quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21815: Historiografia da presença portuguesa em África (249): Da Senegâmbia à Serra Leoa, pela mão de Suzanne Daveau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Do marido de Suzanne Daveau, Orlando Ribeiro, ficaram-nos os admiráveis cadernos de campo da sua viagem à Guiné em 1947, foi em missão de geografia, recolheu fotografias espantosas, reveladoras do seu humanismo, da sua capacidade de observação, desde a construção de taludes em arrozais, passando pela diversidade de habitações até imagens da integração do ser humano na paisagem.
Suzanne Daveau, dentro desta coletânea, procede a uma síntese das primeiras descrições geográficas portuguesas, é uma leitura estimulante para um melhor conhecimento da história da geografia tal como a praticaram os portugueses no longo e galvanizante processo de avanço para o Sul, com a importantíssima chegada aos rios Senegal e Gâmbia, abriam-se assim as portas para o comércio um pouco no Interior; as viagens continuavam impetuosas mais para o Sul, a Serra Leoa passou a ser um local de resgate fundamental, a tal ponto que naquele período do século XIX em que ninguém sabia quais as fronteiras e limites da Senegâmbia Portuguesa, se sonhava com a capital em Bolama, pois dali se chegava mais rapidamente à Serra Leoa, é esse um dos temas para estudar que a insigne geógrafa Suzanne Daveau põe à consideração dos investigadores.

Um abraço do
Mário


Da Senegâmbia à Serra Leoa, pela mão de Suzanne Daveau

Mário Beja Santos

A descoberta da África ocidental. Ambiente natural e sociedades, por Suzanne Daveau, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, é uma coletânea de escritos de uma geógrafa francesa que viveu na África ocidental e ensinou na Universidade de Dacar. Casada com o geógrafo Orlando Ribeiro, instalou-se em Portugal em 1965, foi professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Deixou obra vastíssima nos domínios da geomorfologia, climatologia e geografia histórica, entre outros. Esta obra recolhe estudos escritos entre 1963 e 1993. Um deles, intitulado “A organização do espaço de Arguim à Serra Leoa na segunda metade do século XV e a sua progressiva descoberta pelos portugueses”, datado de 1989, é uma síntese admirável e lança desafios a temas para estudar, alguns deles que continuam à procura de resposta.

Começa por recordar quais as relevantes descrições geográficas portuguesas do século XV: A Crónica da Guiné, de Zurara (escrita cerca de 1453-60, que cobre as viagens realizadas até 1448 e que já ultrapassava o Cabo Verde); as Viagens de Cá Da Mosto (e de Pedro de Sintra), acabadas de escrever depois de 1463 e outras referentes a viagens que se realizaram até 1462, à Serra Leoa. Há ainda que ter em conta o Manuscrito Valentim Fernandes, o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira e a Primeira Década da Ásia, de João de Barros, que insere a descrição dos rios Senegal e Gâmbia. A geógrafa recorda que o progressivo conhecimento do Litoral durante muitos anos se conhecia só o litoral baixo e arenoso do deserto do Sara (os Azenegues), que fugiam espavoridos quando as caravelas apareciam no mar. Viajando sempre para o Sul, chegou-se a um litoral coberto de árvores, verdes durante todo o ano, daí a designação do Cabo Verde, os homens mudam, tanto pela cor como pelo comportamento, já não fogem, tomam uma atitude defensiva ou até belicosa. Isto para significar que a África à medida que se torna de aparência mais fértil, vai repelindo com mais força a penetração dos navegadores cristãos. A chegada ao rio Senegal empolga os navegadores, há quem pense que se chegou ao Nilo ou a um braço dele. O rio Senegal, escreve Cá Da Mosto, separa os negros dos pardos, chamados Azenegues; e separa também a terra seca e árida, que é o sobredito deserto, da terra fértil, que é o país dos negros. Duarte Pacheco Pereira pensa que se chegou à Etiópia. E João de Barros revela entusiasmo: “Este rio Senegal pela divisão nossa é o que aparta a terra dos Mouros dos Negros, posto que ao longo de suas águas todos são mestiços, em cor, vida e costumes, por razão da cópula que segundo o costume dos Mouros, toda mulher aceitam. Pero quanto à qualidade da terra, parece que a natureza lançou aquele rio entre ambas, como marco de divisão […]. Por razão do qual rio a terra mais povoada é a que jaz ao longo dele, onde há algumas cidades”. Também o rio Gâmbia ganhara importância para os navegadores, mas unicamente no plano político. Escreve a geógrafa que irá fixar a fronteira entre as terras sujeitas ao Reino Jalofo e as que dependem do império do Mali. Valentim Fernandes dirá que é no rio Gâmbia (ou rio de Cantor) que começa o reino de Mandinga, por este rio entram muitos navios, resgatam-se cavalos, e há grandes diferenças entre os Mandingas e os Jalofos.

A geógrafa discreteia sobre as diferenças dos rios Senegal e Gâmbia e como ambos foram observados pelos primeiros navegadores. A penetração comercial que os portugueses e estrangeiros associados procuravam realizou-se ao longo dos itinerários comerciais então existentes. Mas havia razões fundamentadas para querer navegar para o interior até ao sertão, pretendia-se comercializar o ouro, pensando-se que havia uma ligação oeste-leste do Senegal com o sistema Níger/Nilo. E dá-nos um quadro da organização das redes fluviais.

