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sábado, 21 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24002: Una revoluzione...fotogenica (7): Uma foto intrigante de um guerrilheiro do PAIGC morto, em 1970, da autoria do fotojornalista húngaro Bara István

 

Foto nº 1 


Foto nº 2

Guinea Bissau > 1970 > Bara István > Elesett PAIGC katona / Guiné-Bissau > 1970 > Foto de Bara István > Soldado do PAIGC caído

Não sabemos se estas  fotos são do domínio público. De qualquer modo, fica atribuída a sua autoria. Tentámos, há uns largos anos,  contactar o autor por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação desta e de mais fotos da sua fotogaleria.

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia ...

1. Esta foto sempre me intrigou...  Já a conheço há uns largos anos... Mesmo sem se perceber húngaro, "vê-se" que é um "soldado do PAIGC caído", com a sua Kalash, ao lado... A foto é do fotojornalista  húngaro Bara István (n. 1942) que visitou, a partir de Conacri, algumas das áreas sob controlo do PAIGC, na região Sul, em 1970, "embebbed" nas fileiras da guerrilha... Não sabemos se ao serviço de algum órgão de comunicação social do seu país. 

Há mais 7 dezenas imagens da  reportagem fotográfica da visita, incluindo pelo menos duas do grupo de 26 prisioneiros portugueses que estavam na prisão da "Montanha", em Conacri, à guarda do PAIGC. (Daí que a visita do húngaro só pode ter sido realizada antes da Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970; também não se sabe a que título ele fez esta visita a Conacri e a áreas alegadamente sob controlo do PAIGC no interior da antiga Guiné portuguesa.)

Esta (e as outras fotos) estavam no sítio, "comercial",  "Foto Bara > Galeria" (http://www.fotobara.hu/galeria.htm) . Já não estão disponíveis neste URL, mas fomos recuperá-las  no Arquivo.pt: https://arquivo.pt/wayback/20090707123742/http://www.fotobara.hu/galeria.htm

A página foi capturada pelo Arquivo.pt em 7 de julho de 2009, às 12h37.

2. Pois é, há algo que  me intriga nesta foto (a original é a primeira de cima, Foto n.º 1, com a cabeça do guerrilheiro para baixo, no lado esquerdo; invertemos a segunda para que se possa ver o corpo de outro ângulo, com a cabeça no canto superior direito, Foto n.º 2).

Numa análise mais detalhada do corpo do guerrilheiro (Fotos nº 1A e 2A) não são visíveis ferimentos,  com sangue e orifícios de balas ou estilhaços... Ao ser atingido, seria normal cair de bruços, e a arma ser projetada para a frente ou para o lado... O guerrilheiro tem um "rosto sereno"... Sobre as pernas,  vêem-se alguns ramos de arbustos... E, mais estranho, não há vestígios de terra nem muito menos de formigas e moscas... É pouco provável que o fotógrafo tivesse conseguido um "instantâneo" da morte do guerrilheiro, num eventual reencontro com as tropas inimigas, até porque não há outras fotos que documentem nenhum emboscada ou ataque ao bigrupo do PAIGC...

Uma hipótese que levanto, é tratar-se de, não propriamente de uma "fotomontagem",  mas um foto resultante de um situação eventualmente simulada ou encenada...  O que eticamente seria grave para qualquer fotojornalista em qualquer parte do mundo, num cenário de guerra... Mas não seria o primeiro caso... Uma delas,que continua a ser polémica,  é a do "Falling Soldier", de Robert Capa, uma foto a preto e branco, mostrando o momento em que  um miliciano republicano é atingido mortalmente, durante a guerra civil espanhola, foto alegadamente tirada em Cerro Muriano, no sábado, 5 de setembro de 1936.

Estou de boa fé, não quero estar a ser injusto para com o fotojornalista húngaro, mas acho a imagem (que devia ser de horror) "demasiado perfeitinha"... O que acham os nossos leitores?

PS - Já o dissemos em tempos: não sabemos exactamente em que circunstâncias o Bara István esteve em Conacri e na antiga Guiné portuguesa: num das fotos, ele próprio, então com 30 anos, deixa-se fotografar com uma Kalash pendurada ao pescoço, o que para um fotojornalista de hoje seria altamente reprovável, do ponto de vista deontológico;  pelo que percebi do seu currículo (em húngaro...),  ele nessa altura, em que esteve na Guiné (1969/70), trabalhava como fotojornalista da MTI ("Magyar Távirati Iroda", em inglês "Hungarian Telegraphic Office", uma das mais antigas agências noticiosas do mundo, criada em 1880). 

Em resumo, julgo tratar-se de alguém com prestígio internacional como fotojornalista: pelo menos, foi eleito duas vezes  como membro do júri da "World Press Photo" e outras duas vezes da "Interpress Photo". Também foi docente, durante uma década, numa escola internacional de jornalismo no seu país.

Recorde-se, por outro lado, que na época (1969/70) a Hungria fazia parte do Pacto de Varsóvia e, portanto, era pelo menos politicamente um dos apoiantes do PAIGC.

Foto nº 2A

Foto nº 1A. 

Guinea Bissau > 1970 > Bara István > Elesett PAIGC katona / Guiné-Bissau > 1970 > Foto de Bara István > Soldado do PAIGC caído. Detalhe (Edição; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2023)

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de janeiro de  2023 > Guiné 61/74 - P23977: "Una rivoluzione...fotogenica" (6): Roel Coutinho, médico neerlandês, de origem portuguesa sefardita, cooperante, que esteve ao lado do PAIGC, em 1973/74 - Parte V: os "hospitais" do mato e o pessoal de saúde cubano

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23977: "Una rivoluzione...fotogenica" (6): Roel Coutinho, médico neerlandês, de origem portuguesa sefardita, cooperante, que esteve ao lado do PAIGC, em 1973/74 - Parte V: os "hospitais" do mato e o pessoal de saúde cubano

 

Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António,  auscultando uma idosa/ Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 17 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat - 1974 (Nesta altura havia mais um cirurgião e um enfermeiro cubanos, cujos nomes não são conyecidos, na base de Sara, para além do dr. António, de apelido também desconhecido.)



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António auscultando uma criança ao colo da mãe  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António auscultando uma rapariga / Foto ASC Leiden - Coutinho Collection - B 20 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC, cubano, o dr. António,  auscultando uma jovem mulher / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 21 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC, cubano, o dr. António,  falando doentes, sempre na presença de um intérpetre (ao centro)  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 22 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974.



