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segunda-feira, 24 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26609: VI Viagem a Timor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: de 6 a 20 de março: um país onde se respeita o katuas (velhote), mais do que o malae (branco) e o amu (padre)


Timor Leste > Liquicá > Manatti > Boebau > Escola São Francisco de Assiz (ESFA) > O 7º aniversário foi celebrado este sábado, dia 22 de março...  Houve muita alegria e uma grande surpresa que o João Crisóstomo já partilhou connosco. Mas deixemos a  feliz notícia para a próxima crónica do Rui ... O Rui merece, a ASTIL merece, os meninos de Manatti Boebau merecem...

Portugueses e timorenses de Liquiçá construiram uma escola, esperam agora, ao fim de 7 anos, que o Estado timoerense pague ao menos os professores...Mas quem quer ir trabalhar para a Manatti/Boebau na montanha, a 5/6 horas de Dilí na monção ?


Foto (e legendagem):  © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. O Rui  Chamusco é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio de 2024. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. É um dos cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra, com outros amigos, o luso-timorense Gaspar Sobral e a  malcatense  Glória Sobral.

É uma grande história de amizade e  solidariedade. Em Timor (onde, com esta, já foi seis vezes, desde 2016), o Rui continua a  dedicar-se de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, onde estão as raízes da  família Sobral, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, município de Liquiçá, que no dia 19 de março de 2025 celebrou o seu 7º aniversário. (Em rigor, foi anteontem, sábado, dia 22.)

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. É tratado como tio ou pai. Ou malae (branco) e agora, mais recentemente, por katuas (velhote), à medida que os 80 anos começam a pesar. Mas, claro, ninguém lhos dá... em Portugal. Em Timor, um país extremamente jovem, quem vai para os  80 é um katuas (velhote, mas respeitado). 


VI Viagem a Timor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: de 6 a  20 de março: um país onde se respeita o katuas (velhote), mais do que o malae (branco) e o amu (padre)


06.03. 2025,  quinta – Reminicências…


Ontem à tarde vi crianças, a Adobe e a Felismina apanhando flores aqui, no quintal do Eustáquio. Curioso, imediatamente perguntei à Adobe: 
Para que são as flores?” E a Adobe respondeu-me: “Pra levar à missa de amanhã, que será também por intenção da mãe”. 

Recordo que a mãe Aurora faleceu inesperadamente vai a fazer dois anos em 19 de Julho. E depois perguntou: 

– O pai Rui também quer ir?

–  Sim, eu também vou. Quero ver…

 – Então, amanhã às 6 horas vamos, por que a missa é às 6.30h. 

E pronto. Toca a levantar cedo para não falhar. A Adobe, a Felismina e eu, katuas (velhote) lá vamos andando, a pé, durante 15 minutos rumo à igreja do seminário, onde vai ser celebrada a missa. Reconheço que se eu não fora, o caminho teria sido feito em menos tempo, pois estas duas moçoilas são duas autênticas gazelas. Aquelas horas, já com tanta gente a circular, aqui é assim, o malai (branco) era o alvo das atenções. Algumas pessoas perguntavam à Adobe se eu era amu (padre). E
faziam cumprimentos de reverência. Já na capela repleta de participantes, sendo mais de metade seminaristas e a outra parte familiares das pessoas de quem foram nomeadas as intenções, rezavam-se as laudes em português, enquanto, suponho que um seminarista, recolhia as cestas com as flores e os envelopes com o nome e a esmola do defunto. 

Então foi uma celebração “sui generis”: laudes em português, ritual da missa em inglês, homilia em tétum, e cânticos em tétum e em português. E pronto.

 Mais uma vivência que me traz reminiscências dos tempos passados em seminário, e um embarramento com a vida desta gente, com os seus valores, com o seu modo de ser. 

De regresso a casa, repetem-se as reverências, as saudações, talvez porque com diz a Adobe, muitos pensam que eu sou amu.

08.03.2025, sábado – Sobe a montanha, e verás…

Conforme a nossa promessa, aqui vamos nós buscar as irmãs R.J.M. que vivem em Casait, para lhes irmos mostrar a ESFA (Escola São Francisco de Assis) e o povo de Boebau/Manati. 

Esta viagem é sempre uma aventura, devido às dificuldades do caminho e à imprevisibilidade da chuva. Por isso, quem se disponibiliza para tal tem de contar com imprevistos e alguns sustos, dos quais só fica livre quando chega a casa. 

Mas como o condutor nos merece toda a confiança (eu direi que conhece todos os buracos do caminho), com certeza que havemos de chegar a bom porto. E passo a passo, quilómetro a quilómetro, lá se fez o caminho. 

Como diria a professora Cristina Castilho a primeira vez que visitou Boebau, “tudo vale a pena quando a paisagem que avistamos nos enche a alma!”

Depois de dar-mos a conhecer a escola e a residência dos professores às irmãs visitantes, seguiu-se uma eucaristia celebrada pelo frei Luen, um capuchinho que todos os fins de semana percorre na sua mota aqueles montes e vales para garantir a estes povos (abandonados) alguma assistência religiosa. Houve logo uma grande empatia devido a ideal comum (franciscanos capuchinhos), assim como com todo o povo que participava. 

Regressamos logo que possível com receio da chuva, sentindo que os objetivos da visita foram cumpridos. Agora, ficamos à espera da decisão favorável ao nosso pedido, na certeza de que “quem espera sempre alcança”.

