné pouco representava, as suas trinta e tantas unidades fabris eram complementares da lavoura. E espraia-se sobre os planos de fomento, a recuperação de terras para o arroz, um programa de regularização e dragagem do rio Geba, a construção de pontes sobre o Geba, o Corubal e o Cacheu, a conclusão da ponte do cais de Bissau e dos cais de Catió e Cacheu. Faz sempre menção ao I Plano de Fomento e ao II, onde se previra a instalação de uma estação agrária para aproveitamento dos terrenos alagados, ribeirinhos do Geba.

E assim se chegou à questão mais delicada, o condicionalismo político, socorre-se de um punhado de lugares comuns para falar da África Negra, do nacionalismo africano, pretende que fique claro que o continente não é nem homogéneo nem uniforme, da ebulição dos novos Estados parece que se deseja um regresso às origens, renasceram ódios, é intensa a hostilidade ao Ocidente, e faz uma observação de caráter pessoal:
“A África é de tal modo complemento da Europa que bem podemos admitir a hipótese de, passado algum tempo, se refazer a colaboração que está na ordem natural das coisas e arrefecer e apagar-se o ímpeto agressivo de um racismo negro que é de criação puramente artificial, produto da propaganda dos agitadores mais do que a expressão autêntica de uma aversão hereditária. Ouvimos por toda a África o tambor da guerra. Nem a África pode organizar-se unitariamente, porque nela não há fator de unidade, nem sequer lhe é possível organizar-se pela simples transformação dos territórios coloniais em Estados autónomos.”

E o político que abraçou o nacional sindicalismo e que se entusiasmou pelo corporativismo e é um peso pesado da União Nacional dá conta à audiência do que fará Portugal. Não se percebe como os responsáveis do Ocidente querem fazer frente à invasão comunista, parece que todos querem descolonizar e recomendam a descolonização a quem não a quer fazer, porque há a especificidade portuguesa. “Não conhecemos os equívocos em que outros tropeçam porque, dentro das nossas fronteiras, nos territórios portugueses, o nacionalismo só tem um sentido. Não há, no nosso Ultramar, nacionalismo que não seja português ou, se o preferirmos, que não seja nacional. Nós vivemos à margem dos equívocos em que outros se transviam. Como eles, nós não temos nações negras dentro dos limites em que se exerce a soberania portuguesa. Na nossa África, é efetiva a presença de uma nação, a Nação Portuguesa. Não corremos o risco de nos desnortearmos, ao ponto de nos atormentar as vigílias a ideia de que dominamos e recusamos o direito à vida a nações escravizadas. A nossa experiência africana é mais larga que a dos outros povos, mais longa e mais rica de conteúdo.”

Está dado o mote para avisar a audiência, os meios de comunicação e a opinião pública em geral de que não iremos praticar a política do abandono, a renunciar ao que é irrenunciável. E evoca-se a lição da história:
“Começámos por nos aventurar pelas rotas do Atlântico Sul e do Índico, lutando com as tempestades em frágeis caravelas, a dobrar os promontórios, de mandar as aguadas, aprender a conhecer o litoral do grande continente. Depois, fundámos os nossos estabelecimentos da costa. Desde logo nos aventurámos através do sertão inóspito, ganhando palmo a palmo a terra e as gentes alma a alma. É que, para nós, colonizar não era apenas criar balcões de comércio ou mesmo fazendas prósperas. Era serviço de Deus e da Pátria. Fomos em África soldados e missionários, mercadores e lavradores, mas fomos, acima de tudo e na mais larga acessão da palavra, homens humanizando outros homens.”

E na sua alocução não deixa de mencionar os valores materiais e morais da Civilização Ocidental e Cristã. E termina a sua conferência com o apelo à energia firme; a aceitação voluntária de sacrifícios e riscos, vivia-se a hora em que se propunha a Portugal o problema de sobreviver ou não sobreviver na sua dimensão mundial. Havia que estar unidos e confiar nos chefes e na aliança inquebrantável de todos os portugueses de boa vontade. Sagaz, não menciona uma só vez a erupção do nacionalismo africano na Guiné ou a subversão latente, não havia que descolonizar porque éramos todos portugueses. Bem silenciou as tensões já existentes, deverá ter considerado que era a comunicação adequada para comemorar a epopeia henriquina. No ano seguinte, tudo começará a ser diferente.

Imagem da época da sede da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, projeto do arquiteto Jorge Chaves, teve intervenções no interior de um jovem que seria um grande nome das artes plásticas portuguesas, José Escada
Desenho de António Júlio de Castro Fernandes, por Almada Negreiros, 1932
António Júlio de Castro Fernandes, retrato a óleo de Maluda, 1975
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Procurei nos Anais do Clube Militar Naval, no âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, artigos assinados por oficiais da Marinha. Encontrei um texto sobre a definição das fronteiras, a importante comunicação de Teixeira da Mota, logo em janeiro de 1946 dado como certo e seguro que Nuno Tristão fora frechado por Mandingas, mas na região do rio Gâmbia, aquela expedição não chegara a terras da Guiné; e por último uma apreciação muito desgostosa do Contra-Almirante Aprá que participara nas operações na península de Bissau em 1894 e que ficara consternado com a falta de preparativos do Governador, segundo Aprá perdera-se a oportunidade de ficar a dominar os povos residentes na península de Bissau.

Um abraço do
Mário



Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947)

Mário Beja Santos

Compulsando números antigos da prestigiada publicação "Anais do Clube Militar Naval", detive-me nos 76 e 77 anos da publicação, 1946 e 1947, respetivamente. Logo com o artigo intitulado "As Fronteiras", escrito pelo Capitão de Mar-e-Guerra Tancredo de Morais. O oficial começa por referir os limites que André Alvares de Almada, no seu Tratado Breve, tratado de 1594 propõe para a região da Senegâmbia, teoricamente território ocupado pelos portugueses: do rio Senegal à Serra Leoa. Ao tempo, esta Senegâmbia era uma espécie de morgadio de Cabo Verde. Os portugueses reconheciam a soberania dos régulos que lhes vendiam os escravos. A questão dos limites vai complicar-se com a chegada dos holandeses, que não encontraram qualquer resistência, que se estabeleceram em Arguim e depois na Goreia, ilha que ninguém defendia – aqui ficaram até 1677, data em que uma esquadra francesa os expulsou. Os ingleses estabeleceram-se na Serra Leoa, não houve qualquer reivindicação portuguesa. Os nossos diferendos diplomáticos serão com a Grã-Bretanha por causa da questão de Bolama e com a França quando esta procedeu a uma ocupação insidiosa do Casamansa. O autor dá-nos um resumo do envio de protestos para Paris e para o Senegal, a diplomacia francesa chegou ao descaro de informar que tinham sido os primeiros a chegar… Honório Pereira Barreto, sempre franco e leal, não deixou de descrever o que era a presença portuguesa em Ziguinchor: “Ziguinchor tinha 7 soldados, era defendida por uma paliçada e uma artilharia desmontada. Devia a sua conservação à família Carvalho Alvarenga. O seu comércio, que era importante, achava-se nas mãos dos franceses, depois que se havia estabelecido em Selho”.

O autor não deixa de chamar a atenção que a reação diplomática à ocupação britânica foi tíbia e insegura. Em vez de se apresentarem factos da ocupação desde o século XV, o mais que se pôde obter foram documentos que datavam do reinado de D. José. E menciona a sentença arbitral do presidente dos EUA, Ulysses Grant. As fronteiras definitivas vão surgir na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, mas os franceses ainda irão exigir, no processo de sucessivas retificações, mais algumas porções de terra.