Passando para os povos, para os seus usos e organização social, a autora não deixa de notar que a visão dos povos africanos que estes relatos inserem é unilateral, a despeito de um enorme esforço para entender as sociedades africanas, vêm ao de cima os preconceitos relativos às capacidades intelectuais dos negros. Estes relatos também falam da superioridade técnica dos europeus e da admiração que os negros sentiam pelas armas, bestas e bombardas, mas nunca se escondendo que os europeus sentiam pavor pelas flechas envenenadas. O reconhecimento do poderoso império do Mali foi-se precisando, sobretudo a partir do momento em que os contatos se estabeleceram através do rio Gâmbia. O Mali que os portugueses irão encontrar terá cada vez menos capacidade de organização comercial se bem que tenha conseguido ainda adaptar-se, em parte, às novas condições de exportação. Dado importante é de que todos estes relatos e a generalidade das relações comerciais se irão estabelecer na região da orla, o conhecimento do sertão ficará vago e pouco seguro. Vários autores irão repetindo a lenda da abundância do ouro, demorará muito tempo a perceber que esta produção artesanal de ouro era dispersa e não muito produtiva.

Veja-se agora o que a autora considerava temas para estudar (em 1989). Em primeiro lugar, reconhece a delicadeza do tema das expedições árabes, a partir do século XI e as do século XIV, mais pormenorizadas, pode-se pôr em dúvida a fiabilidade do traçado da rede hidrográfica, da demarcação da terra dos brancos e dos negros ou mesmo do comércio e do ouro. Há, evidentemente, de ter em conta os relatos dos navegadores europeus quanto às dimensões das embarcações africanas. Em segundo lugar, sabendo-se que no final do século XVI e no século XVII, será a Serra Leoa que irá concentrar as atenções dos portugueses, haverá que estudar qual terá sido a verdadeira dimensão da concorrência de outros europeus no litoral setentrional; em terceiro lugar, há que atender que nas últimas décadas do século XV, quando os portugueses entraram em contato com as riquezas do Oceano Índico, as “velhas navegações da África Ocidental inseriram-se em novos circuitos comerciais, sobretudo apoiados nos portos do litoral norte do golfo da Guiné, importa investigar para saber mais. E finaliza: “O ritmo da descoberta inicial de novas terras pelos europeus está muito longe de ser o único tema digno de interessar os historiadores. O ritmo e as sucessivas modalidades da implantação dos colonizadores nas sociedades locais e das recíprocas influências sofridas são temas que merecem também toda a atenção dos estudiosos”.

Suzanne Daveau e o marido, o geógrafo Orlando Ribeiro

Brasão de armas de Fernão Gomes da Mina, o primeiro arrendatário da Guiné

Mulheres em pirogas no Parque Natural dos Tarrafes no rio Cacheu. Foto retirada de Caderno dos Conhecimentos, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21786: Historiografia da presença portuguesa em África (248): "Senegâmbia Portuguesa ou Notas Descritivas das Diferentes Tribos que Habitam a Senegâmbia Meridional", por Luís Frederico de Barros; Tipografia Editora de Matos Moreira & C.ª, 1878 (Mário Beja Santos)

3 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Atenção ao brasão!
Tem uma cabeça de preta como timbre e mais três no campo de prata (parece-me).
E depois venham-me dizer que aquela da escravatura e "das pretas" é treta...
A alusão à escravatura, como prática corrente, e submissão dos negros, neste caso das negras é evidente e, se se assume como símbolo heráldico, então as coisas poderão e irão complicar-se, mais tarde...

Um Ab.
António J. P. Costa

carlosbarros disse...

Bom dia , estimado amigo: Tive conversas com o Elias, ex-furriel Miliciano Mecânico Auto de Nova Sintra-1972-74-"Os Mais"- sobre a "canoa" e confirmam-se os dados do meu último depoimento.
Em síntese a canoa, ainda em bom estado de conservação, foi encontrada abandonada ,em 1973, num local designado Tabanca Velha, a caminho do cais de Lala-Nova Sintra, pelos mecânicos da companhia, num momento de diversão- Uns mergulhos no rio Geba-Bolanha e o furriel Elias Pereira é o que está na proa da referida canoa. O local, Tabanca Velha, era seguro sem atividade do PAIGC. Era habitual essas idas à Tabanca Velha embora, algumas vezes, à rebelia do Comandante....Era o fervor da juventude...

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Volto à antena para informar que "as cabeças de negro representam-se de perfil e são de cor negra. São, por vezes, cobertas com fota - uma espécie de toucado de pano, torcido, atado atrás e com as pontas pendentes. Assim se dizem fotadas ou tocadas de tal cor. Podem ser coroadas".
Por esta descrição podem interpretar melhor o brasão e não se esqueçam de que os brasões "falam".
As cabeças representam-se à sua cor natural e de perfil ou de frente. Neste caso a cabeça está a 3/4 para a destra que a posição habitual dos elmos.
Devemos estar perante e representação de uma rainha negra, digo eu e fico à espera de alguém que diga o contrário...

Um Ab.
António J. P. Costa