Queridos amigos,
Annette não se limita a compendiar e a organizar a história da comissão, houvera um pretexto para se fazer romance, a dita guerra da Guiné colou-se-lhe à pele, agora ela estende as antenas para tudo o que pôde acontecer depois do regresso, e perguntou seraficamente ao seu amoroso Paulo Guilherme se e quando se dera tal retorno, qual o seu significado, é o que aqui se relata, em escassos parágrafos, aqueles cerca de cinco meses (nem Annette sonha) dariam uma narrativa bem remexida, estava-se na fase da alvorada do multipartidarismo, Paulo Guilherme ouvia as coisas mais inconcebíveis vindo de políticos que abandonavam o PAIGC e gizavam quadros ideológicos nem imaginando se o povo os podia perceber. E lembra aquelas noites em que calcorreava estradões esburacados entre a pensão da Dona Berta e a CICER, onde tinha guarida, por vezes contava com boleias providenciais, era o seu vizinho Delfim da Silva que vinha com mulher e filhos, mas havia sempre lugar para mais um, nenhum dos dois sonhava que o Delfim viria a ser ministro dos Negócios Estrangeiros, mais tarde passou um mau bocado quando o Nino Vieira se escapuliu para Lisboa e os seus acólitos foram parar à enxovia, são coisas da vida.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (37): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureuse, é uma frase banal, mas não tenho palavras para te agradecer o modo como organizas o que ainda falta do primeiro ano da minha comissão na Guiné, e não querendo entristecer-te, prepara-te para acontecimentos dolorosos, até agosto de 1969. Num encontro fortuito com um antigo colaborador, recentemente, o então furriel João Sousa Pires, o meu braço-direito para a contabilidade e administração, ele lembrou-me aquela manhã em Mato de Cão em que as embarcações esperadas teimavam em chegar, nisto, e com bom atraso, chega uma embarcação civil a revelar danos, uma roquetada em Ponta Varela estilhaçara o convés e afetara a navegação, o piloto tinha o rosto rasgado por ferimentos de vidros partidos, eu que aguardasse os outros barcos, pediu-me, vinham cautelosamente quase encostados à margem direita, como aconteceu, dei com rostos apavorados de gente que temia o pior. Lerás num aerograma que um dia demos na picada entre Canturé e Sansão com alguém que corria em estado de transe em nossa direção, todo esfarrapado, mandei parar, podia tratar-se de uma cilada, a preceder uma emboscada, não era tal, tratava-se de um fugitivo de uma embarcação civil que fora seriamente danificada também perto de Ponta Varela, não demos por nada, ou supusemos tratar-se de tiroteio sobre o quartel do Xime, pois bem, este homem lançou-se a nado, andou a monte até chegar à nossa estrada, o rosto estampado de pavor, levámo-lo para Missirá, veio-se a confirmar a sua versão, foi devolvido à procedência.
Tu pedes-me informação sumária sobre o período em que estive como cooperante, em 1991, na sequência da visita de trabalho de 1990, espero que te lembres que regressei a Missirá e por mais que procure um relato fidedigno dessa visita não encontro expressão para o meu estado de alma, o que eu solucei, por me encontrar naquele chão tanto calcorreado, junto de um povo que me acolheu tão familiarmente e onde julgo ter cumprido o meu dever, e deixado um rasto de fraternidade.