Ainda em 1946, no número de março a abril, merece o devido relevo a referência à conferência que Teixeira da Mota proferiu em Bissau em 6 de janeiro desse ano, na abertura do V Centenário da Descoberta da Guiné. Com subtileza, o autor traça em longo preâmbulo considerações sobre a verdade em História, e a obrigação de ir desmantelando tabus e mitos. Era na época dado como assente que o primeiro descobridor que chegara a Guiné fora Nuno Tristão, aparece agora um oficial da Marinha, um jovem historiador, ainda por cima ajudante do Governador, a dizer que nada se passou assim. Descreve a descida progressiva da costa ocidental africana, a passagem do Cabo Bojador em 1434, no ano seguinte o mesmo Gil Eanes e Gonçalves Baldaia iniciaram a exploração da Mauritânia e chegaram a Angra dos Ruivos; e no ano seguinte o mesmo Baldaia foi ao Rio de Ouro e à Pedra da Galé. Seguem-se expedições em 1441 em que aparece pela primeira vez o nome de Nuno Tristão; em 1443 são descobertas as ilhas de Arguim e das Garças , foi um dado fundamental para o projeto henriquino, ergue-se em Arguim uma feitoria, tudo por causa do negócio do ouro; no ano seguinte, o cavaleiro-navegador Lançarote descobre mais ilhas, chegava-se à costa da Mauritânia, era a Terra dos Negros; em 1444, Diniz Dias avançava ao longo da costa dos Jalofos e descobria o Cabo Verde – os portugueses aproximavam-se das fontes do ouro. No Senegal e no Cabo Verde souberam pelos Jalofos que perto, para o sul, corria um largo rio, o rio Gâmbia, onde também abundava o ouro. Em 1446 larga do Algarve uma caravela capitaneada por Nuno Tristão, leva a bordo 30 homens. Chega ao Cabo dos Mastros, Nuno Tristão e os 30 homens embarcam em dois batéis, são cercados por canoas de indígenas e atingidos por flechas envenenadas, Nuno Tristão é uma das vítimas mortais. E Teixeira da Mota conclui: “Nuno Tristão não passou na realidade do Estuário Salum-Jumbas, que é propriamente um conjunto de braços de mar que se estende por algumas dezenas de milhas um pouco ao norte da foz do Gâmbia. Os indígenas que mataram Nuno Tristão eram Mandingas. Nuno Tristão não esteve, portanto, em 1446 em território atualmente português, mas traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio de uma das etnias que pululam a Guiné Portuguesa. Quis o destino que esse contacto se manifestasse da forma brutal que o caracteriza. Os poderosos imperadores do Mali, que lá muito para o Oriente, das margens do Níger, em Niani, sua capital, dirigiam os vastos domínios, ignoravam talvez a existência daquele chefe mandinga. Enquanto a grandeza mandinga entrava no ocaso levantava-se a portuguesa”.

Temos por último o artigo intitulado "A Companhia de Guerra da Marinha na Campanha da Guiné de 1944", aparece no 77.º ano, número de janeiro e fevereiro de 1947, assina A. Aprá, Contra-Almirante. Ele refere-se à companhia de guerra da Marinha que embarcou em Lisboa no transporte África, isto em fins de março de 1894, passou o mês de abril em Bissau apetrechar-se, havia que comprar chapéus de palha em Cabo Verde, fizeram-se a bordo polainas, bornais de lona e manteve-se a atividade física e os preparativos militares com exercícios diários no ilhéu do Rei. A Guiné era um distrito militar autónomo, quem iria conduzir as operações era o governador, o Coronel de Artilharia Vasconcelos e Sá. A coluna saiu de Bissau a 10 de maio, foram considerados importantes aspetos logísticos como o recrutamento de carregadores para transportar água e munições. O efetivo da companhia era 259 homens; tinha uma seção de metralhadoras com 25 praças e 1 oficial, 1 médico com 3 enfermeiros e 6 maqueiros, participava ainda uma seção de administração naval. E relata que tudo começou numa confusão na distribuição de cargas pelos carregadores, só se pôde partir às 8 da manhã, avançaram sobre Antim, fazendo fogo sobre o objetivo, só perto dele é que se verificou resistência, quando se chegou a Antim a povoação estava completamente vazia. Começou a falta de água, os rebeldes só apareciam dando tiros isolados. Depois das 2 da tarde chegou a ordem de retirar com as devidas precauções, esta companhia de guerra da Marinha veio acompanhada por uma companhia de Angola. Verificou-se uma enorme agitação porque os carregadores procederam a saque, isto quando havia punhetes para transportar, e o contingente militar acusava fadiga, e temia-se que os rebeldes atacassem a qualquer momento. Regressou-se ao acampamento de Antim depois de 7 horas de marcha, não havia a menor provisão de água e a refeição preparada era um autêntico desastre só no dia seguinte é que apareceu água e um rancho decente.

Aguardavam-se ordens para que esta companhia de Marinha saísse do Alto de Antim e avançasse sobre Antula. Houve troca de impressões sobre a ordem de marcha, à tarde veio ordem do governador dizendo que era tarde para começar a marcha sobre Antula e no dia seguinte chegava a notícia de que o mesmo governador considerava ser suficiente o castigo dado ao gentio; mais tarde regressou-se à praça de Bissau onde se embarcou no navio África. E o contra-almirante Aprá termina com uma apreciação altamente crítica:
“Assim terminou a campanha de 1894, mandada acabar por quem direito. Foi incompleto o serviço? Sim. Mas foi a primeira vez que uma força europeia de uma certa importância entrou em operações de guerra na Guiné. Nada estava preparado, não havia planos, organização, nem se pensou em abastecimentos.
Se tivesse havido um verdadeiro Estado-Maior, e serviços administrativos regulares, se tivesse havido um modesto serviço de transportes e não estivessem na mão de carregadores gentios que só marcham com as forças para matar, roubar e incendiar, enchendo-se de despojos e abandonando as nossas cargas, tenho o pressentimento que a companhia de Marinha que, no dia 10 de maio, tinha ganho um verdadeira ascendente sobre o gentio fugia apavorado com o nosso avanço, essa companhia sozinha tinha feito ocupação da ilha de Bissau. Do exposto se concluí que a coluna organizada em 1894 não foi encarregada da ocupação militar da ilha de Bissau, foi como diz o Governador e o Governo Central concordou, um castigo dado ao indígena pelos altos de selvajaria anteriormente praticados. É a este ponto que quero chegar, não pode considerar-se um desastre que em campanha me parece ser sinónimo de derrota”
.

E assim termina a colaboração alusiva ao V Centenário da Descoberta da Guiné nos Anais do Clube Militar Naval.


Uma bela fotografia de Andrea Wurzenberger captada na Guiné, com a devida vénia
Um comboio de embarcações comerciais no rio Geba
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23700: Historiografia da presença portuguesa em África (338): Viagens por alguns títulos do Boletim Geral das Colónias (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23271: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (24): Cacheu, restos que o império teceu... - Parte I


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Uma das 16 peças de artilharia que defendiam a entrada do rio Cacheu.

