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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23894: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte IX

 


O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Tem mais de 290 referências no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS

NAS “MATAS” DA GUINÉ (1963-1974):

RELEMBRANDO OS QUE, POR MISSÃO, TINHAM DE CUIDAR DAS FERIDAS CORPOREAS PROVOCADAS PELA METRALHA DA GUERRA COLONIAL: «OS ENFERMEIROS»

OS CONTEXTOS DOS “FACTOS E FEITOS” EM CAMPANHA DOS VINTE E QUATRO CONDECORADOS DO EXÉRCITO COM “CRUZ DE GUERRA”, DA ESPECIALIDADE “ENFERMAGEM”

PARTE IX

► Continuação do P23711 (VIII) (15.10.2022)

1.   - INTRODUÇÃO


Com este antepenúltimo fragmento relacionado com o tema em título, continuamos a partilhar no Fórum da Tabanca Grande os resultados obtidos nessa investigação. Com ela, procura-se valorizar, em particular, o importante papel desempenhado pelos nossos camaradas da “saúde militar” (e igualmente no apoio a civis e população local) – médicos e enfermeiros/as – na nobre missão de socorrer todos os que deles necessitassem, quer em situação de combate, quer noutras ocasiões de menor risco de vida, mas sempre a merecerem atenção e cuidados especiais.

Considerando a dimensão global da presente investigação, esta teve de ser dividida em partes, onde se procura descrever cada um dos contextos da “missão”, analisando “factos e feitos” (os encontrados na literatura) dos seus actores directos “especialistas de enfermagem”, que viram ser-lhes atribuída uma condecoração com «Cruz de Guerra», maioritariamente de 3.ª e 4.ª Classe. Para esse efeito, a principal fonte de informação/ consulta utilizada foi a documentação oficial do Estado-Maior do Exército, elaborada pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974).

 

2.   - OS “CASOS” DO ESTUDO


De acordo com a coleta de dados da pesquisa, os “casos do estudo” totalizaram vinte e quatro militares condecorados, no CTIG (1963/1974), com uma «Cruz de Guerra» pertencentes aos «Serviços de Saúde Militar», três dos quais a «Título Póstumo», distinção justificada por “actos em combate”, conforme consta no quadro nominal elaborado por ordem cronológica e divulgado no primeiro fragmento – P21404.

Nesta antepenúltima parte - a nona - analisaremos mais dois “casos”, ambos registados durante o ano de 1967, onde se recuperam mais algumas memórias dos seus respectivos contextos.

No quadro 1 (abaixo), referem-se os casos nominais que faltam contextualizar (n-6).


Aproveitando a elaboração do presente fragmento, voltamos a reproduzir o quadro geral dos “condecorados”, onde o seu universo foi estratificado por posto e ano da condecoração, com a divisão das frequências por triénios.


Quadro 2 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de indivíduos do Exército, com formação específica na área dos «Serviços de Saúde Militar», condecorados com medalha de «Cruz de Guerra» por “actos em combate”, e considerados como fazendo parte da população deste estudo, é de 24 (vinte e quatro), todos eles pertencentes a diferentes Unidades de Quadrícula em missão no TO.


Verifica-se, ainda, que desse universo, 1 era Alferes médico (4.2%), 4 eram Furriéis enfermeiros (16.6%), 15 eram 1.ºs Cabos Enfermeiros (62.5%), 1 era 1.º Cabo maqueiro, 1 era Soldado auxiliar de enfermagem (4.2%) e 2 eram Soldados maqueiros (8.3%).
É relevante o facto de entre os anos de 1968 e 1971 não ter havido “condecorações” na mesma especialidade do grupo do estudo, assim como no último ano do conflito (1974), uma vez que no 1.º triénio (1963-1965) foram registados 7 casos (29.2%) e no 2.º triénio (1966-1968) os distinguidos foram 15 (62.5%).
É também de relevar o facto de que durante o 1.º sexénio (1963-1968), foram contabilizadas 22 condecorações (92% dos casos), equivalente à soma dos dois primeiros triénios, enquanto no 2.º sexénio (1969-1974) só se verificaram, apenas, duas (8%).
Pergunta-se: O que se terá passado nos anos de 1968 a 1971 para não se terem registado condecorações na área da “Saúde Militar”?

3. - OS CONTEXTOS DOS “FEITOS” EM CAMPANHA DOS MILITARES DO EXÉRCITO CONDECORADOS COM “CRUZ DE GUERRA”, NO CTIG (1963-1974), DA ESPECIALIDADE DE “ENFERMAGEM” - (n=24)

3.17 - MANUEL AUGUSTO RODRIGUES MIRANDA, 1.º CABO AUXILIAR DE ENFERMEIRO, DA CCAÇ 1501, CONDECORADO COM A CRUZ DE GUERRA DE 3.ª CLASSE 



A décima sétima ocorrência a merecer a atribuição de uma condecoração a um elemento dos «Serviços de Saúde» do Exército, esta com medalha de «Cruz de Guerra» de 3.ª Classe - a segunda das distinções contabilizadas no decurso do ano de 1967 - teve origem no desempenho tido pelo militar em título ao longo da sua comissão. Merecem, todavia, destaques, os comportamentos tidos nas acções «Operação Mutação», «Operação Assédio» e «Operação Açoite 10».

► Histórico



◙ Fundamentos relevantes para a atribuição da Condecoração

▬ Portaria de 26 de Setembro de 1967:



“Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro do Exército, condecorar com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe, ao abrigo dos artigos 9.º e 10.º do Regulamento da Medalha Militar, de 28 de Maio de 1946, por serviços prestados em acções de combate na Província da Guiné Portuguesa, o 1.º Cabo, n.º 5484365, Manuel Augusto Rodrigues Miranda, da Companhia de Caçadores 1501 [CCAÇ 1501] – Batalhão de Caçadores 1877, Regimento de Infantaria 15.”

● Transcrição do louvor que originou a condecoração:

“Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro do Exército, louvar o 1. Cabo n.º 5484365, Manuel Augusto Rodrigues Miranda, da Companhia de Caçadores 1501 – RI 15, pela maneira como se tem comportado em todas as acções em que tem tomado parte, acorrendo prontamente aos locais em que há feridos a assistir, não se poupando ao perigo desde que o exercício da função da sua especialidade assim o exija.