Annette, sobre 1991 é aquela sensação ambivalente de procurar fazer bem, ser realista nas propostas para os dois governos envolvidos, entusiasmo não me faltava, mas as deceções acumulavam-se dia após dia. Logo à chegada, em Bissalanca, dois técnicos do Ministério da Indústria e Recursos Naturais, com caras de enterro, disseram que tinha sido um erro a minha vinda, vivia-se a euforia do multipartidarismo, ia ser difícil encontrar gente disposta a pôr aquele projeto de pé, calei-me, recebera a missão e faria os possíveis e os impossíveis para falar com os parceiros necessários, lançar a semente de uma defesa do consumidor à altura das necessidades elementares da Guiné-Bissau. O que aconteceu, tanto junto da administração como das agências das Nações Unidas, bem como dos projetos internacionais em curso, das organizações não-governamentais. A comunicação social recebeu-me bem, a televisão nomeou um jornalista para prepararmos uma série de programas para uma rubrica que se intitulava “Nós somos um milhão de consumidores”, produzimos seis filmes, escrevi os guiões, acompanhei as filmagens, falou-se da água potável, do fogareiro ecológico, dos perigos de comprar medicamentos a granel, das noções práticas de higiene, das vantagens para a saúde da variedade alimentar, e por aí adiante, o programa foi muito bem acolhido. Alguém lá na televisão quis fazer dinheiro e impôs-me que a série só continuava se eu encontrasse um financiador, ao que respondi que eu era um mero cooperante estrangeiro, competia à estação televisiva angariar um mecenas, e abruptamente, sem qualquer explicação, acabou a série, mais magoado não podia ficar. O Ministro do Ambiente português visitou Bissau, estava eu já no final da minha missão, achou bem o projeto de se criar uma comissão interministerial para a defesa do consumidor, o governo português apoiaria o seu funcionamento e toda a logística com um patrocínio de 8 mil contos, não era muito mas tinha dignidade, dava ânimo para uma primeira fase de organização de medidas de política, juntava técnicos de uma dimensão apreciável de ministérios que ficariam incumbidos de elaborar relatórios e sugerir medidas plausíveis, nada de extravagâncias legislativas. Arrancou-se a ferros um despacho do Presidente da República da Guiné-Bissau a dotar a administração do país com a dita comissão interministerial, ficaria num espaço que foi selecionado dentro do antigo quartel-general português, em Santa Luzia, obras a cargo do patrocinador, a terem lugar no início de 1992. E toda aquela inércia que se me deparava em muitos ambientes caiu sobre o projeto, impunha-se uma resposta rápida para as autoridades de Lisboa, só chegou meio ano depois, era demasiado tarde, senti completamente inglório tudo quanto por ali andara a fazer. Mas mais uma vez, senti que cumprira cabalmente o meu dever. E ponto final.
É claro que houve compensações. Encontrei-me no Cumeré com o coronel Mamadu Jaquité, alguém que por duas vezes me deixou mensagens na picada lisonjeando-me com o trato de alferes de merda, dizendo-me que eu não tivesse ilusões, viria numa urna pequena para Portugal. Depois de muito procurar, e graças a um outro cooperante, por sinal antigo combatente da Guiné, lá fui cumprimentar o tão temível adversário, ele estava a dar instrução na parada, homem de estatura meã, foi-se erguendo à espera da minha identificação, disse-lhe “meu coronel, eu sou o alferes de merda, o de Missirá, é com o maior prazer que o venho abraçar, permita-me que brindemos na companhia dos seus militares”. Falou-se da mina anticarro, que em breve te enviarei os apontamentos, é constrangedor o que vais ler, o coronel Jaquité sacudiu a água do capote, não fora ele, fora o tenente Correia, este desapareceu, quando se falou da minas tartamudeou, disse-lhe para não se apoquentar, esta era uma festa de vivos, não estávamos ali para glorificar o passado, o pior veio depois quando o tenente Correia me retirou do grupo, quase ao repelão, e segredou-me ao ouvido se eu tinha para ali 5 mil pesos (a ninharia do preço de uma refeição na pensão da Dona Berta), há dias que não havia arroz em casa, se eu podia dar uma ajudinha. Anoitecera, agarrei-me ao arame farpado, vendo Bissau ao fundo numa crepitação de luzes, chorei mansinho, a desdita de ter que estender a mão à caridade, claro que não houve dinheiro, houve nova viagem com mantimentos, tudo discreto, aprendi na minha religião que o que se dá com a mão direita a mão esquerda não sabe.
E fui figurante num filme, "Os Olhos Azuis de Yonta", o Flora Gomes, que eu encontrava com uma certa regularidade, um dia pediu-me se eu não me importava de estar no dia tal às tantas horas num bar noturno, tratava-se da sequência de uma enorme roda, tudo numa atmosfera de alegria. Não era possível dizer que não e por ali andei aos saltinhos, poderei pôr no meu currículo que fui figurante numa película guineense, com muito orgulho.