09.03.2025, domingo – A caminho do “calvário”…

Se há estradas (caminhos) esburacadas, mal tratadas, enlameadas, apertadas, sobrelotadas e quantas outras coisas mais, o caminho para Ailok Laran, onde eu passo grande parte do tempo das minhas estadias em Timor Leste. Brada aos céus. 

A partir do mercado de Perunas é uma desgraça, e é assim desde a minha primeira estadia em 2016. Como é possível que, mesmo às portas de Dili a capital, haja um cartaz de visitas como este? 

Tanta circulação de pessoas, motores (motorizadas), carros, carretas, microletes, camionetas, vendedores num caos impressionante, onde é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que sair ileso desta enorme confusão. 

E nós que fazemos este caminho algumas vezes por dia, chegamos a casa desenculatrados, com o corpo feito num molho. Em dias de chuva, os veículos a motor mais parecem saltimbancos que, em dias de chuva se transformam em barcos navegando ao sabor das ondas. Sim, isto mais parece o “cabo das tormentas”. 

Até quando estas ruas, estes becos, estas gentes terão de esperar por melhores condições de circulação? O que é mais incompreensível é que por aqui até circula gente importante, com responsabilidades no governo da nação. Até parece que estão contentes com a situação. Nem sei que diga. Eu…Não!

12.03.2025, quarta 
– Atividade musical na escola CAFE de Liquiçá

Já estava combinado com a professora Teresa Costa, que é a coordenadora do CAFE  (Centro de Aprendizagem e Formação Escolar) de Liquiçá. Apesar de já estar aposentado há 16 anos, o bichinho da docência, de ensinar e de aprender com os alunos continua a mexer cá dentro.

E como tenho alguma aptidão para o ensino da música, então é fácil encontrar campo de trabalho seja aonde for. Não foi esta a primeira atividade musical no CAFE de Liquiçá. Já em anos anteriores me ofereci e concretizei atividades musicais nesta escola. 

Claro que a professora Teresa, à semelhança dos coordenadores anteriores, aproveitou logo, e muito bem, a minha disponibilidade, partindo de imediato para o agendamento do dia, horas e grupo. 

Mais a mais, há um grupo de alunos que tiveram durante dois anos aulas de Educação Musical, mas que já não tem porque nenhum professor(a) foi aqui colocado este ano pelo ministério de educação de Portugal. Por isso faz todo o sentido aproveitar os recursos já existentes para desenvolver um pouquinho mais as capacidades musicais destes alunos.

Durante mais ou menos duas horas, interpretamos, com a voz, guitarras, lautas e acordeão canções escolhidas pelos participantes e por mim que foram envolvendo alunos e alguns professores de uma forma lúdica e agradável. Não foi necessário utilizar o “pau de chuva “ para fazer os ritmos porque o som da chuva que caía, às vezes abundantemente, serviu de base rítmica perfeitamente. 

Os participantes pediram mais, e querem que eu volte lá. Assim
farei, certamente.

13.03.2025, quinta  – O Eustáquio é chamado “à atenção”

Quando esta tarde demos entrada no palácio do governo, O Eustáquio foi chamado pelo guarda (segurança) que nos viu em caminho para lhe dar uma repreensão. 

 – Tens de dar a mão ao senhor katuas (que sou eu) e ajudá-lo a
caminhar. 

É que eu, devido a dores que me têm atormentado sobretudo o pé
esquerdo, vinha coxeando e andando com muita dificuldade. 

É isto que às vezes me comove. Esta gente tem um respeito impressionante pelas pessoas de idade. E eu, deste cliché, já não me livro. Os quase 80 anos não enganam ninguém, e por isso vou usufruindo destas atitudes carinhosas. É bom ser velho/velhinho – Katuas em Timor Leste.


13.03 – Palácio do Governo: encontro com o vice- primeiro ministro

Com a preciosa ajuda dos amigos Professora Cristina Castilho e do Senhor Rui Pacheco, foi marcada para hoje uma audiência com o vice primeiro ministro, sr. Dr. Mariano Assanami Sabino. 

De manhã, em reunião informal no café Aroma, o sr. Rui Pacheco, eu (que também sou Rui), o Eustáquio e o senhor Nuno Almeida (TUTU) que é assessor do vice-primeiro ministro estivemos preparando este encontro que, na melhor das hipóteses seria de 15 a 20 minutos, acabou por ser uma amena conversa de quase duas horas, onde foram apresentados os projetos de solidariedade da Astil em Timor Leste, e em particular a Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem” e os problemas que atualmente enfrentamos.

 Das três hipóteses apresentadas pelo senhor vice primeiro ministro com possível apoio do Estado, ressalto a que mais nos convém nos convém: uma parceria com o Estado, em que a gestão da escola seja da responsabilidade da AstilMB  (Manatti / Boebau) e os salários dos professores pagos por um dos organismos do Estado (ministério da educação ou ministério dos assuntos sociais). 

A ver vamos, pois ainda há muito caminho a fazer. Mas temos a esperança de que o problema vai ser resolvido. Encontramos muito boa vontade nesta equipa deste ministério. 

Para além do bom acolhimento que nos proporcionaram, demonstraram que eram bem conhecedores da situação, com sensibilidade e vontade de nos ajudarem. Reconhecem e agradecem a nossa solidariedade e tudo o que temos feito por Timor, particularmente os benefícios que temos proporcionado às crianças esquecidas das montanhas de Boebau e Manati. 