A este escrupuloso cumprimento do dever alia desembaraço, resistência física e grande serenidade debaixo de fogo, qualidades estas que muito têm contribuído para o cumprimento da sua missão.

Durante a «Operação Mutação», demonstrou qualidades de presença de espírito frente ao inimigo, deslocando-se à rectaguarda da coluna para prestar os primeiros socorros a um ferido grave, evitando com a sua intervenção oportuna que o mesmo continuasse a perder sangue, com grave risco de vida. De salientar o facto de ser a primeira operação em que tomou parte.

Na «Operação Assédio», logo que teve conhecimento da existência de feridos, imediatamente se deslocou debaixo de fogo inimigo para o meio da clareira onde as nossas tropas estavam a ser emboscadas. O seu desembaraço, serenidade, dinamismo, total dedicação e excepcional presença de espírito permitiram-lhe assistir sozinho a todos os feridos. No regresso, a sua notável resistência física contribuiu para que prestasse uma assistência permanente, durante várias horas do deslocamento, aos feridos que eram transportados em macas, conseguindo que os mesmos chegassem ao quartel em razoáveis condições de serem evacuados.

Mais uma vez, na «Operação Açoite 10», a sua acção mereceu ser citada no relatório da operação, pela eficiência demonstrada na assistência a um ferido.

Mercê da sua coragem, valentia e solidariedade para com os camaradas, o 1.º Cabo Miranda tornou-se credor de muita estima e admiração de todo o pessoal da sua Companhia, constituindo a sua presença um elemento moralizante.” (CECA; 5.º Vol.; Tomo IV, p 455).

CONTEXTUALIZAÇÃO DA OCORRÊNCIA



Não tendo sido possível obter quaisquer informações sobre detalhes factuais relacionados com as três operações anteriormente identificadas, tomámos a iniciativa de considerar, para enquadramento particular deste contexto, outros aspectos da actividade operacional em que intervieram forças da CCAÇ 1501.

Está neste caso a sua participação na «Operação Inquietar», realizada entre 9 e 11 de Maio de 1967 (de 3.ª a 5.ª feira), na região de Sare Dicó, que tinha por objectivo executar acções de força sobre o acampamento IN de Canjambari, Sector L2, em coordenação com as forças do Agr 1976 (infogravura abaixo).

No livro da CECA consta que as forças intervenientes nesta «Operação», que contaram com apoio aéreo, foram organizadas em quatro destacamentos: Dest. A = CCaç 1685; 1 GC CArt 1690 (do, então, Alf. A. Marques Lopes) e 1 do PCMil 3; Dest B = CCaç 1689 e 1 Sec/CMil 3; Dest C = CCaç 1501, 1 GC CCaç 1499, 2 Sec/CMil 2 e 1 Sec/CMil 4; Dest D = 1 PRec 1578.



● Resultados => As NT destruíram um acampamento com 10 casas de mato, depois de terem 
passado revista e capturado 1 "longa", roupas e utensílios domésticos. Depois foi detectado outro, que foi assaltado; capturadas 2 "longas", destruídos numerosos artigos, utensílios domésticos, e derrubadas 30 casas de mato (acampamento de Cambajú). As NT destruíram ainda 10 casas de mato, sendo 5 cobertas com zinco, e capturaram, além de material, documentos e munições diversas, o seguinte armamento: - Lgfog "P-27 Pancerovka" 1-MI"M-52" 1 - Esautom"V-52" 1 - Esp "Mauser " 1 - "Longa" 3 - Gmdef "F-1" 6 - Gmdef"RG-34" 3 - Granadas de "lgfog" 3 - Carregadores de esautom "V-52" 7 " da ml "Degtyarev" 2" da mi "M-52" 2 - Gmdef 1 Munições: - Da esautom "M-52" 217 - Da mi "Degtyarev" 92 - Da pmetr "PPSH" 30 - De pistola 23 - Da eautom "Kalashnikov" 18 - Da esp "Mauser" 3 (CECA, 7.º Vol., Tomo II, p 44).

● Porém, durante esta investigação encontrámos informações mais desenvolvidas, ainda que não coincidentes, nomeadamente quanto ao período indicado na fonte oficial, como foi o caso do Poste 94, publicado no Blogue da CART 3494 em 18 de Fevereiro de 2011, cujo conteúdo se transcreve:

◙ «Operação Inquietar I» - de 9 a 15Jun1967 (de 6.ª a 5.ª feira seguinte).

Ø Situação Particular => Há notícias de que o IN tem um acampamento em CANJAMBARI além de outros espalhados pela mata do OIO. O IN tem-se revelado durante operações realizadas e implantado engenhos explosivos nos itinerários.

Ø Missão => Executar uma acção em força sobre o acampamento IN de CANJAMBARI em coordenação com as forças do Agrupamento 1976.

Ø Forças Executantes => As mesmas indicadas no livro da CECA

Ø Desenrolar da Acção =>

09Jun1967 (6.ª feira) = Os destacamentos A e B deslocaram-se em meios-auto de FÁ para BANJARA. Devido à falta das viaturas militares para os transportar houve necessidade de recorrer a requisição de viaturas civis, utilizadas apenas no troço FÁ - SARE BANDA. A concentração das forças em BANJARA foi morosa, pois teve que se fazer por escalões. Iniciada pelas 07h00 terminou pelas 16h00.

● 10Jun1967 (sábado) = Pelas 02h00 os destacamentos A e B iniciaram junto o movimento
para CASA NOVA que atingiram pelas 06h00. Pelas 06h50 as NT abriram fogo sobre 2 elementos desarmados tendo abatido um e ferido outro num braço, quando tentavam a fuga. Interrogado este revelou a existência de uma tabanca nas proximidades, localizado depois em BANJARA 2A4. Pelas 13h50 atacaram este objectivo que o IN abandonou precipitadamente. - As NT destruíram 10 casas de mato, depois de terem passado revista e capturado uma longa, roupas e utensílios domésticos. Pelas 12h30 as NT atingiram GENDO, utilizando o prisioneiro como guia [imagem ao lado], onde pararam para comer. Em exploração das declarações prestadas pelo guia os Cmdt’s Dest. A e B que estavam juntos decidiram seguir a corta-mato para SAMBA CULO, durante a noite, se até iniciarem a progressão não fossem detectadas. Pelas 13h00 ouviram um tiro isolado do lado NW, que lhes pareceu de reconhecimento. Pelas 14h40 um Gr IN estimado em 15 a 20 elementos flagelou durante cerca de 20 minutos com armas automáticas: PM, LGF, e Mort. 60, a posição onde as NT se encontravam, mas sem consequências.