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > PAIGC: uma enfermaria no mato.  Doenets acamados.  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 14 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Patients in infirmary - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > PAIGC: uma enfermaria no mato. Cama com rede mosquiteira. / Foto : ASC Leiden - Coutinho Collection - B 16 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Patients in infirmary - 1974



G
uiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 >: PAIGC: Enfermaria ou posto médico : "sala de espera" ao ar livre / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - “Waiting room” - 1974






Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. O PAIGC munca controlou 2/3 do território da antiga Guiné Portuguesa, na altura da luta armada pela independência. Foi um mito habilmente fabricado e explorado por Amílcar Cabral.   Nem nunca teve "hospitais" no interior do território, em zonas como a base de Sara, a sudeste do Morés e a nordeste de Mansoa. Teve, isso sim, pequenas enfermarias do mato, guarnecidas por um ou outro médico cubano e enfermeira local, formada "ad hoc"... As condições de higiene, segurança, assepsia e antissepsia, eram deploráveis. Fazia-se, excecionalmente, alguma pequena cirurgia ambulatória (sem banco de sangue, anestesia geral,  gerador elétrico, ou simples material  para desinfeção e esterilização, ou até simples água potável, etc.) e consultas, "públicas", de clínica geral, como as fotos de Roel Coutinho (*) documentam. 

O médico holandês deve ter passado por aqui  algumas semanas, pelo menos fotografou os seus colegas cubanos a trabalhar em condições inacreditáveis...  O arsenal terapêutico era extremamente rudimentar. Em casos mais graves mas excecionais,  os doentes podiam ser  transportados até à fronteira do Senegal, de padiola (operação que levava 4 dias), e depois   em viatura automóvel até ao hospital de Ziguinchor.

Estas fotos também fazem, de algum modo, parte daquilo a que chamos uma "estética da guerra de libertação"... A saúde, a educação, os "armazéns do povo", etc., foram temas bastante focados pelos fotojornalistas e outros visitantes das "regiões libertadas" do PAIGC (***)... 

Sabemos, de resto, que "não há revoluções sem propaganda".  Sem mitos, rituais,  "folclore", "mentiras piedosas",  etc.  Mas, no caso do médico Roel Coutinho, acreditamos na sua boa fé. As suas fotos (mais de 700) pretendem documentar uma realidade, exótica para ele, mas sobre a qual não parece fazer juízos de valor. As suas fotos só foram doadas à ASC Leiden e tornadas públicas na Net quando a "revolução...fotogénica" de Amílcar Cabral e do seu PAIGC já há muito tinha passado de moda...


2. Já aqui transcrevemos em tempos o depoimento de um médico-cirurgião cubano,  Domingo Diaz Delgado (n.1936), respeitante à sua  passagem, no segundo semestre de 1966, pelas bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Sará, na Frente Norte (**).



[…] "Luís Cabral levou-me até Ziguinchor. Aí permaneci dois ou três dias, tendo-me encontrado com os chefes militares mais importantes que actuavam no Norte da Guiné, entre eles Osvaldo Vieira (1938-1974) porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera.

Despediram-se de mim [6 de julho de 1966] e saí com um grupo de combatentes. Era noite quando cruzei a fronteira por essa zona escoltado por uns quantos. A caminhada, feita por um terreno acidentado, para mim foi terrível. Demorei quatro a cinco horas até chegar à primeira base guerrilheira que se chamava Sambuiá. Passei a noite nessa base, já com os pés bastante maltratados.

Essa caminhada que fiz em quatro ou cinco horas, quando regressei fi-la em cinquenta minutos, porque tinha menos trinta quilos e levava já um ano caminhando naquele terreno.

Passada a noite nesse lugar, de madrugada retomámos a caminhada até à próxima base da guerrilha, penetrando profundamente no território da Guiné (Bissau).

À volta de quarenta minutos caminhámos com uma vegetação que nos protegia da aviação, mas para alcançar o rio Farim, que teríamos de atravessar para chegar à base de Maqué, faltava ainda percorrer sete quilómetros muito planos, e sem qualquer protecção natural".

(...) "Pouco habituado a estas tarefas, caminhava lentamente face ao estado em que estavam os meus pés e todo o corpo. O meu estado de desespero também começou a dar sinais e que não me deixava ficar tranquilo, e não dava conta que olhavam para o céu, uma vez que naquele lugar os helicópteros armados e os jactos (aviões de guerra), metralhavam e matavam quem fosse detectado. Os guerrilheiros estavam desesperados porque tinham que zelar pela minha segurança, pois era o primeiro médico que ali chegava.

Finalmente chegámos ao rio Farim, onde o abundante caudal tornava difícil a sua travessia nas pequenas canoas que eles fabricavam com troncos de árvores. Atravessámos o rio e chegámos pela noite à base de Maqué, onde levava dois dias a andar e estava bastante mal.

No trajecto tivemos de beber água em más condições. Ali a água potável era a dos rios, e eles habituaram-se a fazer uns buracos na terra, bem localizados e escondidos para encherem quando chovia. Ao longo do itinerário realizado sabiam onde tinham os buracos para tirar a água com terra e era a que, a partir desse momento, comecei a beber.

Como era o primeiro grupo cubano na Guiné (Bissau), não tínhamos antecedentes. Quando cheguei à base de Maqué já as diarreias começavam a fazer estragos, mas nem por isso deixámos de comer o que encontrávamos pelo caminho. No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará". […]





Guiné - Bisssu > Região do Oio > Base de Sará > 1966 > Cubanos:  da esquerda para a direita, o instrutor militar tenente Alfonso Pérez Morales (Pina); o ortopedista Tendy Ojeda Suárez; o cirurgião Domingo Diaz Delgado e o médico de clínica-geral Pedro Labarrere. (In: Hedelberto López Blanchi - "Historias Secretas de Médicos Cubanos", La Habana, Ediciones "La Memoria", Centro Cultural "Pablo de la Torriente Brau", 2005, 237 pp. Com a devida vénia...)

Acrescente-se que o Domingo Dias Delgado, nome de guerra Demétrio (passou dois anos na Guiné=, escreveu ainda recentemente um livro de memórias (2018): "Memorias de Demetrio : un médico guerrillero en Guinea Bissau" (La Habana, Cuba : Editorial Capitán San Luis, 2018, 189 pp,, + ilustrações)




(...) "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá.

Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo.

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 66] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]




Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as bases por onde passou o médico Domingo Diaz Delgado, no 2º semestre de 1966: Sambuiá, Maqué, Morés, Sará.

