Queridos amigos,
Aproxima-se o final da estadia em Óbidos, surge inevitavelmente esta sensação de pesar, por haver tanta coisa que fica por ver, em Óbidos e arredores. Hoje é dia de reverenciar uma das nossas artistas maiores, Josefa d'Óbidos, procurar visitar a preceito o Museu Municipal, uma instalação cultural magnífica, andar por igrejas, rever livrarias, passear pela cerca do castelo, registar o que estas ruas mostram de boa conservação, toda a vila tem um chamamento a civilizações pretéritas, vale a pena percorrer os jardins e até perceber porque é que a UNESCO atribuiu a Óbidos o título de Cidade da Literatura.
Um abraço do
Mário
Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4):
Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa
Mário Beja Santos
Começo o dia na Igreja de Santa Maria, chegou o momento de reverenciar Josefa d’Óbidos, nada melhor que pegar no historiador de Arte Vítor Serrão, alto especialista no Maneirismo, e citar o seu trabalho publicado pela Quetzal Editores em 2003: “É a nossa mais conhecida artista barroca, e o testemunho mais vivo, em tonalidades regionais, de uma cultura de retórica imagética, de simbologia decorativa e de requintada elevação sensual que, aliadas a uma espiritualidade tridentina, a situam no mesmo mundo de referência de um Padre António Vieira na oratória messiânica, de um Dom Francisco Manuel de Melo nas exaltantes narrativas literárias desse ‘tempo escuro’ de bloqueio nacional, de uma Soror Maria do Céu na sua poesia feita de arrebatamentos místicos, ou de uma Soror Mariana Alcoforado na sua amorosa epistolografia paraerótica. Os quadros de Josefa respiram o mesmo sabor: falam da religião, e falam com Deus, como se se tratasse de coisas simples e a todos acessíveis, estimulam os saberes da vista e adoçam os sabores do olfato, dialogam com os frutos dos pomares, as flores silvestres, os rebanhos de ovelhas e as vacas em pastorícia, com a água das fontes, a humidade da terra arada, a bravura dos ventos marinhos, em suma, com todos os elementos naturais, assim simplificando nessa visão bucólica as complexas vias artísticas da alegoria moral (…) Foi autora de adoçados Cordeiros Pascais em cartelas de flores e de ingénuos Meninos Jesus ora nus, ora vestidos de tule e rendas, ora ataviados como fidalgos de província ou amoráveis peregrinos, que faziam as delícias de uma clientela beata doméstica ou monacal; foi criadora de numerosas naturezas-mortas de aparato efeito cenográfico na representação de barros, frutos e flores, género que lhe conferirá o grau mais afirmado de originalidade; foi autora, por certo irregular, de pintura religiosa para ciclos decorativos ou retábulos de altar; foi executante de miniaturas de cobre onde a expressão do desenho e o sabor das composições se aprimoram…”. Enfim, um dos nomes consagrados das Artes Plásticas em Portugal no século XVII.
Entrei na Igreja de Santa Maria também com outro livro na mão, já referido, Linha do Oeste, coordenação de Benedita Pestana, Assírio & Alvim, 1998. É que além de Josefa d’Óbidos a Igreja de Santa Maria reserva outras surpresas. O interior da Igreja está ricamente revestido com azulejos seiscentistas, tem peças de Arte extraordinárias como seja o retábulo maneirista da capela-mor e o magnífico túmulo renascentista de D. João de Noronha e D. Isabel de Sousa, figuras nobres que se destacaram pela sua ação mecenática. Se o nome de D. João de Noronha está ligado à construção do Paço dos Alcaides no castelo, o de D. Isabel de Sousa está intimamente relacionado com a encomenda do seu próprio túmulo e do seu marido. Construído em pedra calcária de Ançã, o jazigo apresenta um arco de volta perfeita, ladeado por plintos e respetivas pilastras decoradas com motivos ao romano, encimadas por estátuas de profetas, cobertas por baldaquinos. A coroar toda a composição, encontramos uma representação da Assunção da Virgem e de Deus-Pai abençoando. Não se conhece o autor desta maravilha, há quem o atribua a Nicolau Chanterene, pela semelhança estilística com outras obras suas realizadas entre nós. O mais importante é que pela sua estrutura e decoração o túmulo de D. João de Noronha e D. Isabel de Sousa introduziu o formulário renascentista na região, trata-se de um símbolo de grandeza e de poderio, testemunha um gosto estilístico que conheceu um período de vigência relativamente curto em Portugal, motivado pela utilização prolongada das formas tardo-góticas e pela adoção desde cedo das formas maneiristas. Dito preto no branco, trata-se de um exemplar mais magnificente da escultura renascentista em Portugal.