- O Comandante do Dest. B decidiu então, como medida de excepção, desviar-se para BANJARA 5A5 e daqui progrediu durante a noite em direcção a SAMBA CULO. Pelas 17h30 as NT já se encontravam em andamento quando ouviram o rebentamento de duas granadas de mort. 60 no local onde estacionaram. Cerca das 18h00 as NT avistaram 2 elementos dos que seguiam em direcção às NT. Ao detectá-los internaram-se no mato. Momentos depois ouviu-se o lançamento de 1 granada de Mort., tendo as NT avançado imediatamente sobre a posição onde se supunha estar instalada a arma. Assaltado o acampamento foram capturadas 2 longas, destruídos numerosos artigos e utensílios domésticos, roupas, alimentos, catanas, bicicletas e destruídas 50 casas de mato, acampamento de CAMBAJÜ situado em BANJARA, 3CL. O Cmdt. Dest. B decidiu então atravessar a bolanha do Rio Cambajú, para passar a noite em BANJARA 3EL e progredir depois sobre SAMBA CULO.


 11Jun1967 (domingo) = Pelas 05h00, debaixo de chuva torrencial, as NT progrediram ao longo do Rio Cambajú, seguindo o Dest. B à frente. Pelas 08h00 o Dest. B capturou um elemento IN, que explorado levou as NT a destruir outro acampamento. Cerca das12h00 o PCV entrou em contacto com o Dest. B, que lhe solicitou que sobrevoasse o Dest. C que necessitava da sua presença e voltasse depois. Em vão o PCV tentou contactar de novo com o Dest. A e B. No resto da manhã e durante a tarde de 11Jun67, pelo que não foi possível reabastecê-los como estava previsto, apesar de todos os esforços de ligação do PCV, dos T-6 e HELI. Finalmente pelas 17h50 conseguiu o PCV contactar com o Dest B, que pedia a evacuação de 1 ferido, evacuado momentos depois por um HELI. No seu regresso a Bissau, depois de feito o reabastecimento do Dest. C verificou-se que os Dest’s. A e B se encontravam pela região do ponto 38 (BANJARA 2D4) e dado o estado precário do pessoal, pediu autorização para retirar o que lhes foi negado.

12Jun1967 (2.ª feira) - Pelas 08H00, como o PCV não aparecesse e os Dest. A e B não tivessem sido reabastecidos, os Cmdt’s dos Dest’s decidiram progredir para SW, tendo atingido BANJARA pelas 09h00 altura em que surgiu o PCV e lhes comunicou que de BAFATA saíra uma coluna com os reabastecimentos e com as instruções a cumprir durante o dia 12 e na noite de 12/13Jun. O Dest. A recebeu ordem de montar emboscadas sobre o itinerário BANJARA - MANTIDA e o Dest. B recebeu ordem de montar emboscada na região de BANTAJÃ, mas que não resultaram.

13Jun1967 (3.ª feira) - Iniciado o regresso, os Dest. A e B chegaram a FÁ pelas 12h50.

Nota: Sobre esta operação consultar outros textos de A. Marques Lopes em  postes  P48 e P49, de 7 de Junho de 2005.

3.17.1 - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE CAÇADORES 1501

            = BULA - BISSAU - MANSOA - TEIXEIRA PINTO - INGORÉ - PELUNDO - FAJONQUITO  

Mobilizada pelo Regimento de Infantaria 15 [RI 15], de Tomar, para cumprir a sua missão ultramarina no CTIG, a Companhia de Caçadores 1501 [CCAÇ 1501], a terceira Unidade de Quadrícula do Batalhão de Caçadores 1877 [BCAÇ 1877; do TCor Inf Fernando Godofredo da Costa Nogueira de Freitas], embarcou no Cais da Rocha, em Lisboa, em 20 de Janeiro de 1966, 4.ª feira, a bordo do N/M «UÍGE», sob o comando do Cap Inf Rui Antunes Tomaz, tendo chegado a Bissau a 26 do mesmo mês.

3.17.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CCAÇ 1501

Após a sua chegada a Bissau, a CCAÇ 1501 seguiu em 04Fev66 para Bula a fim de efectuar a adaptação operacional na região de Bula-Pelundo-Jolmete, sob a orientação do BCAV 790 [28Abr65-08.02.67, do TCor Cav. Henrique Alves Calado (1920.06.12-2001.11.12)] até 21Fev66, após o que recolheu a Bissau, ficando na função de subunidade de intervenção e reserva do Comando-Chefe. Em 26Mar66, seguiu para Mansoa, sendo atribuída em reforço do BCAÇ 1857 [06.08.65-03.05.67, do TCor Inf. José Manuel Ferreira de Lemos], com vista à segurança e protecção aos trabalhos da estrada Mansoa-Mansabá, tendo-se instalado num aquartelamento temporário no Km 10, a partir de 31Mar66 e até 15Jul66, após o que recol08.02.66-heu, de novo, a Bissau. Em 21Jul66, seguiu para Teixeira Pinto, a fim de reforçar o dispositivo do seu batalhão [BCAÇ 1877 – 08.02.66-06.10.67, do TCor Inf. Fernando Godofredo da Costa Nogueira de Freitas], com vista à actuação ofensiva na área do Churo, cedendo ainda um GrComb para reforço temporário das guarnições de Ingoré, de 21Jul66 a 29Set66 e de Pelundo, a partir de 29Set66. Em 26Jan67, seguiu para Fajonquito a fim de render a CCAÇ 1497 (26.01.66-04.11.67, do Cap. Inf. Carlos Alberto Coelho de Sousa], tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector em 31Jan67, com Grs Comb destacados em Tendinto e Cambajú e ficando igualmente integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão. Em 19Set67, foi rendida no subsector de Fajonquito pela CCAÇ 1685 [14.04.67-16.05.69, do Cap. Inf. Alcino de Jesus Raiano] e recolheu em 24Set67 a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso, o qual ocorreu em 06 de Outubro de 1967 (CECA; pp 80-81)