Infografia: Jorge Araújo (2018)



Guiné > PAIGC > 1970 > Algures, numa "área libertada" >  "Dzsungel lakók", em húngaro, gente do mato...  A guerra de libertação teve muito pouco de romântico. Os militares portugueses que combateram o PAIGC na Guiné, sabem quão duras eram as condições de vida, tanto dos seus combatentes como da população sob o seu controlo, dentro das fronteiras do território da antiga província portuguesa da Guiné ... A foto é do fotojornalista húngaro Bara István (n. 1942) que visitou, a partir de Conacri, algumas dessas regiões, no sul, em 1970, embebbed nas fileiras do PAIGC.

Foto: Foto Bara (http://www.fotobara.hu/galeria.htm)  
(já não está disponível "on line", a não ser no Arquivo.pt: https://arquivo.pt/wayback/20090707123742/http://www.fotobara.hu/galeria.htm)


3. Escreveu o António Graça de Abreu ("Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura". Lisboa: Guerra e Paz, Editores, SA, 2007, p. 94):

Mansoa, 3 de Maio de 1973

Na região de Mansoa, as NT capturam mais elementos IN, ou aparentados com os guerrilheiros, do que em Canchungo. Normalmente chegam ao nosso CAOP com um aspecto lastimável, a subnutrição, as doenças, a miséria têm tomado conta deste pobre povo que vive nas regiões libertadas.

Os prisioneiros são quase sempre mulheres que se deslocam às povoações controladas pelas NT, a fim de venderem por exemplo mancarra (amendoim), óleo ou vinho de palma, e são capturadas nas estradas ou nos caminhos em volta dos nossos aquartelamentos.

Chegam descalças, andrajosas, às vezes com filhos pequenos às costas a chupar os peitos secos e mirrados. Dói, só de olhar. 

São interrogadas, é-lhes pedido todo o tipo de informações sobre os acampamentos, o armamento, as aldeias controladas pelo IN onde vivem os seus maridos, os seus familiares. 

Como é natural, estas mulheres falam muito pouco e também magoa o coração ver como são tratadas. É minha tarefa comprar-lhes uns trapinhos novos para tapar o corpo, umas sandálias de plástico para protegerem os pés.

Também se capturam elementos IN dos sexo masculino. Há dias um deles, que gozava de um regime de semi-liberdade, foi apanhado a fugir do quartel, já do outro lado do arame farpado, Deu a desculpa de que ia cagar.

Alguns prisioneiros são utilizados como guias nas operações das NT contra os santuários IN. Quando começa o tiroteiro, têm o hábito de escapar e de se refugiar na mata, por isso, às vezes seguem à frente das NT levando uma corda grande amarrada em volta da cintura. Se tentam a fuga,  procurando desligar-se da corda, são por norma abatidos.(...)

(Seleção e negritos: LG)

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(***) Vd. poste de 4 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23947: "Una rivoluzione... fotogenica" (1): Uma reportagem e um livro decisivos, e que consagram a estética da "guerra de libertação", "Guinea-Bissau: una rivoluzione africana" (Milano, Vangelista, 1970, 200 pp.), dos italianos Bruno Crimi (1940-2006) e Uliano Lucas (n. 1942)

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16304: Notas de leitura (858): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte IV: depois de 3 meses em tratamento do paludismo, em Conacri, o médico vai para a frente leste, em junho de 1967, regressando a casa em janeiro de 1968


Guiné > 1970 > s/l > Algures, numa enfermaria do mato, um "médico guerrilheiro" do PAIGC, seguramente cubano, faz um parto.  Uma das célebres fotos de Bara István o fotojornalista húngaro, nascido em Budapeste. 1942, que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. Ocorre-nos perguntar se médico. parturiente e criança (do sexo masculino) ainda estarão vivos. Oxalá /inshalla / enxalé!

Título da imagem em húngaro: "0084_Bara Istvan_Szules a dzsungelben 5, Guinea Bissau_1970.jpg [Em português, um nascimento no mato],

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia / with our best wishes...)

Estamos gratos a este conhecido fotojornalista magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Isttvàn Bara continua manter, na sua página na Net, na sua galeria, esta e outras fotos que documentam bem a dura realidade da vida dos guerrilheiros do PAIGC e da população sob o seu controlo.  artimos do princípio que estas imagens são do domínio público.

Tentámos em tempos contactá-lo por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria. A Hungria, como se sabe,  é hoje um membro da União Europeia, e da NATO,  mas 1989 tinha um regime de partido único, e estava integrada no Pacto de Varsóvia. Penso que o fotojornalista de ontem se adaptou, com sucesso,  aos novos tempos e à economia de mercado. Na qualidade de diretor do MIT, e de fotojornalista com prestígio internacional, integrou em 1985 o júri do famoso prémio World Press Photo (mas ambém em 1986). Recorde-se que ainda estávamos em plena guerra fria.

Há apenas duas fotos, tiradas por ele, no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum.


Quarta parte, enviada a 13 de julho último,  das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue.  



Foto à esquerda:

O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos; eis a última de quatro partes em que foi dividida a publicação, no nosso blogue, da entrevista realizada pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, médico do primeiro grupo de clínicos cubanos chegados em junho de 1966 à Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] para apoiarem o PAIGC na sua luta pela Independência.

Trata-se da primeira de três entrevistas organizadas pelo autor e que constam no seu livro, escrito em castelhano, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.]. [Disponível "on line"em formato pdf, ].

Seguir-se-ão os depoimentos de Amado Alfonso Delgado (médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia) e Virgílio Camacho Duverger (médico militar, especialista em cirurgia geral), onde cada um deles relata algumas das suas histórias de vida  passadas naquele contexto durante as suas missões,  de acordo o guião de entrevista utilizado pelo investigador. "(D)o outro lado do combate" é o título escolhido  por mim para explicitar o propósito da publicação deste meu trabalho neste espaço de partilha.

O livro merece uma leitura integral: o autor conseguiu localizar e entrevistar 15 médicos cubanos que estiveram, como "voluntários" em missões no estrangeiro, de "ajuda humanitária" e "solidariedade internacionalista", de 1963 a 1976, em diversos contextos africanos: Argélia, Guiné-Bissau, Congo Leopoldville, Congo Brazzaville  e Angola.

A primera brigada sanitária cubana chegou à  Argélia en maio de 1963: tinha 55 membros. incluindo 29 médicos- Por  tszões de "segurança de Estado", estas "histórias" tiveram que se manter "secretas".

