1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2019:
Queridos amigos,
O bardo descarrega as suas penas, o seu companheiro de viagem prossegue em grande círculo, vai ao início da guerra, às suas primícias, tenha o leitor curiosidade e fartas leituras o esperam, tanto para entender o que foi a ascensão nacionalista na Guiné e como cedo se impôs o pensamento de Amílcar Cabral, como para acompanhar a digressão do aparato subversivo, em ondas os insurretos foram-se formar na China e na Checoslováquia, mais tarde na URSS, muito mais tarde virá o apoio cubano, entrementes haverá notórios progressos no armamento.
Por isso aqui se recupera as memórias do
"Homem Ferro", um fuzileiro que conheceu a subversão desde 1962, por muitas andanças, em 1963, se apercebeu do alastramento da guerrilha e dos seus focos poderosos.
E aqui também se fala da CCAÇ 675, em 1964 encontraram Binta como território onde agentes do PAIGC se deslocavam folgadamente. Os reforços portugueses foram chegando a conta-gotas, revelar-se-ão insuficientes para estancar a dispersão da guerrilha.
A lira do bardo tem acordes de sofrimento, temos toda a vantagem em tentar perceber os ventos que sopram da guerrilha.
É o que aqui se faz.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (39)
Beja Santos
“Dois colegas com azar
os seus dias terminaram.
O pessoal do Batalhão
grande mágoa passaram.
Para serem tratados
os médicos os examinaram
e algumas chapas lhes tiraram.
Sendo ambos operados
alguns dias foram passados
e soro começaram a levar.
Fartaram-se de penar
com os sofrimentos de gravidade
e foram para a eternidade
dois colegas com azar.
O Francisco António foi o primeiro
que a morte levou.
O António Amaro, desmoralizado
ao ver a falta do companheiro,
o 1.º Cabo e o Furriel enfermeiro
a falar o reanimaram.
A verdade não lhe contaram
para ver se ele não esmorecia.
Mas como o azar o perseguia
os seus dias terminaram.
Este último se aguentou
quarenta e seis dias a sofrer.
Mas começou a emagrecer
porque a hemorragia não estancou.
De dia a dia piorou
levando muita injeção.
A 10 de maio se soube então
que o último suspiro deu.
Pois ele e o Francisco comoveu
o pessoal do Batalhão.
Os pais com aflição
souberam que os filhos tinham morrido.
Pois lançaram grande gemido
naquela região.
Perto da mesma povoação
estes rapazes se criaram
para o Ultramar abalaram
despediram-se com suspiros e ais
e no fim do tempo seus queridos pais
grande mágoa passaram.”
********************
Continua a litania dos padecimentos, o bardo não pára de trombetear desaires e agonias, parece que todo o Batalhão está exposto às mais rudes provas. É nisto, por contraste, que este companheiro do bardo vasculha esta nova guerra da Guiné na sua fase primigénia e encontra um relato sobre os primórdios da luta armada, até ao seu desenvolvimento. Dele já fez referência em obra sua com parceria, intitulada
“Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um roteiro”, Fronteira do Caos Editores, 2014, tem a ver com as memórias de um combatente intitulada
“Homem Ferro”, seu autor é Manuel Pires da Silva, responsável pela edição, com data de 2008. Tem-se sempre em conta que o leitor é leigo, iniciou-se nestas leituras da guerra da Guiné, procura compreender como desabrochou o conflito na área militar, mais complexo é explicar que houve uma prolongada germinação do nacionalismo, formaram-se diferentes partidos, em 1959, Amílcar Cabral em reunião com outros companheiros do Partido Africano para a Independência, tomaram decisões de fundo, Rafael Barbosa e outros ficaram no interior da Guiné em subversão, Cabral e outros partiram para Conacri para encontrar apoios que dessem incremento sério à guerrilha, como veio a suceder, o mesmo Cabral capitaneou os grandes debates com forças concorrentes, o PAIGC, a partir de 1965, foi reconhecido como a força categórica e exclusiva na frente da libertação nacional. Vejamos agora o que viveu um jovem, a partir de 1962, é um relato que dá muito para pensar.