3.18 - JOSÉ LUÍS VALENTE TEIXEIRA DA ROCHA, 1.º CABO AUXILIAR DE ENFERMEIRO, DA CCAÇ 1416, CONDECORADO COM A CRUZ DE GUERRA DE 4.ª CLASSE 


A décima oitava ocorrência a merecer a atribuição de uma condecoração a um elemento dos «Serviços de Saúde» do Exército, esta com medalha de «Cruz de Guerra» de 4.ª Classe - a terceira das distinções contabilizadas no decurso do ano de 1967 - teve origem no desempenho tido pelo militar em título durante a «Operação Milhafre» [?], desconhecendo-se a data e a região onde a mesma teve lugar.




◙ Fundamentos relevantes para a atribuição da Condecoração

▬ O.S. n.º 16, de 06 de Abril de 1967, do QG/CTIG:

“Agraciado com a Cruz de Guerra de 4.ª Classe, nos termos do artigo 12.º do Regulamento da Medalha Militar, promulgado pelo Decreto n.º 35667, de 28 de Maio de 1946, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 18 de Julho de 1967: O 1.º Cabo n.º 06626264, José Luís Valente Teixeira da Rocha, da Companhia de Caçadores 1416 [CCAÇ 1416] – Batalhão de Caçadores 1856, Regimento de Infantaria n.º 1.”

● Transcrição do louvor que originou a condecoração:

“Louvo o 1.º Cabo auxiliar de enfermeiro, n.º 06626264, José Luís Valente Teixeira da Rocha, da CCAÇ 1416, porque no decorrer da «Operação Milhafre» [?], mostrou notável sangue frio e abnegação, socorrendo os seus camaradas necessitados de auxílio debaixo de intenso fogo In, numa violenta emboscada que colheu quase por inteiro toda a coluna e provocou numerosas baixas entre as nossas forças.” (CECA; 5.º Vol., Tomo V, p 108).

CONTEXTUALIZAÇÃO DA OCORRÊNCIA


Na busca de outros elementos factuais ocorridos durante a «Operação Milhafre», tendentes a uma melhor contextualização dos mesmos, já que se tratou “(…) de auxílio debaixo de intenso fogo In, numa violenta emboscada que colheu quase por inteiro toda a coluna e provocou numerosas baixas entre as nossas forças”, situação que acabaria por fundamentar a condecoração acima, as fontes bibliográficas consultadas não nos permitem acrescentar algo mais.

No entanto, partindo do facto da mesma ter “provocado numerosas baixas entre as nossas forças”, a questão de partida era tentar saber se as houve, quantas e como ocorreram as baixas da CCAÇ 1416.

Assim, durante o ano de 1966, esta Unidade contabilizou quatro mortes, a saber:

▼ 1. - Filipe Salvador Amaral, Soldado, natural do Fundão.

● Em 24 e 25.Fev.1966, durante a «Operação Cabuca»: Em exploração de uma notícia que referia que um numeroso grupo In ia atacar Cabuca. Forças da CCaç 1416 seguiram para aquela localidade. O In, instalado junto ao rio Cumbera (afluente do Corubal) e protegido pelas rochas, fez fogo sobre as NT. Estas reagiram desalojando o In, que retirou para a República da Guiné, sofrendo 15 mortos, 5 dos quais ficaram abandonados no local. As NT sofreram 1 morto (Filipe Salvador Amaral, 1 ferido grave e vários ligeiros. (CECA, p 392).

● As restantes três baixas ocorreram em 22.Jul.1966, durante um ataque ao Aquartelamento de Medida do Boé, conforme consta no P21547 - (D)o Outro lado do Combate…

▼ 2. – Augusto Reis Ferreira, Soldado, natural de Montargil (Ponte de Sôr).

▼ 3. – Carlos Manuel Santos Martins, Soldado, natural da Cova da Piedade (Almada).

▼ 4. – Rogério Lopes, 1.º Cabo, natural de Chão de Couce (Ancião).

Eis, em síntese, o que foi apurado sobre as questões em aberto.



Foto 2 – Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894 > Aquartelamento > Memorial da CCAÇ 1416 “Aos nossos mortos” … “E aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”. Fonte: foto do álbum de Manuel Caldeira Coelho – P18867, com a devida vénia.

3.18.1 - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE CAÇADORES 1416

= NOVA LAMEGO - MADINA DO BOÉ - BÉLI - CHÉ-CHÉ



Mobilizada pelo Regimento de Infantaria 1 [RI 1], da Amadora, para cumprir a sua missão ultramarina no CTIG, a Companhia de Caçadores 1416 [CCAÇ 1416], a primeira Unidade de Quadrícula do Batalhão de Caçadores 1856 [BCAÇ 1856; do TCor Inf António da Anunciação Marques Lopes] embarcou no Cais da Rocha, em Lisboa, em 31 de Julho de 1965, sábado, sob o comando do Cap Mil Inf Jorge Monteiro, tendo chegado a Bissau a 6 de Agosto, 6.ª Feira.

3.17.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CCAÇ 1416

Após a sua chegada a Bissau, onde permaneceu uma semana, a CCaç 1416 seguiu em 13Ago65 para Nova Lamego a fim de substituir a CCaç 817 [26Mai65-08Fev67, do Cap Inf Fernando Xavier Vidigal da Costa Cascais (1.º); do Cap Art António José Fialho Segurado (2.º) e do Cap Inf Artur Pita Alves (3.º), como subunidade de intervenção e reserva do BCav 705 [24Jul64-14Mai66, do TCor Cav Manuel Maria Pereira Coutinho Correia de Freitas], tendo tomado parte em diversas acções realizadas nas regiões de Bajocunda, Canquelifá e Copá e, ainda, na região de Buruntuma, de 29Out65 a 28Jan66, substituída transitoriamente pela CCaç 1499 [08Fev66-06Out67, do Cap Inf Alcino de Sousa Faria], seguiu para Béli a fim de tomar parte na «Operação Lumiar» (02Mai66) e em 04Mai66 para Madina do Boé, tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector em substituição da CCav 702 [24Jul64-14Mai66, do Cap Cav Fernando Luís Franco da Silva Ataíde], com Gr Comb destacados em Béli e Ché-Ché, este até 25Jan67 e ficando, entretanto, integrada no dispositivo e manobra do seu Batalhão [BCaç 1856]. 