Só a partir de 2001 é que o jornalista, investigador e escritor  H. L. Blanch [, foto à esquerda,] pode começar a trabalhar este tema. Doze dos entrevistados são apresentados como "médicos guerrilheiros"; os outros 3 (incluindo uma mulher) integraram a missão da Argélia, que não  era militar (nem, portanto, secreta).  Recorde-se que a Argélia tornou-se independente em 1962, depois de uma longa e sangrenta guerra contra a França.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade),  não farei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos:  apenas coloquei  entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento socio-histórico ao que foi transmitido,  com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos deste blogue.

2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO [IV]

Para melhor compreensão da contextualização deste último fragmento sobre o médico em título, sugere-se a leitura dos P16224, P16234 e P16285, primeira, segunda e terceira parte destas "notas de leitura" (*).

O primeiro poste está relacionado com a preparação para a missão africana, a viagem (secretíma) de barco até à Guiné-Conacri e os primeiros contactos com a estrtutura do PAIGC noterreno. O segundo tem a ver com a  explicação/caracterização do leque de actividades clínicas presentes no quotidiano de um médico naquela guerra de guerrilha, das duríssimas condições logísticas vividas em bases improvisadas, provisórias e de parcos recursos, ora socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora cuidando das maleitas apresentadas pela população sob o seu controlo. Por fim,  no terceiro poste,  o entrevistado fala das actividades operacionais em contexto de bigrupo durante os primeiros três meses de 1967 na região [frente] Norte [Sambuiá] até ao momento em que começou a ter vários problemas de saúde que o obrigaram a fazer uma viagem, já em março de 1967.  até Conacri para recuperação/restabelecimento. e onde ficou 3 meses.

Utilizando o mesmo instrumento já apresentado no P16234 [Suprintrep n.º 31, de 13 de fevereiro de 1971 - P2787] dá-se conta na linha azul (mapa abaixo) da geografia dos itinerários percorridos pelo médico Domingo Diaz, também designados por “corredores”, ligando as diferentes bases do PAIGC, durante os primeiros oito meses da sua missão [julho de 1966 a março de 1967].

A estrela verde corresponde aos itinerários utilizados durante o segundo período na região [frente] Leste, entre junho e dezembro de 1967, com destaque para as actividades desenvolvidas em Madina do Boé e Beli.


Mapa das regiões [frentes e bases do PAIGC]. A linha azul corresponde ao primeiro período da missão de Diaz Delgado  (de julho de 1966 a março de 1967), na Frente São Domingos / Sambuiá. A estrela verde corresponde ao segundo período (de junho a dezembro de 1967), na Frente Bafatá  / Gabu (Sul). Infogravura adapt. de Supintrep nº 31, fevereiro de 1971.

Se em junho de 1967 Diaz Delgado  vem de Conacri, onde esteve a ser tratado de uma crise de paludismo, para a região do Boé, não faz sentido a nossa referência, no poste anterior [P16285],  à Op Cacau, realizada em  4/6/1967, e em que morreu o cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585, na região de Bricama (Farim), justamente no dia em que fazia 25 anos... 

O médico cubano refere uma data anterior,  março de 1967, para o ataque das NT a Sambuiá,  na véspera de ser  evacuado para Conacri com paludismo, regressando ao fim de 3 meses... No período em que o Diaz Delgado esteve na Guiné, na frente norte, entre agosto de 1966 e março de 1967 e depois na frente leste, entre junho de 1967 e janeiro de 1968, não temos informação de mais nenhum comandante de companhia das NT morto em combate numa operação. O Diaz Delgado pode estar a querer referir-se a um alferes, substituto do comandante de companhia. Quem poderá ter morrido em março de 1967 no ataque à base de Sambuiá ?









Indice da obra. A versão em pdf não está paginada,  Hedelberto López Blanch: «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf. [A versão disponível em pdf,. embora integral, não está paginada; em papel a obra tem 248 pp, em versão digiral 147 pp.]


Capítulo 10 - Onde o tempo não se mede pelo relógio” (continuação). Transcrição da entrevista de Diaz Delgado, com as seis últimas questões [da 23ª à 28ª, identificadas por nós em numeração romana] (**)


(xxiii) Depois da recuperação em Conacri, 
aonde o colocaram?


Após um forte tratamento médico e com uma recuperação quase total, enviaram-me para a zona [frente] Leste. Esta região era um pouco mais tranquila do ponto de vista militar, embora se realizassem várias operações. Por exemplo Víctor Dreke [, o chefe da missão cubana, em Conacri] dirigiu um dos ataques a um quartel. Anteriormente [novembro de 1966] tinha-se verificado ali um combate importante onde mataram um dirigente do PAIGC, o comandante Domingos Ramos.

[Domingos Ramos foi morto em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (curiosamente o dia do meu 16.º aniversário), sendo considerado, por esse facto, um herói da Guiné-Bissau, uma vez que fez parte do grupo de pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral (1924-1973). Morreu ao lado do cubano Ulisses Estrada.Tem o seu nome ligado à toponímia e a instituições de ensino do país. O seu rosto figura em notas do Banco Central da Guiné-Bissau – exemplo da nota de cem pesos de 1983 e 1990. Tinha também um irmão na guerrilha, o Pedro Ramos – P16123].


[Imagem à esquerda: Efígie de Domingos Ramos, em nota de 100 pesos do Banco Central da Guiné-Bissau, emitida em 1990].


Para Domingo Diaz, a frente Leste era uma região onde se combatia, mas não com as mesmas características das do Norte. No Leste era uma zona mais isolada, com uma fronteira amiga, ou seja, a Guiné-Conacri.

Na zona de Madina do Boé morreu um companheiro cubano por uma úlcera perfurada ao comer umas folhas muito ácidas daquele lugar, que se chamam "foli" [também se diz "fole", com o fruto faz-se sumo]. Os nativos comem-nas para ter mais força e reanimarem-se, pois é muito ácida. 

A este companheiro se lhe perfurou o estômago e quando chega às minhas mãos está em agonia. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para lhe conter a hemorragia, e,  como carecíamos de instrumentos cirúrgicos, tentámos transferi-lo para o pequeno hospital de Boké, na Guiné-Conacri, mas faleceu durante a viagem. Este companheiro foi sepultado ao lado da base aonde nos encontrávamos [no Boé].