"Os trabalhos de recuperação do antigo forte colonial foram desenvolvidos de Janeiro a Março de 2004, com recursos da ordem de cem mil Euros, disponibilizados pela União das Cidades Capitais de Língua Oficial Portuguesa (UCCLA). Visando assegurar a sua utilização como área de lazer e cultura, além de promoção do turismo, foram promovidas a reurbanização de seu interior, onde foram instalados diversos equipamentos de lazer e recolocadas as estátuas dos navegadores portugueses Gonçalves Zarco e Nuno Tristão, os primeiros europeus a atingir as costas da Guiné, no século XV. Nas antigas edificações de serviço foram instaladas uma biblioteca e salas de convívio." (Fonte: Wikipedia)


Fpto nº 1A > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > "O forte, de pequenas dimensões, apresenta planta na forma de um rectângulo, com 26 metros de comprimento por 24 metros de largura, com pequenos baluartes nos vértices. As muralhas, em pedra argamassada, apresentam cerca de quatro metros de altura por um de espessura. Encontrava-se artilhado com dezasseis peças. O Portão de Armas, com mais de um metro e meio de largura, é o seu único acesso." (Fonte: Wikipedia)


Foto nº 2 > Guiné -Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI)    > Hoje funciona como depósito de alguma estatuária colonial... como é o do que resta da estátua, em bronze, do governador Honório Barreto... Veio de Bissau, ficava justamente no centro da Praça Honório Barreto, perto do Hotel Portugal, hoje Praça Che Guevara.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Restos da estátua de Teixeira Pinto, o "capitão-diabo" ...Estátua, em bronze, da autoria do professor de Belas Artes, o escultor Euclides Vaz (1916-1991), ilhavense. Encontrava-se no  Alto do Crim, antigo parque municipal, onde agora está a Assembeleia Nacional. (*)

 

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) >   O que resta da estátu, também em bronde, do Nuno Tristão:  erigida por ocasião do 5º centenário do seu desembarque em terras da Guiné (1446), a estátua ficava no final na Av da República, hoje, Av Amílcar Cabral... Esta artéria, a principal avenida de Bissau no nosso tempo, vinha da Praça do Império ao Cais do Pidjiguiti, tendo no final a estátua de Nuno Tristão; no sentido ascendente, ou seja, do Pidjiguiti para a Praça do Império, tinha à esquerda a Casa Gouveia, por detrás da estátua, e mais à frente, à direita, a Catedral.


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) >  Restos da estátua de Diogo Gomes, que até à Independência, estava em Bissau,  frente à ponte cais de Bissau...


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial do Estado Novo, o pedestal na ponte cais de Bissau (agora vazio) da estátua do Diogo Gomes ainda lá estava em há meia dúzia de anos, tal como a inscrição, um exerto do canto VII dos Lusíadas, "Mais mundo houvera"... 

O pedestal é obra do Gabinette de Urbanização do Ultramar (GUU). A estátua, entretanto removida em 1975 para o forte do Cacheu, deve ser da autoria do escultor Joaquim Correia, autor de monumento análogo que ainda hoje está de pé na cidade da Praia, Cabo Verde. 

Esta e outras estátuas (Honório Barreto, Nuno Tristão, Teixeira Pinto) faziam parte de "um escrupuloso programa de 'aformoseamento' do espaço público", integrado nas comemorações do 5º centenário do desembarque de Nuno Tristão. na altura do governo de Sarmento Rodrigues (1945-48). 

No entanto, a colocação das estátuas destas figuras históricas da colonização só será efetuada na segunda metade da década de 1950 [Vd. Ana Vaz Milheiro - 2011, Guiné-Bissau. Lisboa, Círculo de Ideias, 2012. (Coleção Viagens, 5), pp. 32-33].

Obrigado ao Patrício Ribeiro, o "nosso último africanista" que resiste, desde 1984, à usura (física e mental)  do tempo, da história, dos trópicos, no país, a Guiné-Bissau, que ele escolheu para viver e trabalhar,  e que se lembra, de vez em quando,  de nós e realimenta as nossas "geografias emocionais"  do tempo de soldadinhos de chumbo do Império... 

As fotos acabaram de chegar, ainda estão frescas, mas há mais para uma segunda parte. (***). O Patrício diz-me,  sempre dsicreto e  lacónico, que "sim, todas a fotos, foram tiradas no domingo passado, em Cacheu onde estive a trabalhar. Umas são  sobre o porto do Cacheu e outras sobre a "fortaleza do Cacheu". 

Eu que não sou especialista em arquitetura, muito menos militar e colonial, confesso que são sei distinguir um forte, uma fortaleza e um fortim...Com cerca de  624 metros quadrados de área total, e muros "altos de 4 metros", aquilo parece-me mais um "castelo de areia" do meu tempo de praia, quando eu era menino e moço e construía "castelos de areia"... Mas, enfim, lá cumpriu a sua missão, mal ou bem, não podendo nós, todavia, esquecer que o seu passado "esclavagista"  como tantos outros pontos da costa africana ocidental... 

PS - Patrício, fico feliz por teres trabalho (tu e os teus "balantas"), mas preocupado por teres de trabalhar ao domingo, como, de resto, muito boa gente... Em primeiro lugar, também precisas de descansar. Por outro, não respeitando o Dia do Senhor, ainda corres o risco de seres transformado, como o ferreiro, em "dari" (o nome afetuoso que os guineenses chamam ao nosso "primo" chimpanzé). Nestas coisas, é bom estar com Deus, Alá e os bons irãs...

2. Faça-se a devida pedagogia destas fotos, para os iconoclastas de todo o mundo, e de todos os quadrantes político-ideológicos, mas também para os nossos "saudosistas do Império", leitores do nosso blogue...  Aproveito para citar um comentário do nosso querido amigo Carlos Silva (a quem desejamos rápidas melhoras), e que é um dos nossos camaradas que melhor conhece (e ama) a terra e a gente da Guiné-Bisssau (****):

(...) "A estátua de Teixeira Pinto estava situada no Alto de Crim, onde actualmente está situada a Assembleia Nacional.

O monumento com o busto de Teixeira Pinto creio que situava-se na baixa de Bissau, próximo da catedral e foi inaugurado em 1929 pelo Governador Cor Leite de Magalhães. (...)
 
Quanto às estátuas que refere o Armando Tavares da Silva, presentemente estão as 3 dentro da Fortaleza do Cacheu. Pelo menos estavam em Abril de 2019, mas antes estiveram fora da fortaleza, mas próximo da mesma,  das quais tenho fotos dos anos 90 e de 2001 e de outros anos.

Falei com vários altos dirigentes, incluindo com o falecido Presidente Interino Manuel Serifo Nhamadjo sobre este tema e todos concordam que as estátuas fazem parte da História do país, mas não há vontade política para fazer seja o que for.

Para mim, os pedaços das estátuas estão lá na fortaleza de castigo e para lembrar o colonialismo.

E duas estátuas já foram à vida, a do Comandante Oliveira Mozanty que estava em Bafatá, da qual tenho fotos de 1997, toda partida, mas que já foi para a sucata, embora continue por lá o pedestal em granito preto com relevos e muito bonito.

A outra era a de Ulisses Grant, presidente dos EUA que arbitrou o caso de Bolama entre Portugal e os Ingleses. Esta também foi para a sucata." (...)