As memórias do fuzileiro Manuel Pires da Silva trazem surpresas, uma delas é abrir novas perspetivas ao que se passou na Guiné em 1962, ninguém desconhece que as investigações dirigem-se sempre para os acontecimentos a partir de Janeiro de 1963, insista-se que há como que uma nebulosa sobre os preparativos da subversão e a respetiva resposta do lado português. Manuel Pires da Silva conta-nos como se fez marujo, ele levou uma vida atribulada em Vale de Espinho, concelho do Sabugal, mourejou no campo, trabalhou com o pai numa oficina de carpinteiro de carros de bois, andou a furar batentes de portas com martelo e formão, fez a instrução primária, andou no contrabando e apanhou alguns sustos. Adolescente, veio com o irmão mais velho para Lisboa, deram-lhe trabalhos de construção civil, foi depois carpinteiro de cofragem, sentia-se desalentado, queria ir mais longe. Inscreveu-se na Marinha, fez a recruta em Vila Franca de Xira, aos 17 anos era segundo-grumete voluntário. Em 1961, foi frequentar o curso de Fuzileiro Especial, recebeu a boina.
É incorporado no DFE 2, destinado à Guiné, ali chega em Junho de 1962. Que missões tiveram? Fazem guarda ao Palácio do Governador, levam prisioneiros do PAIGC para a Ilha das Galinhas, são mandados para o Sul, onde o PAIGC já desencadeava ações de sabotagem. A primeira operação de reconhecimento visava obter informações das gentes das tabancas de Campeane, Cacine, Gadamael Porto, entre outros lugares; seguem depois para Bula, havia fortes suspeitas de guerrilheiros infiltrados naquela zona. Descreve o efetivo da Marinha, ao tempo. O DFE 2 é pau para toda a obra: operação em Darsalame; vão ao rio Corubal em lanchas de fiscalização,
“chegam às tabancas e só vêem velhos, mulheres e crianças, que fogem para todo o lado. Rebentam-se canoas, interrogam-se pessoas, mas ninguém sabe nada”. Em Dezembro, vão até Caiar.
“Quando se tentava contactar com a população da tabanca, surge o tiroteio, o primeiro contacto com as armas de fogo do inimigo. O comandante é ferido no pé direito, tendo sido o primeiro fuzileiro ferido em combate”. Pouco antes do Natal, voltam ao rio Corubal, os botes são postos na água e sobem o rio.
“Passada cerca de meia hora após largar do navio, ouvem-se rajadas de pistola-metralhadora”. E escreve mais adiante:
“A situação agravava-se de dia para dia. O Comandante-Chefe andava preocupado, pois Lisboa não mandava reforços suficientes. Esta preocupação era partilhada pelo Comandante da Defesa Marítima, Capitão-de-Fragata Manuel Mendonça”.
Em Março de 1963, fazem batidas nas áreas de S. João, Tite e Fulacunda, no mesmo mês em que os guerrilheiros se apoderaram dos navios “Arouca” e “Mirandela” perto de Cafine. A situação agrava-se no rio Cobade e Cumbijã, os guerrilheiros atacam ousadamente as embarcações. Na sequência do acidente aéreo que vitimou um piloto e levou à captura do Sargento-Piloto Lobato, os fuzileiros bateram a zona, encontraram o cadáver do piloto sinistrado e os restos do avião.
“Os guerrilheiros tinham a população do Sul completamente controlada. Os fuzileiros estavam ali sozinhos a remar contra a maré”.
Em Julho, com o apoio de um pelotão de paraquedistas, passam Gampará a pente fino. É nisto que foi necessário acudir na área do Xime, todos os dias há fugas para o mato; no mês anterior, foram até à tabanca de Jabadá, tendo sido recebidos a tiro. O inimigo já desencadeia ações violentas a partir da mata do Oio.