Saímos deste encontro muito bem impressionados, e fazemos votos para que esta relação continue…


(...) 14.03,2025, sexta – “Ai, costa,  custa!...”

O Eustáquio já me tinha chamado a atenção: 

–  Tiu, é preciso mudar o filtro e o óleo do carro (pick up). Pode?... 

Pois, tem que poder. E vai daí lá se foi comprar o óleo e o filtro. Mas, devido ao estado dos pneus já desgastados, e que na última viagem que fizemos a Boebau deram alguns sustos, achamos que seria logo melhor substituir os sapatos (pneus). Depois de saber lá dos preços nas lojas  da especialidade, fez-se a compra e a substituição. 

Agora está em condições de subir e descer as montanhas, de nos servir com alegria. Mais uma conta a suportar mas, com maior segurança, é mais fácil fazer o caminho.

17.03.2025, segunda– Afinal, quem manda aqui?...

Estou a falar dos galináceos, que todos os dias convivem connosco, aqui em Ailoik Laran. Já tinha verificado que em todos os rituais destas criaturas, há sempre alguém que comanda, seja de manhã seja à tarde.

Como norma há sempre uma árvore que faz de poleiro, e a subida e a descida da mesma respeita sempre a ordem do rei da capoeira: primeiro os mais pequenos e os mais débeis, seguindo-se depois os voos ascendentes ou descendentes, alguns com mais de cinco metros, de toda a tribo. O capataz, é um galo bonito e altaneiro, muito parecido com o Xico (o galo que há dois anos o sr. Francisco me ofereceu) e que o Eustáquio diz que “parece” ser o filho do galo do Tiu Rui.

Pois, o outro que já foi para os anjinhos, que cantava tão bem (creio que
morreu de tanto cantar). Se assim é, ainda bem, “porque quem sai aos seus não degenera”. O Xico filho também canta que nem um desalmado. Tem uma posse interessante: antes de cantar bate as asas, põe-se firme, estica bem o pescoço, e aí vai o seu canto potente que se faz ouvir por toda a redondeza. Às vezes há outros galos que lhe respondem, mas eu penso que ele pensa ser sempre o maior solista que por aqui anda, até ao dia que, tal como o pai galo, morra a cantar ou que alguém se lembre de lhe “fazer a folha”.

18.03. 2025, terça – Há males que vêm por bem…

Desde há oito dias que me queixo do pé esquerdo. Tentei erradicar a dor, que quando ando me atormenta e me faz coxear, mas a automedicação que tenho tomado não tem conseguido debelar o problema. A quem por nós passa. Hoje tive que ir ao médico(a) da MDC (Medical Dili Center), que depois de verificar a situação, chegou à conclusão (não definitiva) que será o ácido úrico, receitando-me medicamentos para o combater. Com uma recomendação: 

– Se isso não passar volte cá.

Esta é a parte mais chata. O malae katuas(velhote) a coxear devido às dores, a causar pena e dó(compaixão) a quem por nós passa. Por outro lado, é impressionante como toda a gente quer ajudar. Só falta levarem-me ao colo, quais samaritanos.

19.03. 2023, quarta – A Escola São francisco de Assis “Paz e Bem” em Boebau / Manati

Faz hoje 7 anos que a ESFA foi inaugurada, com pompa e circunstância. E desde então para cá , contamos sete anos de vida, de caminho, de luta e de trabalho para que a escola seja um centro de educação e de aprendizagem, ao serviço das pessoas desta região, mas sobretudo das centenas de crianças que por aqui vivem. 

Quantas alegrias, penas, dores e cansaço nos têm acompanhado.  

Quantas esperanças e desilusões, quantas vitórias e derrotas, quantos sóis, quantas luas, quantos quimeras… 

Quantas entidades, quantas pessoas, quantos amigos e amigas já a visitaram, e alguns(umas) já ofereceram o seu trabalho voluntário. 

Obrigado,  sobretudo à ASTIL de Portugal que tudo tem feito para o funcionamento da ESFA, e a todos os que têm contribuído para a concretização deste projeto de solidariedade. 

Vamos continuar a lutar para que os nossos desejos se concretizem, nomeadamente a colocação e o pagamento de salários aos professores que lecionam nesta escola. Sem isso, não há continuidade possível. E nós todos queremos que a escola não encerre, por respeito às crianças e aos habitantes destes povos. 

Mais até, queremos que a Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem” seja um centro ou um polo de desenvolvimento que desenvolve a escolaridade, a cultura e o saber destas gentes através de ateliês cursos que vão de encontro às suas necessidades. O povo do interior de Timor, como o de qualquer outra nação do mundo, é esquecido dos poderes centrais. E tem de haver alguém, pessoas ou instituições, que lhe dê a mão, que o valorize e que o dê a conhecer.

Por conveniência e porque hoje é quarta feira, a festa do 7º aniversário terá lugar no próximo sábado, dia 22, sábado.

20.03.2025, quinta – Guerra aos mosquitos!

Estas criaturas de Deus parece que só existem para nos chatear. E então, estes mosquitos timorenses quando lhes “cheira” a malae, toca a atacar. Uns são quase invisíveis, e pouco ou nada há a fazer, quando nos apercebemos já têm o trabalho feito. Pouco importa que nós, cheios de raiva, disparemos uma palmada no sítio onde eles estiverem (ou não porque já voaram). 