Tendo sofrido numerosas e fortes flagelações aos aquartelamentos, foi rendida em 10Abr67 no subsector de Medina do Boé pela CCaç 1589 [12Ago66-09Mai68, do Cap Inf Henrique Vítor Guimarães Peres Brandão] e recolheu em 12Abr67 a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Ø – «OPERAÇÃO LUMIAR» - Adenda


● Realizada em 02Mai66 com forças da CCav 702, CCaç 1416, CCaç 1417, 1 GC/3.ª CCaç, 1 PRec 693 e GCmds “Os Diabólicos, onde executaram uma batida na região do Boé. Foi estabelecido contacto com 1 Gr In que reagiu ao fogo das NT, retirando para sul; aquele sofreu 6 mortos e outras baixas prováveis. As NT capturaram, além de material diverso, 1 espingarda e destruíram a tabanca. Foram recuperados 100 elementos da tabanca de Sinchuro, sob controlo In, os quais foram conduzidos com todos os seus haveres para Cabuca e depois para Nova Lamego. Nesta missão, faleceu o Soldado da CCaç 1417, Licínio Batista, natural de Ceira (Coimbra). (CECA; p 401).

Continua…



Fontes consultadas:

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 5.º Volume; Condecorações Militares Atribuídas; Tomo II; Cruz de Guerra, 1962-1965; Lisboa (1991).

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).

Ø Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

EAU; 06NOV2022

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Nota do editor:


Último poste da séroe > 15 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23711: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte VIII

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23733: Louvores e condecorações (13): O Batalhão de Caçadores Paraquedistas (BCP 12), condecorado em 10 de abril de 1968, com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe


BCP 12, composto pelas CCP 121, 122 e 123. Imagem da página do Facebook do nosso camarada Victor Tavares [ex-1º cabo paraquedista, CCP 121/ BCP 12, BA 12,  Bissalanca, 1972/74; tem mais de 45 referências no nosso blogue ]:


Decreto 48328, de 10 de Abril

Corpo emitente: Presidência do Conselho - Secretaria de Estado da Aeronáutica
Fonte: Diário do Governo n.º 86/1968, Série I de 1968-04-10.
Data: 1968-04-10
  
Sumário. Condecora o Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas n.º 12 com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe.

Texto do documento > Decreto 48328

O Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12, aquartelado na Guiné, apesar da sua recente constituição, rapidamente se impôs como uma unidade de elite, agressiva, corajosa e audaz, com um notável espírito de corpo e apurada técnica na contrassubversão. 

A intensa atividade operacional que vem desenvolvendo é verdadeiramente notável, traduzindo-se em inúmeras operações, desde operações com larga duração, como, por exemplo, a «Operação Marabunta», em que durante cerca de um mês atuou permanentemente fora dos seus aquartelamentos,  e que foi um exemplo de tenacidade, espírito de sacrifício e apurada técnica, até a rápidos golpes de mão, em que com duros contactos infligiu pesadas perdas em material e pessoal ao inimigo, como, por exemplo, na «Operação Trovão», em que capturou cerca de 5 t de material de guerra, e a «Operação Ciclone II», em que aniquilou completamente um bigrupo inimigo, eliminando cerca de 40 dos seus elementos e aprisionando os restantes 19, todos armados.

Recentemente o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 atuou com brilhantes resultados em zonas onde já há largo tempo não havia acções da nossa parte, tendo-se especialmente distinguido no Cantanhez, no Como e no Quitafine.

A par das suas ações de força de intervenção, tem ainda sabido captar simpatias entre a população civil, exercendo uma notável ação psicológica junto dela, com resultados muito vantajosos para a luta contra a subversão que ali se trava.

Por tudo o que fica exposto, o Batalhão tem-se destacado, através dos seus oficiais, sargentos e praças, que formam um grupo equilibrado e homogéneo, exemplo da tropa de intervenção como uma verdadeira unidade de elite, contribuindo, de maneira decisiva, para a viragem da situação no Sul da província, honrando assim as forças paraquedistas e tendo da sua atuação na província, considerada brilhante e altamente honrosa, resultando prestígio para a Força Aérea e admiração e reconhecimento das outras forças armadas, pelo que merece ser apontado como exemplo.

Usando da faculdade conferida pelo n.º 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo o seguinte:

Artigo único. 

É condecorado o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe, por satisfazer às condições referidas no artigo 13.º do Decreto 35667, de 28 de Maio de 1946.

Publique-se e cumpra-se como nele se contém. 

Paços do Governo da República, 10 de Abril de 1968. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ - António de Oliveira Salazar - Manuel Gomes de Araújo - Joaquim Moreira da Silva Cunha - Fernando Alberto de Oliveira.

Para ser publicado no Boletim Oficial da Guiné. - J. da Silva Cunha.

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Nota do editor:

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20680: Fotos à procura de... uma legenda (125): restos da vida de um combatente, capitão de infantaria, provável comandante de uma Companhia de Caçadores, CTIG, 1970/72... (Carlos Mota Ribeiro, Maia)


Quem será este camarada nosso, capitão de infantaria, provável comandante de uma companhia de caçadores, Guiné  1970/72? Desconhece-se a sua identidade e o nº da companhia... Foi galardoado, com uma cruz de guerra... A cerimónia em que ele foi condecorado terá sido num dos últimos 10 de junho, da década de 1970, antes do 25 de Abril de 1974... E, já agora, em que unidade militar da metrópole?

 Cruz de Guerra


Medalha das Campanhas de África... Na passadeira lê-se: Guiné de 1970-1972"

Duas condecorações e uma foto que tudo indica terem pertencido  a um  capitão de infantaria (, e comandante de uma companhia de caçadores), que terá estado no TO da Guiné entre 1970 e 1972.