(***) Último poste da série > 7 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23238: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (23): Bafatá... e as nossas "geografias emocionais"

(****) Vd. poste de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21747: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (80): busto do capitão Teixeira Pinto, em Bissau, c. 1943 (Armando Tavares da Silva)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22872: Notas de leitura (1405): "Descobrimento Primeiro da Guiné", por Diogo Gomes; Edições Colibri, Junho de 2002 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
A todos os títulos, a quem se interessa por este período da alvorada dos Descobrimentos Portugueses e do início da presença portuguesa na Guiné, é de recomendar esta obra que tem dois peritos com nome feito, Aires Nascimento e Henrique Pinto Rema, este sobejamente conhecido no blogue, pois fez-se largas referências ao seu incontornável livro sobre a História das missões católicas na Guiné. Diogo Gomes de Sintra, parece dado assente, narrou a Martim Behaim este espantoso relato, em tantos pontos coincidente com a descrição do projeto henriquino feito por Zurara. É uma narrativa com cunho muito próprio, fala-se das Canárias, Madeira e Açores, da Gâmbia, de Cantor, de Tombucutu e do Rio Geba. E parece também historicamente seguro que depois do massacre de Nuno Tristão e companheiros, o Infante D. Henrique e mais tarde o Infante D. Fernando e depois D. Afonso V curaram de usar uma política de diálogo e cooperação com as populações africanas. Com resultados assinaláveis, como se sabe, passou a prosperar o tráfico negreiro.

Um abraço do
Mário



Descobrimento Primeiro da Guiné, por Diogo Gomes de Sintra

Beja Santos

Diogo Gomes de Sintra faz obrigatoriamente parte da relação da literatura de viagens em torno da costa da Guiné, da Senegâmbia, entre outras paragens, já que na sua narrativa refere as ilhas da Madeira, dos Açores e das Canárias e mesmo o descobrimento do arquipélago de Cabo Verde. A edição crítica de Aires A. Nascimento e a introdução histórica de Henrique Pinto Rema enriquecem esta publicação a cargo da Edições Colibri, junho de 2002. Atenda-se ao que se escreve na contracapa: “Diogo Gomes de Sintra, almoxarife desta vila, é um dos homens da casa do Infante D. Henrique, por ele enviado em expedições de descobrimento. É o único navegador desse círculo a legar-nos apontamentos de memórias das navegações. A razão das suas notas envolve relações com Martin Behaim (da Boémia). Não tem sido pacífica a atribuição da autoria do texto que Diogo Gomes escreveu para o alemão e que nos ficou em testemunho do célebre Manuscrito Valentim Fernandes. (…) A nova edição, atendo-se aos critérios filológicos mais estritos, recupera na sua espontaneidade de testemunho escrito em latim para um estrangeiro, revelando particularidades menos atendidas anteriormente. Paralelo à Crónica da Guiné de Zurara, o texto de Diogo Gomes preserva o testemunho e as reações de um homem que tomou parte na aventura dos mares ocidentais”.

Oiçamos Pinto Rema:
“Estamos perante um dos primeiros textos dos Descobrimentos Portugueses. Mais tardio que a Crónica da Guiné de Zurara, e certamente sem a dimensão dela, constitui uma fonte histórica ímpar, pois nele a experiência conta mais do que o purismo da língua latina ou do que a retórica de gabinete. Enunciado o seu relato em primeira pessoa, Diogo Gomes de Sintra entrega-se na espontaneidade de quem não precisa de elaborar construções discursivas para deixar entender como vibra com a sua própria experiência”. Mais adiante, e sempre a propósito da autoria do texto, já que se cruzam os nomes de Diogo Gomes com Martim Behaim e Valentim Fernandes, observa ainda Pinto Rema: “Aduzem alguns autores que apenas Martim Behaim, e não Diogo Gomes, teria formação para escrever um texto em latim. Não parece que ao germânico se possam atribuir qualidades que faltassem ao sintrense”. Pinto Rema não tem quaisquer dúvidas de que a autoria da obra é de Diogo Gomes de Sintra, abonando a seu favor a expressão em primeira pessoa, os lusismos, impossíveis para autores estrangeiros, e a maneira como o autor se refere em eventos em que participou, para já não falar nas ligações ao Infante D. Henrique e a interpretação que faz das razões que levaram o Infante aos Descobrimentos. Ele foi testemunha ocular, reteve pormenores de iniludível valor: as trocas entre negros e portugueses na feitoria de Arguim; ouro proveniente de Tombucutu por troca; no Rio Grande ele próprio comprou seda, algodão, dentes de elefante e malagueta; no rio Gâmbia andou à procura de ouro em troca de tecidos e atingiu Cantor, que lhe deu informações sobre as caravanas de ouro. Exprime com clareza as razões que presidiam à ação do Infante, as comerciais, a procura de estabelecer relações com o Preste João, o estabelecimento de feitorias e a possibilidade de evangelização, ou seja, corrobora o que escreveu Zurara.

Passando ao conteúdo: ele principia pela conquista de Ceuta em 1415; refere as explorações marítimas de reconhecimento além do Cabo Bojador, e assim se chega à região da Costa da Guiné. Vale a pena dar de novo a palavra ao Padre Henrique Pinto Rema:
“Ao atual território da República da Guiné-Bissau, segundo a opinião geralmente aceite até há cinquenta anos, chega, em 1446, o navegador Nuno Tristão, que por segunda vez é mandado à Costa da Guiné. Os Sereres e os Barbacins receberam os cristãos com setas envenenadas, mataram-nos a todos e fizeram a caravela em pedaços. Anos depois, segundo recorda o autor, o rei Nomimans, isto é, o mansa (rei) de Nomi, presenteou Diogo Gomes com uma âncora da caravela destruída. O navegador gaba-se de ter sido o primeiro cristão que firmou com aqueles africanos um tratado de paz.
Segunda outra opinião, só em 1456 terá sido atingido o território da atual Guiné-Bissau. Nomeiam-se os mareantes italianos (ao serviço do Infante D. Henrique) Luís de Cadamosto, Antonioto Usodimare e escudeiros do Príncipe, em três caravelas, e Diogo Gomes, João Gonçalves Ribeiro e Nuno Fernandes da Baía, em outras três caravelas. Cumpriam ordens do Infante de avançar o máximo para o Sul. Diogo Gomes menciona o rio de S. Domingos, hoje com o nome de rio Cacheu, e o rio Fancaso ou Rio Grande, hoje com o nome de Rio Geba.
O relato de Diogo Gomes testemunha as tentativas de encontro pacífico dos portugueses com outras raças e religiões”
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O padre Rema lembra ainda que esta obra se insere numa série de textos que se completam e explicam mutuamente: a Crónica dos Feitos da Guiné, de Zurara, Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra, o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, o Itinerarium, de Jerónimo Munzer e a miscelânea do Códice Valentim Fernandes.

O texto de Diogo Gomes de Sintra é do estilo narrativa, abre com o plano henriquino e as viagens do seu tempo; usa um estilo muito pessoal, diz Ptolomeu se enganou acerca da divisão do mundo, os navegadores descobriram que era tudo diferente, havia terra habitada por negros e “então grande multidão de gente que custa a acreditar; a parte meridional está coberta de árvores e de frutos, ainda que os frutos sejam de natureza fora do comum e as árvores sejam de tal grossura e tão altas que não dá para crer. Sem mentir digo que vi uma grande parte do mundo, mas nunca vi coisa semelhante a esta”; refere as viagens de Nuno Tristão, como se navegou diretamente até Cabo Verde (ponto continental de África), até à região dos Sereres, onde foram trucidados; descreve a viagem em que chegaram à Guiné, passaram o rio de S. Domingos e o rio Grande, aqui se parou, “E não passámos além por causa das correntes de mar. E quando veio a maré vazante aconteceu-nos o mesmo que antes e assim tivemos que regressar aonde tínhamos saído. Tomámos terra num lugar perto da praia. Fomos ali e descobrimos uma terra espaçosa cheia de feno. Naquele campo, vimos mais de cinco mil miongas (espécie de antílopes) como se diz na língua dos negros, são animais um pouco maiores que veados. Ali vimos saírem de um pequeno rio, coberto de árvores, cinco elefantes. Descobrimos na praia do mar muitas tocas de crocodilos. E regressámos às naus”; seguem-se outros relatos, que envolvem a Gâmbia, Cantor, Tombucutu, Arguim; fala do eterno Infante D. Henrique e das expedições armadas ao tempo de D. Afonso V, com idas às Canárias, Açores e Madeira. Um relato deslumbrante, mais um documento precioso para estudar a alvorada da presença portuguesa na Costa da Guiné.