Outros um pouco maiores como as melgas, avisam através de som irritante (ultrassom) que vão aterrar. De sobre aviso lá nos preparamos até que ele poise, para de seguida contra atacarmos. Quase sempre as nossas armas são as mãos, que disparamos com toda a força. Algumas vezes acertamos no bicho inimigo, que literalmente fica esborrachado, e exibimos aos outros o troféu. 

Outras vezes acontece o insólito: não acertamos no alvo, ficando o bicho a rir-se da nossa aselhice. Por essas e por outras razões é que, já por três vezes, ia ficando sem os meus óculos. 

A primeira vez foi uma criança de dois anos, filho da Assun e do Abe, que não sei o que viu na minha cara, me manda um chapada que as cangalhas voaram logo para o chão. Toma que já levas!... A segunda vez foi o Eustáquio, que me mandou ficar quieto, para de seguida me enfiar uma palmada na testa. Vitória! O Eustáquio matou o bicho melga, e fazendo prova do mesmo exibiu o esqueleto e o sangue de que ele se alimentou. A terceira vez, fui eu próprio que dei uma chapada em mim mesmo sem nada conseguir, pois os óculos e o mosquito voaram para onde quiseram. 

Tenho que pedir ajuda a Don Quixote e a Sancho Pança para me ajudarem a vencer esta guerra…

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26570: VI Viagem a Tmor Leste: 2025 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: de 22 de fevereiro a 4 de março: a importância ainda de ser "amu" (padre), na terra do sol nascente

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26307: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (36): uma guerra que também era... ototóxica!

Uma preciosidade, uma relíquia farmacêutica: o célebre medicamento contra o paludismo, Pirimetamina, 25 mg,, LM (iniciais de Laboratório Militar)... 

Havia duas tomas semanais (a pastilha à base de quinino era dissolvida em meio copo de  água),  às quintas e domingo, segundo o nosso camarada médico, Rui Vieira Coelho... A imagem é do António Tavares (ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72).

 Havia diversos "mitos" à volta deste "profilático", e que levavam à recusa em tomá-lo: um deles é que “fazia mal...à tusa”!...

Segundo o nosso camarada Rui Vieira Coelho (ex-alf mil médico BCAÇ 3872 e BCAÇ 4518, Galomaro, 1973/74, hoje médico, reformado, natural do Porto ou a residir no Porto), "nas crises palúdicas o tratamento era feito com Resochina em soro polielectrolítico e aplicação endovenosa e dava sempre uma incapacidade de alguns dias, sobrecarregando os colegas e diminuindo a capacidade operacional do grupo de combate a que pertenciam ou levando á substituição por outro pessoal o que moral e eticamente era reprovável no caso de serem feridos em combate" (...) (*)

Foto: © António Tavares (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



Uma guerra que também era... ototóxica

por Luís Graça


Um dia sonhaste que tinhas uns 'ouvidos novos' . Ou melhor, sonhaste que tinhas encontrado no lixo uns 'ouvidos novos'... e que os mandaste recuperar. De outra vez, o sonho era que tinhas recebido em "herança", de um amigo querido que acabara de morrer, um par de próteses auditivas novinhas em folha, além de uns  "mocassins" (que ele nunca chegou a usar)...

Surdo que nem uma porta, o teu amigo nunca se habituara aos malditos aparelhos. Deixou de conviver, de aparecer na tertúlia dele, isolou-se e morreu sem um ai nem um ui, vítima do Covid-19...

Afinal, tens má consciência por toda uma vida em que foste predador do planeta. Agora, tarde e a mais horas, 'andas numa de reciclagem', gozam contigo os teus filhos e os teus amigos. Reciclas tudo o que podes, até querias pôr "ouvidos novos", reciclados, imagina!... (Pois é, não sabes que raio de planeta vais deixar para os teus netos e bisnetos, se os tiveres.)

− Rins, fígados, corações, e outros órgãos, dá para transplantar... Mas ouvidos, ó caro professor ?!... Implantes cocleares, queria o senhor dizer − gozou contigo o otorrino.

− Có... quê ?! ... Estou a ouvir mal, desculpa.

Foste fazer um audiograma, mas primeiro passaste pelo otorrino, teu velho amigo e conhecido, para limpar a merda dos ouvidos. Um deles tinha "favos e favos de mel e cera". 

−  Mais cera do que mel. Ou era só cera ?... 

− Um "pedregulho"! − disse-te ele, para teu espanto, apresentando-o na cabeça do dedo mindinho.

Ficaste assustado. Costumavas usar cotonetes...

− Qual quê ?!... Os ouvidos limpam-se com os cotovelos... E também podes usar um óleo, até o creme Nívea, para lubrificar o ouvido... Todos os dias, um bocadinho.

Há já uns anos que ouvias mal, já não ouvias os alunos da terceira fila na sala de aulas. Muito menos o safado e emproado locutor de serviço ao telejornal. Deixaste de ouvir e ver televisão, que, além disso,  só te trazia más notícias.