Fotos (e legendas): © Carlos Mota Ribeiro (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Carlos Mota Ribeiro
1. Mensagem do  Carlos Mota Ribeiro, engenheiro, residente na Maia, filho do nosso querido amigo, camarada e coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, e que finalmente eu vou propor como novo membro da Tabanca Grande (*)

Data: quinta, 20/02/2020 à(s) 18:28
Assunto: Foto de Capitão - Guiné 1970-1972

Caro Luís Graça:

Antes de mais espero que esteja tudo bem contigo.

Necessito da tua ajuda, se possível claro.

Comprei, num leilão, um conjunto de duas condecorações juntamente com uma fotografia, ambos encontram-se em anexo.

Supostamente é de um combatente que esteve na frente da Guiné em 1970 a 1972, segundo a fivela da medalha das campanhas.

No entanto não sei o nome do senhor. Pela fotografia é um Capitão de infantaria (Caçadores).
Consegues-me ajudar a identificar o combatente em questão?

Envio também o correio para o meu pai (Magalhães Ribeiro) para ver se ele também conhece.

Grande e Forte Abraço.,
Atentamente.

Carlos Mota Ribeiro


2.  Comentário do editor Luís Graça:

Carlos: obrigado!... Mais uma tua "memorabilia" da Guiné com que nos honras... Fico sensibilizado pela tua "ternura" pelas memórias da Guiné, onde nunca estivestes, tanto quanto eu sei... Essa paixão pela Guiné, do tempo da guerra colonial, só pode ter sido passada pelo teu pai, nosso querido amigo, camarada "ranger" e coeditor do blogue, Eduardo Magalhães Ribeiro. Por estas e por outras, tu já merecias estar sentado, há muito, num lugar confortável, à sombr do nosso poilão. Se aceitares (, e o teu pai não se importar...), vou propor-te o lugar nº 805. Espero que aceites e que gostes... Como sabes, os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são... E nós ficamos orgulhosos de ti.

Submeti, entretanto, o teu pedido ao nosso camarada e colaborador permanente José Martins, para ver se ele nos pode ajudar... Ele é que sabe destas coisas... Aqui vai a mensagem que eu lhe reenviei para o seu "consultório militar";

"Zé: com o teu 'olho clínico',  o teu "perfil de Sherlock Holmes", e o teu vasto saber militar, vês se arranjas alguma pista... É uma cruz de guerra? E uma medalha comemorativas das campanhas de África? Onde terá sido a cerimónia de entrega das condecorações (observa o fundo, na foto do capitão)?... Terá sido nalgum 10 de junho? Trata-se de um quartel?... Há uma estátua e uma torre sineira... Mais difícil é identificar o capitão de infantaria (Guiné, 1970/72). De qualquer modo, a mim choca-lhe que estes "restos de vida" de camaradas nossos andem pelas Feira da Ladra, pela Feira da Vandoma, ou pelo OLX, vendidos por tuta e meia... Ainda bem, em todo o caso, foram parar âs mãos do filho de um camarada nosso que sabe dar valor a esta 'memorabilia'...

"Mando-te as imagens em separado... Abraço, Luis.

"PS - O Carlos Ribeiro, filho do Eduardo, deve te comprado 'estes restos da vida de um combatente', nosso camarada, na feira da Vandoma, Porto, ou  no OLX, ou coisa assim do género... Ele não especificou... Mas é um colecionador destes 'restos'  que o império teceu' "...

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20673: Fotos à procura de... uma legenda (118): o meu pai era um homem que cumpria a lei que proibia armas de guerra a civis... A tal pistola metralhadora FBP deve ter-lhe sido emprestada por alguém para a pose fotográfica (Lucinda Aranha, escritora)

terça-feira, 28 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19838: (In)citações (132): A cruz de guerra, coletiva, que ainda estou à espera de... receber, mais de meio século depois de um violentíssima emboscada em Darsalame, Baio, subsetor do Xime, em 1965 (João Crisóstomo, ex-alf mil inf, CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Enxalé >  CCAÇ 1439 (1965/67) > Algures numa operação no mato, a norte do Enxalé, o João Crisóstomo, ex-alf mil inf, e o seu "guarda-costas".

Foto: © João Crisóstomo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



João Crisóstomo (Nova Iorque)

1. Pedimos ao João Crisóstomo para comentar uma informação por email, de hoje, do nosso colaborador permanente José Martins: 

"Ainda sobre a CCAÇ 1439, há várias Cruz de Guerra, entre elas a do João Crisóstomo.  Sabiam?"... 

O João respondeu-nos hoje, logo de manhã,,, Nós sabíamos dessa cruz de guerra, que ele nunca chegara a receber.  Eis a explicação:

Confirmo.

Não fui nenhum herói, apenas quis (fui obrigado pelas circunstâncias a) defender a minha pele e a dos que estavam mesmo comigo. Eu explico:

Numa operação (a minha memória não me diz já o nome de código) (*), já perto do objectivo, fomos "surpreendidos/emboscados": pelo que depreendo, "esperavam-nos" e de repente o meu pelotão que tinha sido escolhido pelo Capitão Pires [, cmdt da CCAÇ 1439, sediada no Enxalé]  como ponta de lança, caiu num fogo cerrado de frente (a uns escassos metros 15 a 20 metros) e de ambos os lados, numa situação verdadeiramente desesperada. (**)

Vi imediatamente, de meus próprios olhos, um dos nossos guias a cair e dois outros logo a seguir gravemente feridos; felizmente que havia um pequena vala à nossa frente onde a coluna da frente na qual eu estava integrado com o Furriel [António Nunes] Lopes,   nos atirámos. 

Estávamos cortados do resto da companhia, e de eventuais reforços, que compunham esta força e nos seguiam mais para trás. O nosso capitão disse-me, mais tarde, que quando nos viu naquela situação, nos deu a todos por perdidos e que nada podia fazer. 

Eu apercebi-me da situação e berrei ao Furriel Lopes, que estava mesmo a meu lado, e ao meu "guarda-costas", que passassem a palavra (tudo isto foi em segundos, quase em simultâneo com o iniciar do fogo cerrado pelo IN) para, aos três,  lançarmos as granadas de mão e correr em cima deles. 