Costa da África e da Guiné até à ilha de São Tomé (Fernão Vaz Dourado, 1571) (ANTT, Lisboa).
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22861: Notas de leitura (1404): Joaquim Costa, "Memórias de guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina. Guiné: 1972/74", Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp. - Parte I: "E tudo isto, a guerra, para quê ? Não sei"...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21883: Historiografia da presença portuguesa em África (251): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Terá sido a grande polémica travada entre dois historiadores de gabarito a propósito do importantíssimo estudo feito por Teixeira da Mota sobre o descobrimento da Guiné, ele é um jovem que se entusiasma e mesmo deslumbra pela Guiné, procedeu a um estudo afincado com base em trabalhos historiográficos fidedignos, pondo termo a muita fantasia e esoterismo à volta dos empreendimentos henriquinos naquele ponto da costa ocidental africana, fazendo jus ao trabalho de Duarte Leite que pegou na cartografia, do seu cotejo se chegou ao conhecimento de que Nuno Tristão jamais pusera os pés na Guiné Portuguesa.
Não era só a reposição da verdade que estava em causa, a historiografia da Guiné dava um salto, o futuro colaborador de Sarmento Rodrigues lançará as bases do Museu da Guiné, do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e do Boletim Cultural. Graças a ele e à vontade política de Sarmento Rodrigues, a colónia, em termos culturais, era motivo de estudo, chegaram à Guiné jornalistas de mérito como Norberto Lopes, o grande geógrafo Orlando Ribeiro e outros. Abria-se a Guiné ao conhecimento científico, incluindo as potencialidades agrícolas. E tudo começara por umas comemorações onde a Ciê0cia foi deitando para o caixote do lixo as epopeias delirantes.

Um abraço do
Mário


A descoberta da Guiné, polémica violenta:
Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (2)

Mário Beja Santos

Após louvar a investigação de Teixeira da Mota e evidenciar o rigor usado para desmistificar a chegada de Nuno Tristão à Guiné, segue-se, com a maior contundência e com o maior número de bengaladas, as severas críticas de Vitorino Magalhães Godinho a certas apreciações e análises de Teixeira da Mota. Este escreveu que “As controvérsias henriquinas, que ameaçam perpetuar-se, acabarão, se continuarem no mesmo espírito que até aqui, por destroçar o mais glorioso período na nossa história, deixando no seu lugar o caos”. É a perfeita negação do cuidado até agora posto na análise de críticos que, comprovadamente, tinham posto termo a versões fantasiosas da descoberta da Guiné, caso de Duarte Leite, Armando Cortesão, Damião Peres, Jaime Cortesão, Veiga Simões e Magalhães Godinho. A que propósito é que as apreciações destes estavam a criar o caos? E dirige-se-lhe com verrina: “Teixeira da Mota acha bem discutir criticamente a data de uma viagem, o nome do descobridor de um cabo ou rio, os locais visitados pelo navegador. Mas o enquadramento destes factos, sem o qual de nada interessam, de nada valem, a sua integração em todas as condições da época e da evolução histórica, a sua compreensão como amplo movimento, devem ficar ao nível dos contos de fadas. Pois não se vê que não estamos de forma alguma em perigo de cair em confusão? Que, ao invés, se têm realizado progressos sólidos? Passou-se do simplista ao complexo, do material bruto à discriminação fina, trilharam-se com firmeza caminhos reveladores. É claro, já não há só o príncipe encantado, varinha de condão das navegações e conquistas: há também João Afonso e D. João I, D. Duarte e D. Pedro, e muitos outros; há as correntes de opinião (o Sr. Teixeira da Mota deve ser dos que anseiam por que nunca haja correntes de opinião), interesses de grupos, classes e indivíduos, há condições técnicas e condições financeiras; há, numa palavra, a realidade, multiforme e não esquemática, viva e não lendária. Mostrar que o Infante D. Henrique não é um príncipe lendário de influência omnipotente, mas sim um homem de carne e osso, cuja ação no seu tempo se define, não é rebaixá-lo, é, antes, pelo contrário, reconhecê-lo a sua verdadeira glória”.

E enumera os atos do Infante desde a tomada de Ceuta em 1415 até ao seu papel na colonização dos Açores. E depois dirige as suas tagantadas para a discussão do antagonismo de D. Pedro com D. Henrique, que Teixeira da Mota considerava uma diminuição de D. Henrique, e procede à análise das fontes que ajudam a compreender o comportamento de D. Pedro, que era manifestamente hostil ao cruzadismo no Norte de África, e foi um forte empreendedor dos Descobrimentos, e escreve: “Não temos quaisquer provas da vasta cultura científica de D. Henrique, nem de que tenha impulsionado os estudos científicos em Portugal, nem de que fosse animado de espírito científico; D. Pedro é o infante que percorreu a Flandres e a Itália e que escreveu "A Virtuosa Benfeitoria", e sob a sua regência e governo (oito anos) exploraram-se 198 léguas da costa africana, ao passo que nos doze anos seguintes se descobriram tão-só 94 léguas”. Magalhães Godinho, di-lo frontalmente que era absurda a tese de fazer de D. Henrique a causa única dos Descobrimentos, remete Teixeira da Mota para os trabalhos que ele desenvolvera nas suas investigações e chama-lhe leviano, deturpador do que ele escrevera: “Não há em meus escritos uma única frase onde eu pretenda apresentar o Infante D. Henrique dominado exclusivamente pelo espírito de Cruzada, pela mentalidade guerreira; muito ao invés, procurei sempre apresentá-lo como mais equilibrado do que aqueles que o apresentam só como cruzado ou só como sábio ou só como traficante". E era evidente a existência de uma mentalidade mercantil. “Em 1444 começaram as tentativas para firmar resgate pacífico no Rio do Ouro, e isto devido à iniciativa de Gomes Pires e de D. Pedro. Em 1447 tenta-se abrir trato à boa paz no Suz, por iniciativa de D. Henrique, mais ainda durante o governo de D. Pedro; neste mesmo ano, Valarte e Fernando Afonso são incumbidos por D. Pedro de estabelecer paz e comércio com o Bor-Mali e os Jalofos, Sereres e Barbacins; Diogo Gomes data o triunfo da política pacífica-mercantil de 1445 ou 1446”. Estes eventos escolhidos por Godinho revelam que o Infante D. Pedro em caso algum se opôs a trato comercial na costa ocidental africana.