[A morte deste cubano – o tenente Radamés Sánchez Bejerano – ocorreu em 19 de julho de 1967, cinco dias depois de um ataque de artilharia efectuado pelos guerrilheiros do PAIGC ao quartel de Madina do Boé, conforme depoimento do médico Domingo Diaz publicado no livro «La Historia Cubana en África – 1963-1991», de Ramón Pérez Cabrera, 2011, p. 152. (Imagem da capa, à direita),

[ Aí se refere que após concluído o ataque, e na sequência da retirada, o tenente Radamés Sánchez perdeu-se na mata durante dois dias e por efeito de ter fome comeu umas folhas muito ácidas que lhe provocaram lesões no estômago. Tinha vinte e nove anos. (…) Esta foi a segunda baixa no contingente cubano em missão na Guiné-Bissau, sendo a primeira a de Félix Barriento Laporté, ocorrida duas semanas antes, em 3 de julho de 1967, durante o ataque ao quartel de Mejo. Na retirada, o artilheiro cubano morreu ao ser atingido por uma granada de obus. Tinha vinte e cinco anos. (op.cit. p.152)].


(xxiv) Que características tinham 
os guineenses?

Recordo muitos nomes valiosos, de chefes e soldados muito valentes que estavam dispostos a morrer antes de um cubano cair nas mãos do inimigo. Às vezes ouve-se falar de pessoas que são mais ou menos combativas. Creio que a guerrilha mais combativa, decidida e valente que havia em África naquela época, era a integrada pelos homens dirigidos por Amílcar Cabral [1924-1973].


(xxv) Nas caminhas pelas matas 
teve experiências com serpentes?


Claro que sim. Atendi vários com mordidelas de serpentes e também vi morrer à minha volta seis nativos por esse motivo. Eram principalmente da população civil. 

Recordo um caso na Zona Leste, um homem que chegou em muitas más condições e lhe tinham feito um garrote na perna, a qual estava em muito mau estado, com muitas borbulhas e praticamente preta. Comecei a tratá-lo e eu tinha uma ferida no pé. Usava  uns chinelos de plástico [hoje, havaianas] que os naturais utilizavam muito e a que me acostumei,  a esse tipo de calçado. Não me lembrei que tinha essa ferida no pé e já havia visto morrer gente à minha volta por picadelas de serpente.

Para esse tratamento fazíamos um corte em cruz no lugar da picada, levantávamos a pele nessa zona e começávamos a drenar para que saísse o sangue. Todo esse líquido me ia caindo na ferida que eu tinha no pé. Não sabia se isso me podia fazer mal ou não. Tomei a decisão de colocar um garrote na perna e fazer-me uma ferida. Não tinha bisturi, senão um canivete, que não estava esterilizado, mas era tanta a adrenalina que não senti o corte, e comecei a drenar. Um companheiro cubano controlava o garrote. Não tínhamos soro antiveneno para aplicar nessa zona. Em cada quarenta e cinco minutos aliviava dez minutos o garrote para que o sangue fluisse.

Passaram as horas e não senti nenhum sintoma. Provavelmente tomei esta decisão muito apressada, mas como tinha visto morrer cinco pessoas não quis arriscar a ser mais a sexta. Os companheiros que estavam comigo eram gente competente, um grupo de tropas especiais de dez guerrilheiros, embora não estivessem acostumados às lides  médicas. Dois deles desmaiaram, mas depois outro ficou a ajudar-me até ao fim.




Um curioso mapa da Guiné, sem data nem origem... Veja-se como os cubanos viam o território. Os únicos rios sinalizados são o Farim e o Corubal, Madina (do Boé) tem a mesma importância que as outras povoações donde faltam topónimos importanets como Nova Lamego (Gabu), Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa, Xime, Bambadinca, Catio, Cacine... Ziguinchor (no mapa, grafado como Zinguinchor), no Senegal, e Boké e Conacri na repúblcia da Guiné são as três únicas referências, nos países vizinhos,  que convinha ficar... Fonte: H. L. Blanch (2005).



(xxvi) Quando e como regressou 
da Guiné-Bissau?


Regresso em janeiro de 1968, ou seja, estive nesta missão durante vinte meses e em zonas de combate cerca de dezasseis. Regressei em más condições. Quando parti tinha 80 quilos e saí da Guiné-Bissau só com cinquenta. Com o objectivo de me recuperar, levaram-me a Conacri onde embarquei no navio cubano Pinar del Rio, que ia com destino ao Congo Brazzaville. Esses sete dias de viagem, mais uma semana no Congo, carregando troncos de árvores, e outra semana para regressar à Guiné-Conacri para recolher os restantes companheiros, serviram para me restabelecer um pouco.

O meu grupo regressa com o que pensámos ser aquele que nos iria substituir, uma vez que quando tínhamos oito meses de actividade em território da Guiné-Bissau, chega o segundo grupo cujo objectivo era reforçar a missão. No final regressamos todos juntos.

Desse segundo grupo quero fazer menção ao doutor Raúl Currás Regalado, que esteve todo o tempo na Zona Sul da Guiné-Bissau. Posteriormente foi cumprir uma missão internacionalista em Angola, aonde participou na companhia do clínico cubano Martin Chang Puga em várias acções de guerra. Durante uma deslocação, o veículo aonde seguiam voltou-se e perderam a vida. Currás tinha características excepcionais e deixou dois filhos e a esposa. E Chang, que não esteve na Guiné-Bissau, era epidemiologista, e também deixou filhos e esposa. [Os dois são considerados "mártires" pelo reime cubano].


(xxvii) Como foi a chegada do grupo 
a Cuba?


Em Cuba fomos recebidos pelo então capitão Guillermo Rodriguez del Pozo, chefe dos Serviços Médicos das FAR [, Forças Armadas Revolucionárias], e seu adjunto, Ángel Fernández Vila. Chegámos a Mariel e fomos para um acampamento aonde durante dois dias nos fizeram exames médicos. Ali nos foram visitar o comandante Pedro Miret, designado por ministro das FAR  Raúl Castro [n. 1931, atual presidente de Cuba]. 

Sentimo-nos muito orgulhosos e reconhecidos pelas palavras que nos dirigiram, e a todos os companheiros que participaram nesta missão nos entregou uma pistola «Makarov», a qual guardo ainda. [Pistola semiautomática, de 9 mm, que entrou em 1951 ao serviço das forças armadas e políciais da antiga União Soviética, substituindo a obsoleta Tokarev].


(xxviii) Que fez ao regressar 
a Cuba?

Conclui a especialidade de neurocirurgia. Já tinha experiência desde quando era estudante de medicina ao prestar apoio nos Centros. Nesse tempo existiam somente três mil médicos em Cuba e os cirurgiões eram muito poucos. Antes de partir para a Guiné-Bissau fiz o internato com o sistema do Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia (INCA), criado pelo comandante René Vallejo para formar no imediato cirurgiões e anestesistas. Nesse ano de internato realizei operações de cirurgia superior e quando regressei da missão queria fazer neurocirurgia. 