E foi o que nos salvou: Eles não esperavam por esta reação imediata da nossa parte e, ao verem-nos de pé a correr para eles, a lançar  metralha, levantaram-se e foi um fugir desenfreado. Nem as próprias armas que estavam usando levaram… Para eles tinha-se virado o feitiço contra o feiticeiro como depois verificámos pelos vários corpos IN abandonados, e outros "pormenores",  como sucedia sempre em semelhantes ocasiões.

Ao voltarmos à base o nosso Capitão Pires juntou a Companhia para dizer a todos que muitos dos que estavam ali deviam a sua vida e esta "secção de valentes" (, e mencionou vários nomes, incluindo o do furriel Lopes e o meu,) que não só se salvaram a eles mesmos como possivelmente salvaram muitos outros, pois a "emboscada tinha sido bem montada e teria sido uma gaita" se nós não tivéssemos reagido tão rápido e com tanta coragem como fizemos.

Passados tempos vieram louvores (que mais tarde foram transformados em cruzes de guerra) e entre os recipientes estavam o Capitão Pires, eu, o Furriel Lopes, o meu guarda-costas e, a título póstumo, o guia Adão.

Eu estranhei e disse ao Capitão Pires que todo o meu pelotão merecia a mesma cruz de guerra; mas que, se não quisessem dar a todo o pelotão, a dessem pelo menos a toda a secção que ia na frente: todos fizeram o mesmo, não sabia porque só davam a a condecoração a  alguns.

Depois de voltarmos da Guiné, quando me começaram a enviar cartas para eu e mais duas pessoas da minha família irmos receber a condecoração,  e foram várias vezes, do Funchal, Beja, Lisboa… eu respondi sempre que a iria receber se dessem a mesma medalha a todos os membros da secção da frente (, comandada pelo Furriel Lopes). Como nunca me responderam a este meu pedido (os "convites" eram sempre nas mesmas situações, sem mais nada),  eu nunca fui a parte nenhuma e a minha "cruz de guerra" nunca chegou a sair da gaveta.

Espero que fique explicada a situação. Isto não é "modéstia fingida" da minha parte: trata-se apenas de uma "questão de igualdade" que deve ser respeitada. (***).

Permito-me aproveitar este para dizer que esta reunião [, o XIV Encontro Nacional  da ] Tabanca Grande em 25 de Maio, em Monte Real, foi uma grande experiência para mim. Entre outros motivos, por ver soldados e generais no mesmo nível como simples seres humanos. Um "Bem hajam" a todos estes grandes camaradas com

Um abraço do
João de Nova Iorque.
________________

Notas do editor:

(*) Op Avante, 30 de agosto de 1965, acrescenta o "consultor militar" e colaborador permanente José Martins.

(**) Vd. poste de 14 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14874: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (3): Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro, 12 de julho de 2015 (Parte II): João Crisóstomo e António Nunes Lopes, do mesmo pelotão, da CCAÇ 1439, encontram-se 50 anos depois e falam, com emoção e dramatismo, da violenta emboscada que uma vez sofreram em Darsalame (Baio), no subsetor do Xime

(...) Vídeo (7' 31''). Alojado em You Tube > Luís Graça

Lourinhã > Ribamar > Praia de Porto Dinheiro > Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro > 12 de julho de 2015 > O João Crisóstomo e o António Nunes Lopes encontram-se ao fim de 50 anos... Pertenceram à mesma companhia e ao mesmo pelotão... E evocam aqui, com uma espantosa precisão de detalhes, e grande emoção, uma dos mais duros episódios de guerra por que passaram, em 1966, em Darsalame (Baio), na zona de Baio/Buruntoni, no Xime, que o PAIGC sempre "controlou" durante toda a guerra, e onde era inevitável haver "contacto" com as NT... Qual o nome verdadeiro do místico soldado, de alcunha "Penálti", de aqui se fala ? Pode ser que alguém saiba mais sobre este homem, que foi herói e desertor...

João Crisóstomo, que é natural de uma freguesia vizinha, A-dos-Cunhados, do concelho de Torres Vedras, fez-se à vida depois do regresso da guerra. Andou pela Europa e Brasil, até se fixar em 1975, nos EUA, onde hoje vive (em Nova Iorque) e que é a sua segunda pátria.

(***) Último poste da série > 16 de maio de  2019 > Guiné 61/74 - P19794: (In)citações (131): A dureza da nossa infância e a guerra (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BCAÇ 3872)

sábado, 23 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19614: A galeria dos meus heróis (25): E na hora da nossa morte, ámen! (Luís Graça)


Luís Graça, CCAÇ 12,  CIM Contuboel, julho de 1969
A galeria dos meus heróis> E na hora da nossa morte, ámen!


por Luís Graça







"O meu país é o que o mar não quer"

(Ruy Belo, 1973)




1. Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Estou destroçado!... Desta vez, a gaja, a “gaidja”, como tu lhe chamavas, a puta da gadanha da morte, trocou-te as voltas... Tanto a fintaste, na guerra, e foi ela agora que te pregou a rasteira em tempo de paz!... O xeque-mate, a última emboscada!...

Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas,  já gastas, cambadas,  engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente!... 


Os gatos pingados sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor da Nação.


Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... (Desculpa a ironia, bem sabes que tu e eu nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha...)

Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha.  Cedo de mais, pelo menos a avaliar pelas estatísticas da morte em Portugal. Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Não importa, para quem te amava, a morte bateu cedo demais à tua porta!

E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e limpando uma lágrima furtiva, quiçá hipócrita.(Mas quem sou eu para julgá-la?!) 

O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... “nua e crua”!... Porque um homem tem o direito de despedir-se da vida e de morrer em paz com a vida, com os outros e com Deus, sentenciou o capelão militar quando já estavas nos cuidados paliativos, no terminal da morte... 

Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela...

Também lá andei, na guerra,  mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras das Grandes Guerras...


2. Imagina, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente, mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de circunstância... Invade-me a angústia, o pânico... Não quero dececionar-te, muitos menos aos teus filhos e netos, aos teus amigos, aos teus camaradas, que eu não conheço ou conheço mal... Sobretudo não me peças para repetir essa grandessíssima mentira, com que te formataram, a de que “é doce morrer pela Pátria!”… A tua Pátria, a minha Pátria, a nossa Pátria ? Qual delas, afinal ? Fico confuso...