A polémica muda de rumo, nestas discussões do confronto entre D. Pedro e D. Henrique, Teixeira da Mota teria sido levado a supor que existira um comprovado humanismo de D. Henrique, atendendo ao que escreveu Zurara, o Infante não queria ser defraudado no seu cunhão de escravos, e era uma treta completa dizer-se que havia uma grande preocupação com o tratamento dos escravos. Magalhães Godinho faz questão de destacar alguns autores que referem claramente os maus-tratos a que eram sujeitos os escravos no cativeiro, e mordazmente volta a criticar Teixeira da Mota: “Insurge-se contra o facto de os ingleses transportarem 50 mil escravos por ano de 1750 a 1780 e acha bem que os portugueses conseguissem mil anualmente de 1510 a 1520. É lamentável que ignore que os ingleses o faziam para salvar as almas dos pobres negros, portanto com a mesma boa intenção que animou os portugueses. Deveria lastimar, sim, que não fossem os portugueses a salvar tão numerosas almas… E quanto aos grilhões da Gorea, também os portugueses serviram deste processo tão cristão: Zurara diz que, posto que os corpos fiquem em prisão, as almas conquistarão eternal soltura e nas cartas de quitação do reinado de D. Manuel, há referência explícita às cadeias de prender escravos; o sofrimento na Terra é o melhor meio de alcançar o Céu. Teixeira da Mota não viu o bondoso papel que desempenharam holandeses e franceses, impondo grilhões para os indígenas conquistarem a bem-aventurança”.

Segue-se outro tipo de bengalada, a essência da historiografia moderna, Godinho é professoral: “A historiografia de base sociológica, porque científica, exclui o arbitrário da generalização, não a generalização nem as hipóteses de trabalho. Um conselho, bem modesto, ao Sr. Teixeira da Mota: estude primeiro Sociologia; estude a História como a constroem os mestres. Depois, fale de historiografia sociológica. Em suma: Teixeira da Mota encontra-se numa encruzilhada. Um dos caminhos, é o da História séria; o outro é o do delírio, da retórica, da mistificação. No primeiro, seguirá Herculano, Oliveira Martins, Alberto de Sampaio, o Conde de Ficalho, Gama Barros, Pedro de Azevedo, Costa Lobo, Duarte Leite, Jaime Cortesão, Armando Cortesão; no segundo, acompanhará… nem vale a pena dizer os nomes”.
Convém recordar ao leitor que a historiografia neste ano de 1945 dava passos importantíssimos para repor o estudo da Guiné, e do seu descobrimento em bases rigorosas. Como aqui já se deixou referido, o Padre Dias Dinis produzira prosa que Vitorino Magalhães Godinho aproveita a oportunidade desta coça dada por Teixeira da Mota para pôr a nu erros graves da apreciação que Dias Dinis faz da documentação, e momentos há que não se coíbe da mordacidade para reduzir os argumentos de Dias Dinis à completa insignificância, deste modo:
“Dias Dinis convida os pretos a associarem-se às comemorações, admoestando-os: ‘Os indígenas redimem assim pecados velhos. O Portugal de sempre, ancião venerando, amigo e indulgente, lança-lhe gostosamente a absolvição neste Ano Jubilar’. Os pecados velhos dos negros da Guiné são a morte de Nuno Tristão e de outros portugueses! Mas então não foram os portugueses que os foram inquietar a suas casas e assaltar? E que culpa têm os pretos de hoje pelo que fizeram seus antepassados, para necessitarem de absolvição? Então a responsabilidade criminal é hereditária? A morte de Nuno Tristão constitui novo pecado original para os guineenses?”

De pena acerada, Magalhães Godinho veio polemizar com Teixeira da Mota, facto é que estes dois historiadores de grande envergadura souberam conviver e partilhar da admiração mútua, como se justificava.

Como é evidente, em próxima oportunidade aqui se irá recapitular a tese inovadora de Teixeira da Mota sobre a descoberta da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21845: Historiografia da presença portuguesa em África (250): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21845: Historiografia da presença portuguesa em África (250): A descoberta da Guiné, polémica violenta: Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Em torno das Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, em 1946, a historiografia deu um importante salto com o estudo publicado por Teixeira da Mota desmontando ingenuidades e fantasias.
Aquele que terá sido o mais influente historiador português do século XX, Vitorino Magalhães Godinho, veio a público para o aplaudir e zurzir com inusitada violência. Foi polémica que não ficou nos anéis, até por serem dois historiadores que faziam da probidade ofício não fizeram como os medíocres, nestas coisas e noutras entram na hostilidade persecutória. Aqui se usam, para dar contexto, referências de um estudioso Teixeira da Mota, o oficial da Armada Carlos Valentim e a introdução de Vitorino Magalhães Godinho, que contextualiza admiravelmente os saltos gigantescos que deu a historiografia dos Descobrimentos depois de séculos de mitologia e ignorância das fontes.

Um abraço do
Mário


A descoberta da Guiné, polémica violenta:
Vitorino Magalhães Godinho versus Avelino Teixeira da Mota (1)


Mário Beja Santos

Escrito em 1946, ano das Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, o ensaio altamente contundente do historiador Magalhães Godinho a propósito do trabalho ainda não completamente publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e assinado por Teixeira da Mota, foi mais uma das peças de grande importância na renovada historiografia portuguesa do período dos Descobrimentos henriquinos. Segundo Carlos Valentim, oficial da Armada que publicou a bibliografia de Teixeira da Mota, "O Trabalho de Uma Vida", Edições Culturais da Marinha, 2007, há quatro obras relevantes de Teixeira da Mota que contribuíram para essa renovação historiográfica: "A Descoberta da Guiné", com a data de 1946; "A Arte de Navegar no Mediterrâneo nos Séculos XIII-XVII e a criação da Navegação Astronómica no Atlântico e Índico, em 1957"; "A Viagem de Bartolomeu Dias e as Ideias Geopolíticas de D. João II", em 1958; "A Escola de Sagres", em 1960. Teixeira da Mota fez parte do escasso número de historiadores que contribuiu para imprimir ciência no estudo dos Descobrimentos Portugueses, pondo termo a fantasias, mitologias bacocas, puras conjeturas. Não foi o primeiro, mas pertenceu ao naipe engrossado por Jaime e Armando Cortesão, Damião Peres, Duarte Leite e Vitorino Magalhães Godinho.
Vitorino Magalhães Godinho

A descoberta da Guiné correspondeu à primeira comemoração depois da II Guerra Mundial. Numa nota de caráter pessoal expedida por Teixeira da Mota para o Governador da Guiné, e que esteve inédita até 1972, ano em que se publicou o seu importante "Mar, Além Mar", edição da Junta de Investigações do Ultramar, ele faz questão de desmontar um sem-número de fantasias acerca das expedições henriquinas e desvela da impossibilidade de Nuno Tristão ter chegado a território da então Guiné Portuguesa, a sua morte teria ocorrido no rio Gâmbia. Um estudioso, mas pouco dotado para a investigação rigorosa, o Pe. Dias Dinis, defendia intransigentemente as comemorações do centenário guineense naquele ano de 1946, socorria-se como fonte principal da "Crónica dos Feitos da Guiné", de Zurara, da Ásia de João de Barros e de alguns estudos de Armando Cortesão. Este padre missionário criticava os trabalhos de Duarte Leite e Damião Peres que contestavam fortemente a tese que atribuía a Nuno Tristão o descobrimento da Guiné em 1446. E Carlos Valentim observa: “Duarte Leite valia-se da cartografia e dissecava as fontes, uma a uma, utilizando a análise crítica como fulcro da sua metodologia. As conclusões eram dramáticas. De repente, todo o edifício de propaganda do Estado Novo ficava em perigo de ruir, por se ter verificado um anacronismo na descoberta da Guiné Portuguesa. Seria possível festejar acontecimentos com duvidosa cronologia?”. O ensaio de espírito completamente inovador de Teixeira da Mota introduzia esclarecimentos ainda hoje incontestados. A este trabalho iremos posteriormente fazer a competente referência.