O Museu Municipal de Óbidos é de visita obrigatória, os pontos de referência são em bastante número: Cruzeiro, Igreja de S. João Baptista, livrarias, a porta da vila, toda a Rua Direita, o edifício dos Paços do Concelho, a Capela de S. Martinho, a Igreja de S. Pedro, a Igreja da Misericórdia, a Igreja-Matriz de Santa Maria, há dois museus, este e o Museu Abílio de Mattos e Silva, entre outras belezas. O Museu é um antigo solar do século XVIII, foi residência do pintor Eduardo Malta, é muito compósito, desde Arte Sacra a Arte Contemporânea encontramos lá um pouco de tudo. É um espaço que a museografia brindou, trata-se de uma residência, o pintor Malta procedeu a alterações, está ricamente beneficiado com azulejaria, é bom que o visitante, se estiver em Óbidos mais de um dia, ali regresse para rever e usufruir de espólio tão rico em condições de exposição atraentes. E terá mais uma oportunidade de contemplar obras magnas de Josefa d´Óbidos.
Museu Municipal de Óbidos
Peça sem título, de Graça Pereira Coutinho, um espantoso aproveitamento de restos de cerâmica que ascenderam a escultura… E que escultura!
Auto-retrato de Eduardo Malta
S. Sebastião na imaginação do artista José Aurélio
Volta-se ao exterior, o tempo é ameno, o céu azul de nuvens em viagem, pode-se ir passear entre livrarias e andar ali à volta da Cerca do Castelo, subir e descer, descer e subir, contemplar a extensa Várzea. Há sempre um pormenor a reter nestas ruas calcetadas a rigor. A hidrângea floresce e lá ao fundo temos uma janela de caraterísticas manuelinas. Vamos então desfrutar este exterior antes de emergir noutros interiores artísticos.
Nota do editor
Último poste da série de 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21799: Os nossos seres, saberes e lazeres (434): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3): Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho (Mário Beja Santos)
4 comentários:
Camarada Carlos Vinhal, há a troca de uma letra na legenda de S. Sebastião. Trocaste o S por D e puseste "D. Sebastião", por engano.
Quanto à Josefa de Óbidos, que é tão reverenciada por tanta gente, é uma artista que eu abomino, para dizer a verdade. A sua pintura é do mais "kitsch" que se possa imaginar. Mas pronto, isto sou eu que implico com a Josefa que, no fundo, não fez mais do que exprimir um certo modo de fazer arte, de acordo com os gostos da sua época.
Caro Fernando Ribeiro, como diria o meu velho professor da 4.ª Classe, as "iludências aparudem". Na verdade o engano não foi meu, embora seja da minha responsabilidade detectar e corrigir as malditas gralhas que se metem em tudo que seja texto escrito.
Muito obrigado pela tua atenção, já procedi à devida correcção.
Bom domingo devidamente confinado.
Carlos Vinhal
Coeditor
Na pintura de Josefa 'Óbidos verificamos a utilização de motivos vegetalistas vários, sobressaindo as flores com destaque para as bolinas.
É interessante essa utilização vegetalista pela zona, já que no Museu Arqueológico de Odrinhas podemos ver num sarcófago Etrusco representadas bolinas, assim como na Casa-Museu do oleiro João Franco,no Sobreiro, podemos ver vários dos seus trabalhos (Baco, St. António, Nossa Senhora) com as mesmas bolinas representadas.
Abracelos
Valdemar Queiroz
Só hoje li este texto.Como sempre bem elaborado pelo seu autor. Sobre um comentário anterior, legítimo, apetecia-me também comentar,mas não o faço.
O que interessa é o "conteúdo " do blog.
João Rodrigues Lobo
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