Momentos há, minha adorada, em que me apetece a total indisciplina, atirar os papéis ao ar, partir com um saco para Bruxelas e sentir o teu afago, ao pé de ti não há tédio, sinto que despertei para a vida na luz dos teus olhos, na ternura que me concedes. E tudo por causa de uma guerra. Imagina tu que há uns dias atrás vim de uma reunião algures na Baixa de Lisboa, descia a Rua do Carmo, que tu conheces, entrei na Livraria Portugal, ao pé do Elevador de Santa Justa, tínhamos uns minutos disponíveis para esgravatar novidades editoriais, e dei comigo a folhear uma antologia de Saint-John Perse, Prémio Nobel da Literatura de 1960, conheci este génio graças a uma oferta que me fez o poeta Ruy Cinatti, antes de partir para a guerra, era um livro de caráter ontológico que recolhia poemas de diferentes livros, e estava a folhear alguns desses poemas e senti uma profunda saudade da perda deste amigo, morreu em 1986, e que me ajudou tanto na Guiné, e que bom naquele momento saudá-lo lendo esta poesia genesíaca, um tanto mística, com sabor antilhano, sua proveniência:
“Grande idade, vimos de todas as margens da terra. A nossa raça é antiga, a nossa face é sem nome. E o tempo é muito instruído sobre todos os homens que fomos.
Grande idade, aqui estamos, encontro marcado, e de há muito, com esta hora de grande sentido. A noite desce, e de novo nos leva, com nossas presas de alto mar. Nenhum ladrilho familiar em que repercuta o passo do homem. Nenhuma casa na cidade nem pátio calçado de rosas de pedra sob as abóboras cenouras.
Grande idade, reinas, e o silêncio é teu número. E é imenso o sonho em que se lava o sonho. E o oceano das coisas nos assedia. A morte está no postigo, mas a nossa estrada não está lá. E eis-nos mais alto que sonho sobre os corais do século – nosso canto”.
Adorada mulher que me tomou na grande idade, que me faz suspirar como trémulo adolescente, sonhar sem medir a posteridade, a ti entregue, numa quase rendição incondicional. Telefono amanhã, prepara-te para os papéis que vão chegar, trazem mágoa, mágoa inextinguível, acredita. Bien à toi, Paulo.
Os Olhos Azuis de Yonta, de Flora Gomes, de que fui figurante
O pôr-do-sol nas águas da Guiné convida à transcendência, à contemplação cósmica, ver a bola de fogo cair a pique na imensa densidade florestal é passarmos do dia para a noite, sentir os passos ouvindo possivelmente o correr das águas, talvez o bruxulear de um petromax num ponto acolhedor que nos espera, ouvir o piar das aves e temer mesmo um encontro frontal com gente hostil, como algumas vezes me aconteceu, o derramamento de sangue era inevitável.O tocador de korá, que encontrei no Bambadincazinho, parente do meu amigo Braima Galissá, estávamos em 2010
A bolanha de Finete, tal como a encontrei em 2010
Por aqui se fazia a cambança do Geba, em direção a Finete, o caminho desapareceu, agora viaja-se por estrada alcatroadaMoeda de 10 000 pesos em prata (1991), comemorativa da viagem de Nuno Tristão (1446)
Banco Nacional da Guiné-Bissau, 1975, nota de Cem Pesos, efígie de Domingos Ramos
Vista esplendorosa da Ponta do Inglês sobre a foz do Corubal. Pena ter chegado tarde, bem queria ter visitado a Ponta Luís Dias, Tabucutá, a Mata do Fiofioli, bastiões do PAIGC na região do Corubal____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória
1 comentário:
No meio de tantos figurantes, é praticamente impossível localizar o Beja Santos no filme "Os Olhos Azuis de Yonta", apesar de ser branco, nem isso é o que mais importa. O que importa, é que o filme "Os Olhos Azuis de Yonta" merece ser visto e está no Youtube, completo e com legendas em inglês. Apontar para https://www.youtube.com/watch?v=4XdQypZC3qs.
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