Avelino Teixeira da Mota
Em jeito de síntese, Teixeira da Mota analisa os elementos de caráter náutico-geográfico, na linha das propostas de Jaime Cortesão e corteja-os com a cartografia e toma sempre como referência os elementos etnográficos. Devolve-se de novo a palavra a Carlos Valentim: “No espaço de um século, a Guiné Portuguesa encontra-se no centro de fatores que desencadeiam o progresso historiográfico, em duas situações muito idênticas, em dois momentos muito próprios, onde se mistura política e memória, ideologia e identidade. Primeiro, em 1841, com o Visconde de Santarém, o fundador dos estudos de cartografia antiga, que edita a Crónica da Guiné, de Zurara, descoberto em 1837, na Biblioteca Nacional de França. O segundo momento de inovação, situando-se novamente a Guiné no centro do debate historiográfico, surge um século depois, com Teixeira da Mota, numa época de forte combate ideológico e político”. E vamos à polémica de Magalhães Godinho. Ele enceta o seu trabalho observando a pobreza de fontes históricas sobre os Descobrimentos henriquinos, na generalidade construções tardias. E numa lenta caminhada, começaram as revelações, primeiro o Visconde de Carreira e o Visconde de Santarém que publicaram em 1841 a Crónica da Guiné, de Zurara; em 1845-47, Schmeller dava a conhecer a narrativa das viagens redigida por Martin von Behaim sobre conversas com o navegador Diogo Gomes. Diferentes autores ingleses interessaram-se pelos Descobrimentos, mas limitando-se quase a contar por palavras suas o que parecia ser verdade axiomática. Surgiu depois o Esmeraldo de Duarte Pacheco; em 1924, Jaime Cortesão apresentava um estudo sobre a política de sigilo nos Descobrimentos, fantasiou hipóteses, aventando que as fontes escritas ocultavam grande parte da obra de D. Henrique. O cartógrafo Armando Cortesão publicou em 1931 a cronologia das viagens até 1462 fazendo identificações do rio Grande com o Geba, por exemplo. Aquilo que eram certezas, com base nestes trabalhos recentes, merecia um novo olhar. A figura-chave será Duarte Leite, que criticará as hipóteses de Jaime Cortesão sobre a política de sigilo e sacudiu de cima a baixo a obra de Zurara. Como escreve Vitorino Magalhães Godinho: “Zurara, até aí unanimemente considerado fiel e bem informado cronista das navegações, é reduzido à sua verdadeira craveira de literato de saber restrito e de segunda mão, de pouco cuidadoso relator, de homem com fraca curiosidade geográfica e náutica; a sua crónica deixa de ser indiscutível evangelho, para nela se notarem erros, contradições e outros defeitos”. Segue-se Damião Peres, o próprio Magalhães Godinho e Teixeira da Mota.

Godinho ridiculariza os esforços para consagrar Nuno Tristão como o primeiro a chegar à Guiné Portuguesa. Elogia Teixeira da Mota e o seu trabalho: “Foi-lhe de grande proveito o conhecimento direto do litoral e das gentes da Guiné, bem como a possibilidade de obter informações complementares de outros conhecedores das línguas indígenas e da região. Conseguiu Teixeira da Mota confirmar algumas das conclusões da investigação anterior e corrigir outras (…) Note-se que o autor não discute qualquer questão de cronologia, aceita, como Peres e nós fizemos, a estabelecida por Armando Cortesão e Duarte Leite. Seguiu Teixeira da Mota o modelo por nós lançado em Documentos sobre a Expansão. A longa e minuciosa discussão do problema por Teixeira da Mota confirma La Roncière e Duarte Leite: Nuno Tristão não ultrapassou a Gâmbia para o Sul, a sua morte não ocorreu no rio Geba, muito menos no rio de Nuno”. E adita os argumentos expendidos por Teixeira da Mota, de irrefutável clarividência. Fala-se da viagem de Álvaro Fernandes, também em 1446, havia acordo que o navegador visitou o rio Casamansa, tendo chegado à enseada que começa no Cabo Roxo. Mais adiante, falando da viagem de Valarte e de Fernando Afonso em 1447, Godinho apoia a hipótese da captura de Valarte no rio Gâmbia, estabelece-se aqui uma discussão de pormenor sobre os reis na região de Cabo Verde (não esquecer que estamos a falar de território continental), e apoia igualmente dados expendidos por Teixeira da Mota acerca da localização da povoação dos Bambaras. Termina os seus comentários elogiosos e inflete para uma tremenda zurzidela de Teixeira da Mota, vale a pena ver com cuidado a argumentação expendida, é por vezes de uma violência extraordinária a adjetivação usada. E talvez o ponto mais importante seja registar que após toda esta sessão de bengaladas, a admiração mútua jamais esmoreceu. É assim entre gente que cuida com estrénuo rigor a verdade dos factos.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21815: Historiografia da presença portuguesa em África (249): Da Senegâmbia à Serra Leoa, pela mão de Suzanne Daveau (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) com data de 24 de Abril de 2020:


Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal

A condição de reformado fez-me cliente assíduo (ou rato) de arquivos e bibliotecas, e, graças ao longo tempo em que me enfronhei no “Portugaliae Monumenta Historica” (5 grossos volumes), cheguei à conclusão de que D. Afonso Henriques foi o primeiro “capitão de Abril” da nossa História, ao ter escolhido esse mês para organizar e comandar a revolta do nascimento de Portugal.

Começou por se tornar soldado, ao auto-armar-se cavaleiro, “como os reis”, tomando em sua mão a espada e ungindo o seu bico com sangue do corte no seu pescoço e não com sangue do corte dos seus testículos, como era próprio dos dependentes; a culminar dois anos de reuniões conspirativas e como líder, no dia 5 (seria no dia 25?) de Abril de 1127, trocou a malta de Coimbra pela malta do Norte, “furtou” os castelos do Neiva e de Faria, “para fazer guerra à mãe” e fundar a nossa Nacionalidade.

Nuno Tristão
A Guiné que nos é tão cara, mátria de um lugar de memórias, que a História já regista no blogue LG&C, foi descoberta por Nuno Tristão, em meados de Abril de 1446, mas África a sul do Sahara já não era virgem de portugueses: parte da sua malta já havia andado a “inventar” o mulato pelas suas praias e ele pagou com a vida a sua ida para o mato nessa então Guinela.

No descobrimento do Brasil e Novo Mundo (a América), por Pedro Álvares Cabral, em finais de Abril de 1550, dois grumetes da sua malta navegante aproveitaram a ida à missa campal de Acção de Graças para desertar para o mato – são os primeiros “cara” da “invenção” do mestiço.

O rei de Portugal por uma semana, D. Pedro IV, em Abril de 1826, explicitou e outorgou a Carta Constituição da Monarquia Portuguesa, a nossa primeira Constituição abrilista e a nossa segunda Constituição vintista.

D. Maria II, a brasileira nossa rainha, em Abril de 1838, jurou a nossa segunda Constituição abrilista e 3.ª Constituição da Monarquia Portuguesa.

A redacção da 1.ª Constituição Política da República, a nossa 3.ª Constituição abrilista e a 4.ª de Portugal, foi iniciada em Abril de 1911.

A “Operação Georgette" do exército alemão, desencadeada em Abril de 1918, derrotou na Flandres francesa o Corpo Expedicionário Português, sob a dependência do comando inglês, - a Batalha de La Lys. Em 22 dias de combates, os soldados portugueses sofreram quase tantas baixas como as sofridas nos 13 anos da Guerra do Ultramar do nosso tempo.