Nem podias ir ao teatro, que os atores só falavam para eles e entre eles e o ponto. E a primeira fila era só para os convidados, os críticos e os amigos bons de ouvido. E mesmo para ouvir a tua querida 9.ª sinfonia tinhas que levar um "funil" (punhas a mão atrás da orelha, a fazer de funil), o que irritava o espetador da fila de trás. E logo tu que eras um melómano... Então, música de câmara, só sentado na primeira fila, o o pescoço esticado e a mão em funil.

Cenas caricatas. Desististe.

− É mau sinal um gajo começar a desistir. De fila em fila acabas na última. E depois é o corredor do hospital, o terminal da morte.

Mas não eras tão melómano como aquele professor do conservatório nacional de música que te garantiu que de vez em quanto tinha que ir a Berlim "limpar o ouvido"...

− "Limpar o ouvido" ?...

− Sim, ouvir a orquestra filarmónica de Berlim.

O sacana do otorrino, teu amigo, há uns anos atrás, lá no consultório dele, encolheu os ombros, e interpelou-te, com ironia:

− Mas o que é o senhor professor quer que eu lhe diga ?!... A idade não perdoa, meu caro, a perda auditiva é irreversível"...

− Merda para a idade, senhor doutor!... E então os milagres das novas ciências médicas para cujo peditório também dei durante anos e anos ? Eu quero uns ouvidos novos, quero uma anca nova, quero uma recauchutagem do esqueleto, como deve ser, da cabeça aos pés... Tudo a que tenho direito...

O otorrino riu-se à gargalhada.

− A saúde custa cada vez mais cara. É já um bem de luxo. Nunca será para todos. E o SNS será para os pobrezinhos.

Nunca foste egoísta, agora estás a sê-lo... Andaste cinquenta anos a descontar para a ADSE (e continuas a descontar), nunca tomaste um medicamento, nunca foste à faca, nunca gastaste um chavo ao SNS, nem ao provedor da santa casa da misericórdia lá dá tua terra de que eras irmão... Foste amigo de ministros da saúde. Tinhas saúde para dar e vender. Nunca meteste uma cunha a Deus nem ao Hospital de Todos os Santos, também nunca te calhou o euromilhões ou a sorte grande, mas a verdade é que também não jogavas, e quem não arriscava não petiscava, lá dizia o saloio do Zé Povinho, que aprendeu a acender uma vela a Deus e ao Diabo...."que o seguro morreu de velho".

Não jogaste, não ganhaste, não arrombaste os cofres da santa casa da misericórdia quando foste mesário. Agora andas a fazer as contas à vida: tanto para os ouvidos, tanto para a anca, tanto para os joelhos, tanto para a farmácia...

− E que Deus nos livre do raio do Alzhemeir! − pediste tu, à tua médica de família como "prenda de Natal"....

E no outro dia foste à audiologista:

− Otites líquidas, teve em pequeno? −perguntou-te ela, inquisitorial.

− Minha querida, quem as não teve, em pequenino, ou no Portugal pequenino em que nasci, vivi e cresci ?

E depois acrescentaste:

− E o meu médico era a ti'Gertrudes, minha vizinha, da minha rua, guardadora de segredos terapêuticos milenares... Do sarampo à varíola, da pleurisia aos furúnculos, do quebranto à espinhela caída, tinha soluções milagrosas para tudo... Até para a epilepsia, era a doença do diabo. Também tirava o diabo mas nunca vi, era sessão interdita às crianças... E alguns desses preparos eram "repugnantes", como a merda de galinha em compressas no peito...

A tua audiologista já não era desse tempo, mas condescendeu em ouvir-te:

− Médicos ?... Só havia um lá na terra, e a gente só o chamava no estertor da morte ou nalgum parto de má hora 
− 

E por descargo de consciência, ainda a esclareceste sobre o teu passado:

− Depois disso, estive no século passado na Guiné, na guerra, ouviu falar ?... A menina é jovem, já nasceu depois do 25... E mesmo que fosse antes, nunca iria para a tropa. Só se fosse enfermeira paraquedista, conheci algumas na Guiné... Mas contavam-se pelos dedos as mulheres que foram à guerra...

− Já nasci nos anos 90, mas ouvi falar! − ripostou ela.

−  De quê, da guerra ?...

E enumeraste um rol de situações que só se viam nos filmes:

− Tiros, explosões, emboscadas, minas anticarro, acidentes com viaturas, quedas mais ou menos aparatosas, picadas, solavancos, cabeçadas, cones de fogo nas trombas, trambolhões, bezanas, esquentamentos, febres palúdicas... sabe como são estúpidas as brincadeiras da guerra, quando se tem vinte anos, sangue na guelra e as hormonas a rebentar a pele...

− Ah!, já sei!... Quinino, ototoxicidade!

− O quê... ?

− Há certos medicamentos que são otóxicos... Já passaram por aqui alguns antigos combatentes da guerra do Ultramar que se queixavam do mesmo mal... Surdos que nem uma porta!

− Ah!, o quinino, a pastilha LM, do Laboratório Militar, que a gente tomava regularmente, às refeições... Por causa das sezões,  malária ou paludismo... Lembro-me !

E, retomando o fôlego:

− Eureka!... Se me lembro !... Um pacotinho de sal e outro de quinino, ao almoço!... O quinino, pelo menos duas vezes por semana.

−Parece haver evidência científica de que o quinino pode provocar danos ao sistemas coclear e/ou vestibular"...