Estive três anos e meio no Instituto de Neurologia e Neurocirurgia e graduei-me como especialista de primeiro grau nessa área. Depois estive oito meses no Hospital Joaquin Castillo Duany, no Oriente, como chefe dos Serviços de Neurocirurgia, e mais tarde transferi-me para o Hospital Naval como chefe da mesma especialidade, até 1979. Daí passei para o Ministério do Interior com a perspectiva da fundação do CIMEC [Centro de Investigaciones Médico-Quirúrgicas] em 1982, aonde trabalho desde o seu início como vice-director para a docência e a investigação.




Guiné > c. 1966//67 > s/l > Provavelmente base de Sambuia, em 1967... Da direita para a esquerda, os médicos Pedro Labarrere (falecido),  Domingo Díaz Delgado e Teudy Ojeda... O primeiro da direita era o chefe do grupo cubano da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina). Fo anexa ao livro de H.L. Blanch (205). Reproduzida com a devida vénia...



Domingo Diaz Delgado - Nota biográfica (adapt por JA):

(i)  nasceu em 1936, numa povoação chamada Florencia, na província de Camaguey, mas foi registado em Arroyo.  Arenas, na província da cidade de Havana;

(ii) terminou o bacharelato no Instituto de Marianao,  em 1957;

(iii) começou a estudar medicina em 1959, devido a estar fechada a Universidade desde 1956, quando se agudizou a luta contra o ditador Fulgêncio Batista Zaldivar (1901-1973);

(iv)  em meados de 1958 foi detido pela ditadura e levado à Décima Estação de Polícia situada no El Cerro, em Havana; ali foi torturado durante vários dias, mas, por alguns esforços que foram desenvolvidos, foi libertado e saiu para o México;

(v) regressou ao país em janeiro de 1959, depois do triunfo da revolução castrista;  decidiu retomar os seus estudos, matriculando-se na Escola de Medicina.

(vi) em 1961, quando se funda a Associação de Jovens Rebeldes, passou a ocupar o cargo de secretário organizador na Escola de Medicina;

(vii) mais tarde, em 1962, aderiu à União de Jovens Comunistas;

(viii) desde os primeiros anos, trabalhou como interno  de cirurgia no Hospital Militar Carlos J. Finlay;

(ix) terminou o internato de cirurgia em 1965;

(x)  pertenceu ao grupo de médicos que subiu, em 14 de novembro de 1965,  ao Pico Cuba Turquino, a cuja graduação presidiu o Comandante-chefe Fidel de Castro (n. 1926) [tratou-se da primeira geração de médicos formados pelo regime: 400 médicos e 26 estomatologistas]

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Notas do editor:

(*) Postes a nteriores:

22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16285: Notas de leitura (856): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte III: onde se faz referência à possível operação das NT, no corredor de Sambuiá, onde terá morrido o cap inf QP José Jerónimo da Slva Cravidão, da CCAÇ 1585, em 4/6/1967 (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)


Guiné > 1970 > s/l > Algures, numa enfermaria do mato, um guerrilheiro do PAIGC ferido, em tratamento. Uma das célebres fotos de Bara István, o fotógrafo húngaro, nascido em 1942, que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. É hoje um vulgaríssimo fotógrafo comercial, mas contnua  manter,   na sua página na Net, na sua galeria, esta e outras fotos que documentam bem a dura realidade da vida dos guerrilheiros do PAIGC e da população sob o seu controlo,

Título da imagem em húngaro: "0076_Bara Istvan_Sebesult PAIGC harcos, Guinea Bissau_1970.jpg",,,

Estamos gratos a este conhecido fotógrafo magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Partimos do princípio que estas imagens são do domínio público. Tentámos em tempos contactá-lo por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria.

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia / with our best wishes...)


1. Terceira parte das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo, e enviadas a 28 de junho último. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue.  Reproduzimos aqui a sua mensagem que serve de introdução:

Caros tertulianos:  apresento-vos o terceiro de quatro fragmentos em que foi dividida a publicação, no nosso blogue, da entrevista ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, médico do primeiro grupo de nove clínicos cubanos chegados em junho de 1966 à Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau], para apoiarem o PAIGC na sua luta pela independência [, o outro lado do combate]. 

Trata-se de um trabalho realizado pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch e que consta no seu livro, escrito em castelhano, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. Disponível na Net em versão preliminar, em formato pdf .

No que concerne aos clínicos que cumpriram a sua missão na Guiné são três as entrevistas publicadas nesse livro, cada uma delas relatando algumas das suas experiências, vividas na primeira pessoa por cada um deles, a saber: (i) Domingo Diaz Delgado (médico-cirurgião); (ii)  Amado Alfonso Delgado (médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia); e (iii) Virgílio Camacho Duverger (médico militar, especialista em cirurgia geral). 

O conteúdo de cada fragmento respeita aquela ordem, assim como a estrutura dos guiões utilizados pelo autor nas três entrevistas.

Porque se trata de uma tradução e adaptação para português, não farei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos, apenas colocando entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento socio-histórico ao que foi transmitido com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos deste blogue (e, nalguns casos, da própria publicação, ou da versão disponúivel em formato pdf).


[Foto à esquerda:

 O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo:  (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO - Parte III

Para melhor compreensão da contextualização deste 3.º fragmento, referente ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, sugere-se a leitura dos P16224  e P16234 (*): o primeiro relacionado com a preparação para a missão africana, viagem e inclusão na estrutura do PAIGC; o segundo de explicação/caracterização da paleta de actividades clínicas presentes no quotidiano de um médico naquela guerra de guerrilha, das condições logísticas vividas em bases improvisadas, provisórias e de parcos recursos, ora socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora cuidando das maleitas apresentadas pela população sob o seu controlo.

Em função dos itinerários percorridos a pé por Domingo Diaz, no interior do território da Guiné durante os primeiros seis meses da sua missão [2.º semestre de 1966], este teve a oportunidade de conhecer quase todas as bases do Norte, como sejam os casos de Liador, Sambuia, Naga, Maqué, Morés e Sará.

Considerando este facto, um militar das NT, cuja identidade se desconhece e utilizando uma cópia do mapa da Guiné existente à época, assinalou em 1968 a localização de bases dos guerrilheiros, de zonas de infiltração destes a partir dos países circunvizinhos, de áreas onde a acção da guerrilha era mais intensa e dos aquartelamentos das unidades militares portuguesas.