(Foi na 1.ª Grande Guerra. Se Portugal não tivesse entrado, o seu Ultramar seria perdido para a Alemanha ou Inglaterra, mas a nossa geração teria sido poupada à sua guerra, desencadeada em 1961). A Constituição Política da República Portuguesa, explicitada pelo Estado Novo, que nos fará conhecer a geografia da Guiné e andar durante dois anos aos tiros e a bombardear as suas matas e bolanhas, entrou em vigor em 11 de Abril de 1933, sendo a nossa 4.ª Constituição abrilista.


Adiante, adiante, a dar lugar a memórias do nosso tempo.

O guineense Amílcar Cabral, jovem eng.º agrónomo, benfiquista ferrenho e putativo génio inspirador e o motor da liquidação do Império português, em carta de Abril de 1950 à sua namorada, a colega flaviense Maria Helena, opinava essa Constituição como “dos mais belos documentos da igualdade dos homens (…) com práticas diametralmente opostas”.

Salazar esconjurou o golpe palaciano de 11 de Abril de 1961, a abrilada da sua demissão, da autoria do seu ministro da Defesa, General Botelho Moniz, não obstante apoiado pelo seu ex-PR General Craveiro Lopes e inspirado pela embaixada dos Estados Unidos; outra oportunidade que nos teria livrado de dar com os costados na Guerra da Guiné.

O nosso conhecido navio Niassa zarpa de Lisboa, em 21 de Abril desse ano, carregando o primeiro contingente de tropas – a decisão de Salazar, de “rapidamente e em força para Angola”, que assumira o ministério da Defesa.

A 4.ª Comissão Especial entrou e andou clandestinamente no sul da Guiné, entre 1 e 8 de Abril de 1972, chegou a Cubacaré e conseguiu dependurar a bandeira da ONU no galho duma árvore.

José Medeiros Ferreira
Em Aveiro, realizou-se nos princípios de Abril de 1973 o 3.º Congresso da Oposição Democrática, com o beneplácito da lei e a presença de alguns oficiais da Marinha e do Exército, putativos “capitães de Abril”, a primeira reunião pública em que foi publicamente advogado o início das conversações, pelo fim das guerras do Ultramar. A mudança de regime à mão armada não foi abordada e a tese do socialista Medeiros Ferreira (lida pela sua mulher, pela sua situação de desertor) de Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, foi ruidosamente contestada pelas correntes de opinião revolucionárias, marxista e maoísta.

Na esteira desse congresso, em 14 de Abril desse ano, um grupo de ex-oficiais milicianos, evocando que “não seriam a geração da traição”, anunciou a organização do I Congresso dos Combatentes, a realizar em princípios de Junho, livre de antagonismos e de facções, a sua comissão executiva central era formada por três oficiais deficientes da Guerra do Ultramar e o seu Presidente da Mesa será o General Reformado António Augusto dos Santos, a pedido do ministro da Defesa.
A reunião da malta do QP, no Agrupamento de Transmissões da Guiné, resultou na contestação de 51 oficiais à motivação e ao conteúdo do Congresso dos Combatentes, o oficial guineense Marcelino da Mata e o oficial cabo-verdiano Rebordão de Brito, condecorados com a “Torre Espada”, foram os subscritores do telegrama de repúdio, o General Spínola proibiu a representação da Guiné e o Ministro da Defesa proibiu aos militares do QP da sua representação. Pouco depois e cavalgando a onda das reacções corporativas da classe dos Capitães aos Decretos-Lei n.º 353 e 373/73, “do Curso de Promoção a Capitães Milicianos”, os então Majores Ramalho Eanes e Carlos Fabião, prós e o Capitão Vasco Lourenço, fogoso anti-spinolista, recolheram centenas de assinaturas de contestação e de requerimentos de demissão de Capitães do QP.
A comissão executiva lisboeta do Congresso dos Combatentes correspondeu à turbulência criada pelos prós e contras ou pela direita e a esquerda com a demissão, o Dr. José Vieira de Carvalho, ex-alferes miliciano combatente, presidente da sua comissão no Norte e Presidente da Câmara Municipal da Maia agarrou a sua organização e dinamização, a dar nas vistas com os “rateres” do escape e com o amarelo-torrado do seu Renault 5 – a novidade automobilística na altura – mas demitiu-se, ao chegar a hora.

Gen António de Spínola
O General Spínola reuniu em Bissau cerca de 400 oficiais do mato, em 16 de Abril de 1973, para lhes dar directivas e lhes anunciar o “fim da guerra” da Guiné, convicto da situação de fraqueza do PAIGC, confiante no êxito dos três Majores na negociação da rendição premiada dos seus bi-grupos no Chão Manjaco e optimista quanto ao efeito dominó dessa rendição nos combatentes das regiões Leste e Sul.
O Capitão Vasco Lourenço, comandante da quadrícula de Cuntima, criticou essa sua táctica e estratégica com tal veemência, que ele o tomou de ponta.
De facto, o PAIGC aproveitou-se do contexto da trégua para essas reuniões no Chão Manjaco para reabastecer os seus combatentes na região Norte, e, em 20 de Abril, correspondeu ao dia D dessa manobra com o assassinato desses três Majores negociadores e dos seus quatro acompanhantes.

Duas semanas depois da reunião de Bissau, o General Spínola aterrou na tabanca de Cuntima, em visita de inspecção ao comando do Capitão Vasco Lourenço e à sua CCaç 2549, pegou-lhe por tudo e por nada, ameaçou-o com a transferência para Jolmete, a fazer a aprendizagem de comando com o seu capitão miliciano e mandou distribuir uma circular pelas unidades, a divulgar o seu relatório acerca da inaptidão do Comandante da Companhia de Cuntima.

A companhia a nomadizar em Jolmete era comandada pelo transmontano António Carlos Almendra, alferes miliciano graduado em capitão, ora Coronel na reforma, merecedor de 15 louvores e de 10 condecorações, então camarada do camarada e tabanqueiro Manuel Resende. Diz-se que durante os 18 meses do exercício desse comando, ele fora sempre abonado do soldo de alferes e que a diferença para o soldo capitão terá saído do próprio bolso do General Spínola.

Mas o General Spínola e o Capitão Vasco Lourenço não se ficaram por aqui.

O I Congresso dos Combatentes, mais ou menos nacionalista, decorrerá de 1 a 3 de Junho de 1973, no auge das violentas batalhas dos 3 G´s – Guidaje, Guileje e Gadamael -, travadas pelas reservas de infantaria e pela parafernália da artilharia de última geração do PAIGC, planeadas e comandadas por oficiais do exército regular cubano, que nos custaram 63 mortos e 269 feridos militares, 15 mortes e 18 feridos civis e 6 aviões abatidos – 4 DO e T6 de pistão e 2 Fiat G 21 de propulsão.

O Tenente-Coronel, Comandante do Agrupamento de Transmissões da Guiné e anfitrião da reunião anti-Congresso dos Combatentes irá hospedar-se no Palácio da Praça do Império, e sentar-se na cadeira que fora do General Bettencourt Rodrigues, alçado pelo “golpe de Bissau”, em 26 de Abril de 1974, e o COPCON lisboeta catrafilará o Dr. Vieira de Carvalho no Forte de Caxias, durante 9 meses, sob ameaças de fuzilamento, acusado do delito de organizador desse Congresso e como fundador e dirigente do Partido do Progresso.

O I Congresso dos Combates funcionou de embrião ao MFA, Movimento das Forças Armadas, acontecera o advento da revolta do 25 de Abril e o Capitão Vasco Lourenço como o seu profeta.

(Continua)
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Nota o editor

Último poste da série de 23 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20893: 16 anos a blogar (3): o obus de Bambadinca (foto do Frederico Amorim, autor da página "Mundo do Fred", 26/4/1997)