− Desculpe, não percebo nada da anatomia e da fisiologia do ouvido... Mas com essa do quinino, é que a menina me estar a lixar!... Não sabia, mas devia saber, porra, afinal andei anos e anos a falar de saúde e segurança do trabalho, de surdez profissional, de efeitos extra-auditivos do ruído como o stress..

− Não sou farmacêutica, mas há para aí mais do que uma centena de medicamentos ototóxicos. Acrescente-lhe o antibiótico, a penicilina, medicamentos oncológicos...

− Porra, tomávamos aos milhões, a penicilina...

− Agora, não há remédio, e não precisa de dizer palavrões... Sou sensível de ouvidos... Ou melhor: felizmente há remédio. Deixe isso comigo.

− Remédio ?!...

− Vamos lá ver o audiograma e, depois, pôr estes "brinquinhos" no ouvido, devidamente regulados...

− Com essa é que me tira o sono, que a guerra era tóxica, eu já o sabia, mas que também podia ser ototóxica, não me passava pela cabeça (nem pelo ouvido)!... Devia pedir uma indemnização ao Estado!...

− É mau para o Estado... mas é bom, para nós, multinacionais que vendemos aparelhos auditivos, um negócio de milhões (aqui para nós que ninguém nos ouve)... − e olhou para a porta do gabinete para confirmar que estava fechada.

Não podias estar mais grato à tua  jovem audiologista:

− Já percebi, é bom que os antigos combatentes não saibam certas coisas que faziam mal à saúde... Afinal, só os juízes é que são cegos, surdos e mudos como o macaco...

− E têm que ser bem pagos por isso... − arrematou a audiologista.  
− Administrar a justiça sem olhar a quem.

− Minha querida, estou encantado por ouvi-lo... Sabe, estou até a simpatizar consigo!.

... Saíste da loja com uns 'ouvidos novos'. Feliz como o gaiato, que acaba de receber um brinquedo novo. Podias agora ouvir todas as conversas, mesmo baixinhas... Até as bisbilhotices e as conversas dos espiões!... Mais importante: podias ouvir o mar no mês de agosto, e o vento a dar nos búzios dos moinhos da tua infância...

Algumas conversas bem tu as dispensavas, é certo... Mas não há mundos perfeitos... Não se pode ter tudo. Mais vale, afinal, andar neste mudo de muletas do que no outro em carretas...

Em boa verdade, compraste uns aparelhos novos. Os do teu amigo, esses, é que foram para a  "pubela",  para a reciclagem... Que desperdício!.,. Também não quiseste  os sapatos do defunto, uns belíssimos e confortáveis "mocassins" que ele comprara em Paris... Por superstição, por preconceito, por respeito .... Ias lá usar sapatos e próteses auditivas de um morto!

Mas queixaste-te, à menina audiologista, que era era indecente pedirem-te 8 mil euros por um aparelho auditivo XPTO... Mesmo com desconto de 50% por seres conhecido da casa... e a tua patroa já ser cliente da marca.

Preferias uns, em segunda mão, reciclados. Do teu amigo defunto, que nunca os usou, se vencesses a repugnância da morte e dos mortos. Sentiste  -te ofendido com o preço altamente inflacionado do raio dos aparelhos, tu que lutaste na guerra pela tua Pátria e que, se calhar, foras vítima da ototoxicidade provocada pelas drogas antimaláricas do Laboratório Militar... 

Agora, sim, confirmavas as tuas suspeitas: médicos e enfermeiros davam "pastilhas LM", "mezinho", a toda a gente, brancos e pretos, a torto e direito. Algumas eram talvez placebos, outras podiam ser "ototóxicas"...

Em vez de uma cruz de guerra, o Estado devia dar-te uns 'ouvidos novos', como tu chamavas às próteses auditivas... Humor negro à parte, pagaste e não bufaste!... Quatro mil euros, já com desconto e com IVA. A ADSE deu-te mil e tal e já está. 

Ainda estás, afinal,  a pagar a p...da fatura da guerra. (**)

terça-feira, 11 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25631: Humor de caserna (65): Afinal, Deus não gosta dos mais velhos, diz o nosso Cherno Baldé...


Foto nº 38



Foto nº 39 

Guiné > Região de Tombali > s/l (Guileje ?) > c. 1969 > Foto de um grupo de adolescentes . A bajuda do lado direito (foto nº 38) usa relógio de pulso e a rádio portátil, transistorizado... Acrescenta o Cherno Baldé: "Uma familia cristã, crioula, assimilada, provavelmente, de origem cabo-verdiana ou das praças de Cacheu, Bissau, Bolama ou Geba".

Fotos: © Armindo Batata / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P25624 (*).


(i) Luís Graça

Obrigado, Cherno, tens um "olho de lince", como se diz aqui nossa terra. Vês mais longe e mais fundo, sentado junto ao tronco do poilão da Tabanca Grande do que os "tugas" todos juntos, lá no alto das suas cátedras...

Pois, claro, aqueles jovens das fotos nº 38 e 39 não podiam ser futa-fulas, mas "assimilados" (não gosto do termo"), "grumetes" ou "cabo-verdianos"... Enfim, jovens de famílias cristãs... As raparigas por certo que trazem fios ao peito com o crucifixo (não dá para ver bem...).

Talvez fossem de Cufar: antes da guerra, havia grandes armazéns de arroz, de um conhecido comerciante, velho colono, que veio de Cabo Verde, e apoiante (discreto) da causa nacionalista: escapa-me o nome, Benjamim Correia ? Ou qualquer coisa Barbosa ?