Dando conta desse levantamento, reproduzimos abaixo uma dupla imagem: o original retirado do P14391 e a cópia extraída do livro de Renato Monteiro & Luís Farinha, (1990),  Guerra Colonial - Fotobiografia. Lisboa. Publicações Dom Quixote, Circulo de Leitores e Autores. pp. 130/131, com a devida vénia. [ O Renato Monteiro é membro da nossa Tabanca Grande e passou pelo Xime e Enxalé,  ao tempo da CART 2520,  em 1970, sítios por onde também passarei dois anos depois...]



Mapa da Guiné (original e cópia). A cópia refere-se à localização de bases dos guerrilheiros, de zonas de infiltração destes a partir dos países circunvizinhos, de áreas onde a acção da guerrilha era mais intensa e dos aquartelamentos das unidades militares portuguesas, elaborado por militar das NT em 1968, e encontrado um ano depois num dos aquartelamentos no interior do território.

Fonte: Renato Monteiro & Luís Farinha, (1990),  Guerra Colonial - Fotobiografia. Lisboa. Publicações Dom Quixote, Circulo de Leitores e Autores. pp. 130/131. (Com a devida vénia...)

Continuação da entrevista com Diaz Delgado (no docuemto em pdf, a que tivemos acesso, as páginas não estão numeradas. mas o total da entrevuista corresponde, no pdf, ao cap X (pp. 65/78). O Diaz Delgado regressou a Cuba em janeiro de 1968.

Para ligar o presente texto com o anterior,  a questão n.º 17 (xvii, na nossa rnumeração romana) foi repetida. Tradução, fixação de texto, negritos,  itálicos e realces a cor são da nossa responsabilidade bem como todas as notas em parênteses retos.

Este documento merece ser conhecido e parcialmemte partilhado com os nossos leitores, e em especial os camaradas e amigos da Guiné.

Cuba terá mandado cerca de 60 "voluntários internacionalistas" para apoiar a luta do PAIGC, entre 1966 e 1974 (entre os quais 9 ou 10 médicos).  A mortalidade foi elevada (cerca de 15%), apesar das grandes preocupações de Amílcar Cabral com a sua segurança. Conhecemos pelo menos os nomes de 9 combatentes "internacionalistas cubanos" mortos ao lado dos guerrilheiros do PAIGC:  tenente Raúl Pérez Abad, Raúl Mestres Infante, Miguel A. Zerquera Palacio, Pedro Casimiro Llopins, Radamé Sánchez Begerano, Eduardo Solís Renté, Felix Barriento Laporte, Radamés Despaigne Robert e Edilberto González...

O primeiro a tombar em combate foi Félix Barriento Laporte, em 2 deJulho de 1967, no ataque ao quartel de Beli, a nordeste de Madina do Boé. 


(xvii) Tem outras memórias da estadia 
em Sará?

Um dia, pela madrugada, chegou à nossa tabanca (assim se chamam as aldeias ali, nas quais existem várias construções que podem ser 7, 8 ou 10) um miúdo que se chamava Kumba [imagem ao lado, a ser assistido pelo cirurgião Domingo Diaz], com aproximadamente quatro anos. Estava em boas condições gerais, mas com uma grande ferida na perna direita onde se tinha lesionado, vendo-se o osso e as artérias, pois foi na face anterior. Impressionou-me o estado anímico em que chegou, com naturalidade, sem uma lágrima, nem um sinal de dor.

(…) Foi tratado pelo ortopedista Teudi Ojeda e por mim. (…) Durante o tratamento sem anestesia, Kumba manteve-se igual, sem uma lágrima e sem manifestar dor. A esta situação já nos tínhamos habituado particularmente na população adulta.




(xviii) A que se deve essa resistência?

Creio que é um problema de cultura, de formação, das condições duras que se vive naquele país. Por uma razão de formação e de valentia, os habitantes desta parte de África controlam e resistem à dor. Fizemos operações de abdómem sem anestesia a pacientes conscientes, que não se queixaram. Isto também acontece nos países asiáticos como o Vietname. Doentes com uma perna partida são tratados e não expressam a dor. Resistem. Guardo uma foto de Kumba, quando o tratámos no acampamento,




(xix) Quantas cirurgias realizou 
nesse tempo?

A frio realizei umas quantas, em patologias que necessitavam como hérnias, inguinais, umbilicais, enguino-escrotais. Operei umas vinte hérnias com anestesia elementar que me proporcionava o doutor Pedro Labarrere, o clínico que às vezes fugia da anestesia, porque o sistema chamado éter rainha ou éter gota-a-gota, que se realiza primeiro com uma indução de cloro de etilo para que o paciente perca a consciência rapidamente e depois se aplicava o éter gota-a-gota. Este tipo de anestesia, que inclusivamente, nessa época, era muito frequente nos hospitais de Havana, provocava muita secreção, e depois teríamos de lhes dar atropina por administração parental, para a diminuir.

Não tivemos nenhuma complicação, mesmo sem a administração de antibióticos. Nesta região, por estarem virgens os organismos dos seus habitantes, com uma dose mínima de antibiótico se pode controlar facilmente qualquer infecção. Também vimos doentes com hérnias sujas que não se infectavam e que no início não o entendíamos.

A isto se adiciona o clima desfavorável com um calor insuportável no verão [, estação das chuvas], embora no inverno [, estação seca,] fizesse bastante frio. Apesar do grande calor, as feridas não se infectam. Esta situação era-nos favorável, porque a quantidade de antibióticos que dispúnhamos era mínima e vinham do exterior, com as consequentes dificuldades de transporte, uma vez que em Sará estávamos a cinco dias de caminho até à fronteira com o Senegal, cujo governo não ajudava a guerrilha do PAIGC, tornando muito complicada a obtenção de medicamentos através desta via.

Inclusivamente transportar guerrilheiros feridos para o Senegal era um problema e muitas vezes havia que fazer um grande percurso por terra, contornando toda a fronteira até chegar a Koundara, no Norte da República da Guiné, para depois os levarmos a Conacri, onde recebiam o apoio médico. No total, entre o ortopedista e eu, realizámos umas cento e cinquenta operações a civis e militares, incluindo hérnias, feridas de balas, fracturas e outras urgências.



(xx) Quando deixou o bigrupo? 