E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti ?... Não sei se fostes um bom amante, um bom homem, um bom pai, um bom cidadão ou até mesmo um bom militar. Sei que fostes um bom irmão, um bom amigo. E que até nem eras mau cavaleiro, ainda ganhaste uns concursos de equitação quando eras novo e não havia guerra... E talvez isso me baste, ou deveria bastar-me: foste um homem bom. É o mínimo que eu poderia dizer de ti. É o mínimo que se pode dizer de qualquer gajo minimamente decente.


3. Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo regozijo-me por estar vivo... Ou a
inda vivo, aos setenta!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... 

Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar... 

Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto... A nossa Igreja, na morte,  apodera-se de nós, do nosso cadáver, e incita-nos, aos vivos,  ao arrependimento, ao nojo, ao jejum e à abstinência, à secura de sentimentos e emoções... Que este é um vale de lágrimas, que a vida é uma passagem,  que estamos em trânsito, mas que no fim teremos, os justos, a eterna recompensa da glória de Deus, de nos podermos sentar à sua direita... Repara: nunca à sua esquerda...

É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?… Uma década nos separa, mas podíamos ser irmãos gémeos, sempre o disseste ou o desejaste…

Porra, não morreste de pé, de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso tio-avô José, no Cunene, em Angola…

Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, habituámo-nos a viver "do soldo e do saque", como ironizava o nosso avô materno, Francisco, professor primário, antimilitarista, republicano dos quatro costados,  que casou, contrariado, a filha numa família monárquica (e muito pouco liberal)… Mas o amor falou bem mais alto, o que era raríssimo naquele tempo, em que os casamentos eram de conveniência... A nossa mãe foi uma santa, uma heroína... Enfim, não dávamos apenas soldados, a verdade seja dita: demos também padres, missionários, administradores, mestres-escola e, seguramente, freiras e frades, pelo menos até 1834…

4. Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Mataste ? Nunca falámos disso, mas talvez tenhas matado na guerra, onde andámos os dois, cada um para seu lado, e com motivações bem diferentes… De resto, não se ganha uma cruz de guerra sem matar um ou mais inimigos, uma boa dúzia deles, no mínimo…

Torturaste ? Roubaste ? Desejaste a mulher do próximo ? Cometeste adultério ? Evocaste o santo nome de Deus em vão ? Adoraste o bezerro de ouro ?... Não sou juiz, muito menos o do Juizo Final… Mas não vou pôr as mãos no fogo por ti, no que diz respeito aos pecados mortais... E já nem sequer me lembro de quantos eram, os que nos ensinaram na catequese. Eu, dantes, sabia isso tudo na ponta da língua, a começar pelos dez mandamentos da lei de Deus... 

Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Mas, que importa?!, se amanhã, ao meio-dia, vais parar ao crematório. E tudo acaba lá, a mais de 900 graus centígrados. Ou talvez não, para nós que fomos ou ainda somos cristãos... Os gatos pingados, esses,  entregam um pote com as tuas cinzas à  viúva, tiram as luvas das mãos, tomam um banho, voltam a vestir o fato e a gravata, e metem-se no carro a caminho do aconchego do lar, doce lar… 


E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona…

5. Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio  que acabas de atravessar, na  barca de Caronte…

“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei... Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez,  com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…


E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!

“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”

Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!

“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...

Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...


6. “É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”

Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné... Já tu tinhas dado uma volta pelo Índico, em 1958, quando eu entrei para o Seminário… E mal sabias tu que a Pátria te voltaria a chamar, desta vez, para Angola, três ou quatro anos depois... Sempre receei ter que ir a Lisboa, com os pais, ao 10 de junho, para receber uma qualquer cruz de guerra tua, a título póstumo... Tinha esses pesadelos...

“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...” 


O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa...

Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria,  só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!

Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais e muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu estava no 10º ano, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha vocação para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique... 


Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné.

“Estava eu em Moçambique, fui lá que me cobri de honra e glória , e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito”…

Aos 32 anos!... E eu com 22!… Em boa verdade, não tive infância, nem adolescência nem juventude... Tal como tu… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra... 


Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação... 

À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo,  para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de...


7. Ai!, porra, já não me lembro do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos… Bula ou Buba ou Binta ou coisa parecida ?... Peço-te desculpa pela branca...  Como não me lembro também do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista,  se por acaso ainda for viva, como espero... 

Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão... E ainda tive que ir à Alemanha, ao Hospital Militar de Hamburgo... Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas.

Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira de Deus Pai.  

“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana essa, lá casou, tarde, com um chefe de finanças de Braga”…

Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais entender e perdoar....


"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"... 

Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, por detrás de um vidro espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola…

“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada por seres poderosos, prepotentes... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal,  um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...


Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...


“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”

E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um rabo de saias, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre… 


"Eh!, nada de aldrabices, essa era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro, um gajo do Sul..." 

Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições   que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro... Nem sei que idade tem, a 'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento, e que eu mal conheço. Felizmente que não tens filhos da brasileira...

“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim”…


Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida e na vida da tua família… Estou apenas irritado comigo próprio, zangado com com o resto do mundo... Estou eu a querer falar contigo, baixinho, a sussurrar contigo, que já estás no mundo dos mortos, estou eu aqui a não querer perturbar o sono eterno dos que viajam contigo na barca de Caronte, e ouço, ao lado, as gargalhadas despudoradas da tua viúva e dos seus amigos… Alguém, tenho impressão que um gajo do teu curso, deve estar a contar uma anedota porca do tempo do Colégio Militar ou da Academia...

Mas que falta de pudor e de respeito por ti, que estás em câmara ardente,  recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...


Acho que me vou retirar, com a tua licença, durmo mal, vou descansar um pouco, volto amanhã com a Manela, para rezarmos por ti e encomendarmos a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado,  que Deus também já lá tem... 


Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar:  antes de ir para a cama, e da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "Agora e  na hora da nossa morte, ámen!".
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de março de  2019 > Guiné 61/74 - P19564: A Galeria dos Meus Heróis (24): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - II (e última) Parte (Luís Graça)