Julgo que a grande pista de Cufar (800 metros...), a "Bissalanca do sul", foi feita em terras dele... Está para aí escrito algures, num dos nossos quase 26 mil postes...

10 de junho de 2024 às 10:51

(ii) Cherno Baldé:  

Essa do Poilão foi boa, fartei-me de rir em boas gargalhadas, sozinho, sentado debaixo da sombra de um enorme poilão em Catió, ao lado da administração da mesma região, onde me encontro nestes dias em missão de serviço.

Você é um homem dotado de muita sabedoria e bom humor, que Deus, Alláh e os Irãs te concedam saúde e resiliência para nos continuar a formar, informar e divertir através deste Blogue de veteranos, antigos combatentes da Guiné que, infelizmente, são cada vez menos.

Eu não sou nenhum sábio, não faço qualquer esforço suplementar de memória, simplesmente vivi e, "malgré moi,  acompanhei a Guiné nos últimos 60 anos. Como se diz na nossa lingua: Deus não gosta dos mais velhos, simplesmente já convivem há muito tempo, facto que lhe empresta alguns conhecimentos por experiência própria.

10 de junho de 2024 às 20:14

2. Comentário de LG:

Obrigado, Cherno, pela tua amabilidade e pachorra para continuar a aturar estes velhos combatentes, últimos soldados do império, naufragados e  perdidos lá pelas bolanhas, rias e braços de mar da tua querida terra que, por uma qualquer maldição dos irãs, eles não conseguem esquecer...

Não sei se Deus gosta ou não dos velhos (ou dos mais velhos),  confesso que já  não converso com Ele desde os meus 15 anos, não podendo por isso saber a sua divina opinião... O que eu sei (e que é pouco, também não me arrogo, como tu,  o privilégio da sabedoria), é que, citando a sabedoria popular portuguesa  (que é, afinal, universal),  "perde-se o velho por não poder e o novo por não saber"...

Já vou no km 77 da picada da vida e tu, ainda "djubi", com os teus viçosos 60. Nunca mais me apanhas, mas eu gosto de poder continuar a  conversar contigo. Sentados, os dois, à sombra do nosso mágico, frondoso, secular, fraterno poilão da Tabanca Grande. 

Que Deus, Alá e os bons irãs te protejam e te deem saúde e longa vida... O que também quer dizer... "dormir o q.b.... Lembra-te sempre que "quatro horas dorme um santo, cinco o que não é santo, seis o estudante, sete o caminhante, oito o porco e nove... o morto" (***).

PS - Ah, e mando-nos um "postalinho" de Catió!

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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 9 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25622: Humor de caserna (64): O anedotário da Spinolândia (XII): o "caco" que foi parar ao caldeirão da cozinha de Guileje...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/06/guine-6174-p25622-humor-de-caserna-64-o.html

(***) Vd. poste de 1 DE JANEIRO DE 2024

Guiné 61/74 - P25026: Manuscrito(s) (Luís Graça) (243): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte Va: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina' 1. A arte de bem conservar a saúde

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23932: Boas festas 2022/23 (13): E o nosso coeditor jubilado Virgínio Briote saiu-se com esta...

1. O Virgílio Briote, nosso querido "coeditor jubilado", um histórico do nosso blogue, para começar bem o ano, e animar a caserna (!), foi desencantar "esta", que eu aceito também como "prova de vida"... 

Ando tão "piurso" e tão desanimado da vida, há 15 dias que não saio de casa com um merda que pode ter muitos nomes (fruta da época, virose, gripe, covid, pêdêi, depressão de natal & fim de ano...), que aceito qualquer "piada" que me faça sorrir, mesmo com meia cara e uma muleta... 

É que nem sequer tenho nada de jeito para publicar no fim do ano... e o balanço do ano é francamente mau: foram mais os que saíram pela lei natural da vida do que os que entraram na Tabanca Grande (tão poucos que se contam pelos dedos!)...

Obrigado, Vb, vou tentar entrar o melhor possível no Novo Ano (já não sei como se faz com as pilhas em baixo, e trocando os pés...), é um ano que será (para mim, para o blogue, para nós, editores, colaboradores permanentes, autores, leitores, comentadores, etc.) um ano de grandes decisões: afinal vamos fazer 19 anos de existência, em 23/4/2023, e a p... da guerra já acabou há muito!... (Ou deveria ter acabado, tenho aqui um garrafa de espumante de Sacavém, que vai passando de ano para ano, à espera que...  a guerra acabe de vez!)...

********************

Data - 30 dez 2022 , 20:17
Anedota - Colegas de escola... !

Entrem bem, não se esqueçam…

Abraço
V. Briote

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2. Já lhe aconteceu, ao olhar para pessoas da sua idade,  pensar: "não posso estar assim tão velho(a)?!"... Veja o que me contou uma amiga.

Estava sentada na sala de espera para a minha primeira consulta com um novo dentista, quando observei que o seu diploma estava exposto na parede.

Estava escrito o seu nome e, de repente, recordei-me de um gajo moreno, alto, que tinha esse mesmo nome.

Era da minha turma do Liceu, uns 30 anos atrás (!), e eu perguntei-me: "poderia ser o mesmo rapaz por quem eu tinha tido uma paixoneta na altura?!"