“Entretanto, a ilha do Como começa a tornar-se intransitável devido à presença dos guerrilheiros”; a tabanca de Jabadá continua em pé de guerra, a aviação lança bombas de napalm, para intimidar os guerrilheiros, o destacamento desembarca e só encontra velhos e miúdos feridos. A guerra surge à volta de Porto Gole, o inimigo não se deixa intimidar e reage com muito fogo, os fuzileiros sentem-se encurralados, aproveitando uma aberta, eles retiram e pedem apoio da aviação. No dia seguinte voltam, desta feita assaltam o objetivo.
“Quando o bombardeamento pára, o destacamento arranca para o assalto final. Depara-se com mais de 50 casamatas, algumas crianças feridas, a chorar, e dois ou três velhos, também feridos. Registam as informações que eles querem dar”. Quando estão a retirar, recebem instruções da aviação, um grupo de guerrilheiros voltou ao objetivo. Os fuzileiros conversam entre si, tanto esforço e o inimigo não se apresenta. A seguir a este relato, o DFE 2 anda numa completa dobadoira, seguem para Gã Vicente e descobrem um novo inimigo, as abelhas. Por esse tempo vão chegando à Guiné mais reforços, o DFE 7, mas a subversão ultrapassa a capacidade de tomar sempre a iniciativa, a fazer fé em tudo quanto ele escreve, o Sul não dá parança. O que está hoje historicamente provado, e muito bem documentado. Em Novembro, é por de mais evidente que o PAIGC controla as ilhas de Como, Cair e Catunco. A resposta é a operação Tridente em que o DFE 2 participa. O DFE 9 chega em finais de Fevereiro.
Tudo se agrava no rio Corubal, as embarcações são constantemente alvo de emboscadas, atacam a navegação na Ponta do Inglês, e mesmo no canal do Geba. Volta-se à península de Gampará, vão com o apoio de forças terrestres, conclui-se que o inimigo não estava até então implantado no terreno. E depois atacam Cafal Balanta, Cafal Nalu e Santa Clara, há fogo do inimigo que só deixa de reagir quando chegam os T6. E no mês de Junho acabou a guerra para o DFE 2. Ele volta à metrópole, à Escola de Fuzileiros, é convidado para dar instrução. E em Outubro de 1965, lá vai Manuel Pires da Silva no DFE 13 a caminho de Luanda.
Vamos agora mais adiante, ao Diário da CCAÇ 675, a Companhia do Capitão do Quadrado, quando chegaram em meados do ano de 1964 à região de Binta, encontraram tudo em estado de sítio, já se fez referência à sua mentalidade ofensiva, o Capitão do Quadrado foi ferido e está hospitalizado em Bissau, a unidade militar em agosto nomadiza até Guidage, no fim do mês regressa o Capitão do Quadrado e em setembro recomeça a polvorosa, golpes de mão, patrulhamentos, batidas.
Também o furriel-enfermeiro é poeta como o nosso bardo, deixa um sinal dos seus afetos numa publicação de caserna, abre com versos melancólicos, lágrimas de despedida lá no cais, são os dias de viagem até à Guiné, ele questiona:
“Viverei? Voltarei a ver os meus? A Pátria Querida?”.
E despede-se com versos confiantes, animosos:
“À dúvida, ao desânimo, seguem-se a segurança, a fé;
O dever do bom português é mais forte. Vamos lutar,
As dificuldades, os sacrifícios vencem-se de pé.
Mais fortes, mais homens, com honra havemos de voltar.
E quando chegar esse dia ansiosamente esperado,
os vossos corações alvoraçados, delirantes
Voltarão a descortinar no cais festivo, engalanado,
Sorridentes mães, esposas, noivas, felizes como dantes.”
Mas ainda há muito que contar desta Companhia. E um dia destes, pasme-se, chega a hora do BCAV 490 ir para território menos atribulado. Bissau espreita, o estado de ânimo do bardo dará sinais de uma candura, de um rejuvenescimento que desconhecíamos desde aqueles tempos em que a grande questão era a má comida da recruta.
(continua)
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Notas do editor
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