Com o bigrupo continuei a acompanhá-lo permanentemente pela Zona Norte, mas mais tarde comecei a ter vários problemas importantes de saúde como paludismo crónico, viroses, e uma lesão infiltrativa tuberculosa. Por essa razão o chefe da missão, que naquela altura era já o comandante Víctor Dreke (Moja), decidiu retirar-me até ao meu restabelecimento total.

Mas antes da saída e ainda na base de Sambuiá  [,  Zambulla, no original], quase todos os dias as tropas portuguesas nos atacavam com morteiros e canhões que caíam muito perto de nós. Essa base portuguesa ficava somente a quinze minutos a pé. Mas uma noite notámos que as canhoadas caíam mais longe, passando-nos por cima e sentindo o som, caindo muito mais longe. Eu estava com o chefe do grupo da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina), surgindo-nos a dúvida de que estas canhoadas tão longe queriam dizer que as tropas estavam avançando por terra para nos surpreender. Esta nossa percepção estava certa, uma vez que pelas quatro da manhã uma companhia constituída por portugueses e naturais começaram o ataque.

Por sorte, os primeiros tiros foram do nosso lado, na sequência de uma ronda que estava a ser feita por dois guerrilheiros que, ao detectarem a presença do inimigo,  reagiram e acabaram por matar o comandante da companhia. [Possível referência à Op Cacau, em 4/6/1967, em que morreu o cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585, na região de Bricama (Farim), no dia em que fazia 25 anos, se bem que o médico cubano refira outra data, março de 1967, quando foi a seguir evacuado para Conacri com paludismo,, regressando ao fimd e 3 meses: no período em que o Diaz Delgado esteve na Guiné,  na frente norte, entre agosto de 1966 e janeiro de 1968, não temos informação de mais nenhum comandante de companhia morto em combate numa operação] (**).

Por outro lado, as tropas portuguesas reagiram ao fogo e praticamente devastaram todas as palhotas da base, onde conviviam os guerrilheiros com a respectiva população. Só tive tempo, pois ouvia a fala dos atacantes, de dar uma volta à minha cama (recordo que estava com uma crise de paludismo) e rastejar até desaparecer no meio das explosões das granadas de morteiro e dos disparos. Aquilo transformara-se num inferno.

Mas, como quase sempre sucedia, quando havia tiros de resposta, não avançavam, pois não estavam dispostos a combater. Esta base era dirigida por Campané, um homem muito valente e que se bateu com afinco detendo o ataque. Certo é que, se [as tropas portuguesas] têm avançado,  não teria ficado nada.

Na rectaguarda do acampamento passava um rio no qual entrei com água pela cintura cerca de três horas, embora as balas me passassem por cima. De qualquer maneira mantinha a pistola, pois o meu desejo era de nunca ficar prisioneiro.

Posteriormente começaram a sobrevoar a zona alguns helicópteros, baixando para recolher os mortos e os feridos. Passava do meio-dia, regressei à base que estava completamente destruída e não pude recuperar nenhum dos meus bens, nem tampouco os ténis. Este tipo de calçado era mais aconselhável para aquele contexto, pois como tínhamos de atravessar muitos rios e riachos, secavam mais rápido que as botas e eram mais leves.




Guiné > Região do Cacheu e região do Oio > Os nossos aquartelamentos junto à fronteira com o Senegal e a Frente (do PAIGC) São Domingos / sambuiá. Fonte: SUPINTREP nº 31, fevereiro de 1971.


(xxi) Quando saiu para a República da Guiné?

No dia seguinte ao do ataque a Sambuiá,  inicio a viagem pelo mesmo caminho por onde tinha entrado havia oito meses [a povoação de Yiriban, rumo a Ziguinchor]. Isto aconteceu em março de 1967. Volto a Conacri onde permaneci cerca de três meses em recuperação. O comandante Víctor Dreke, que era o chefe da missão militar cubana, deu-me um apoio muito bom.



(xxii) Recorda outros factos interessantes da sua primeira etapa no norte da Guiné-Bissau?

Tenho muitos para contar. Por exemplo, nas primeiras caminhadas que fiz perdi todas as unhas dos dedos dos pés. Ficaram pretas e caíram porque não estava preparado para esse desempenho, uma vez que os pés se mantinham quase todo o tempo húmidos e as travessias eram intermináveis. Depois de ter perdido peso, e com o treino diário, consegui ter mais resistência. Fiquei tão fraco que parecia uma “corda de violino”. Mas fiquei com o hábito de andar e em Cuba percorro cinco quilómetros todos os dias.

Noutra ocasião, quando me encontrava na base de Liador, também no Norte, recebi uma mensagem num pequeno papel escrito por Francisco Mendes,  um dos chefes militares da zona a quem chamavam de Chico Mendes ou Chico Té. Ele, atraído pelo triunfo da Revolução, foi o primeiro presidente da Assembleia do Poder Popular desse país e morreu depois num acidente. Nesse papel solicitava-me que fosse ver uma mulher que estava com sinal de parto e em dificuldade de parir.

Essa noite saí com outro companheiro e um guia até uma aldeia um pouco distante e nos perdemos. No trajecto cruzamos dois corredores com muito cuidado e com a arma na mão, pois por ali passavam regularmente viaturas com portugueses. Quando chegámos, encontramos uma mulher aparentando uns vinte e quatro anos (e com aquela idade era quase uma velha pois a esperança de vida, naquela época, era de quarenta anos). Estava no chão, rodeada de galinhas e uns porquitos e já havia parido um dos bebés, pois tinha gémeos.

Eu tinha bastante experiência em partos, porque durante a minha carreira fiz as práticas no Hospital da Maternidade Obrera [Operária], aonde realizei mais de uma centena. Como este bebé se encontrava emperrado, sabia que devia introduzir a mão para o retirar. Ao ver que o bebé estava em boa posição,  lá o conseguir extrair sem problemas.

A mãe tinha feito um quadro psiquiátrico e que me pareceu ter contraído tétano. Começou por dizer que o primeiro filho não era seu, mas só o segundo, e queria matar o primeiro, no que foi impedida pelos seus familiares. 

No entanto, administrei-lhe dez milhões de penicilina nos dias seguintes e o trismo, que é a contracção da mandíbula que se vê nos tétanos, cedeu. Ela sobreviveu, embora mantendo o quadro psiquiátrico.

Continua.
 ____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriors:

22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

(**) Vd. postes de:

24 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6638: Lista alfabética dos 24 capitães que morreram em campanha no CTIG, dos quais 10 em combate, todos comandantes de companhias operacionais (9 Cap QP, 1 Cap Mil) (Carlos Cordeiro)