Quando entrei no gabinete, afastei essa ideia. Este homem grisalho, quase calvo, gordo, com um rosto marcado, enrugado... era demasiado velho para ter sido do meu tempo de liceu.

Depois de ele ter examinado o pobre meu dente, perguntei-lhe se tinha estudado no Pedro Nunes.

 − Sim, sim  −  respondeu.

  E quando é que saiu?   − perguntei.

  1985. Por que é que a senhora pergunta?

 − É que... bem... o senhor era da minha turma!

E então, "aquele velho horrível daquele dentista,  cretino, careca, barrigudo, flácido, filho da mãe, lazarento, safado " (!) saiu-me com esta:
 
− A senhora era professora...  de quê?
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sábado, 11 de maio de 2019

Guiné 61/74: P19775: A galeria dos meus heróis (30): Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!... (Luís Graça)

A galeria dos meus heróis > "Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!"...

por Luís Graça



1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o nome.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite (. Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e , onde se bebia uísque marado, e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, pintadas de verniz vermelho horroso como os felinos. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em 
arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa…

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível”…), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste descortinar… 

Enfim, trazia-te a ti, e aos demais machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão pequeno…

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu “Livro Sexto” esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre: “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”


Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, enfim, não te recordas. Mas para o caso não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de  férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo... 

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Fazias questão de dizer que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, muito menos mercenário; isto vai mal, diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário ?!...Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, cumpriam, longe de casa,  uma missão em nome da Pátria, 
a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viveras.) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca,... o mal afamado Pilão.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem: ir dormir uma noite ao Pilão, antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no Pelicano no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e 
de coragem física...Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, e cada um foi com a sua “bajuda cabo-verdiana”, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.



Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinada com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira,   e saieste... A atmosfera era sufocante, o telhado era de zinco, e não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, às escuras…

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio 
almareados (o termo era do teu companheiro de viagem , oriundo do litoral alentejano) e bêbados de sono.


3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, 
Old Parr e Dimple, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos aos balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, de etnia papel, de Biombe, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África.


Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.


TRu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos racistas:

- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado.

Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo à sua provocação:


- Ó amigo.  vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótide… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o inimigo tão perto, olhos nos olhos…Foram os dois ao chão, mas os gajos d
o conjunto (caixa e guitarra elétrica) continuaram a tocar, no meio da algazarra…

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando te deste conta eram já três ou quatro da madrugada…

4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinha umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da  instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé,  que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam. Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocarm um olá, meio comprometidos, já tínhamos passado as Canárias.
– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau.

5. Voltaste a reencontrá-lo muito mais tarde, depois dessa noite no Chez Toi, em que fizeram as pazes. Iam de férias, ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem precocemente envelhecido, solitário e amargurado, que estava a lidar mal com a reforma e os fantasma do passado:

“Não acreditas, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não consegui, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal toda a malta tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, tínhamos combinado levar papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus diários, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas, apontamentos, esboços, rabiscos, até recortes e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida das tabancas por onde andei… Uma forma de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo.

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las ? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...


“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Faço até gala nisso. Nunca poderia fazer parte do teu blogue, de que já ouvi falar, e sobre o qual, de resto, já ouvi críticas e elogios. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos…

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (, sou daqui perto de Bragança), a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…


"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se há muito, há vinte e tal anos. A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato frustrado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.

"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril,  haveria de chegar a deputado por um dos partidos do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado ?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…

“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto. Como eu. Foi das primeiras máquinas, portuguesas, a aparecer no mercado. Não me perguntes a marca. De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.

“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947 - como tu, suponho, somos da mesma colheita – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa ? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como tu, como toda a gente. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí).

“Matei, não matei ?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. 
Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias....Matei para abreviar o sofrimento de homens feridos de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo ?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, muitas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. 

"Como sabes, fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo à Foz do Corubal, na margem esquerda… Ainda era periquito e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanhas da companhia, meias-lecas.

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lado de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta, mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o turra ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana o alferes 'ranger'.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1º pelotão,  olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. Ainda periquitos, com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.


"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos abutres e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...


"Nos olhos do balanta pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! 
Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera em Fulacunda havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como  transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror e compaixão...

"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz.

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDG que nos esperava no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no leste. Durante uns dias, os olhos vidrados do balanta não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de Furriel Ca...rrasco. (Como eu gaguejava um pouco, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias a cara dos prisioneiros ou dos guerrilheiros abatidos junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…


"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro, biafada, do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso dei-me uma algum consolo.

"Não, nunca usei a faca de mato, se é isso que queres saber. Sempre preferi o tiro na nuca. Aconteceu apenas noutra ocasião, já para o fim da comissão. Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut'  que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti.

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é magistrado, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de os perder... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... 
Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (,sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o Furriel Ca...rrasco, que era uma coisa que me irritava. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.

"Deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o "Alma Grande", da colectânea Novos Contos da Montanha, se não me engano... De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do abafador, a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico... para passar o atestado de óbito!”


6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu conselho,  para ver e ouvir a brama dos veados no parque natural de Montesinho... Ele por lá ficou, em Bragança, tu voltaste a Lisboa. E, confessas, ficaste por um bom par de horas, ao longo da autoestrada , a A4, com um nó na garganta, não menos apertado...


Luís Graça (2019). Última revisão: 7/7/2023