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quarta-feira, 3 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25711: Historiografia da presença portuguesa em África (430): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Entrei nesta busca de documentos de João Barreto depois de ter participado numa cerimónia evocativa do autor da única História da Guiné na Casa de Goa. O seu neto Aires Barreto bem procurou saber mais informações sobre este avô que deixou a avó Julieta e a filha Genoveva em transe quando vinda de Margão até Lisboa descobriram que o médico partira para a Guiné com outra companhia. Só se encontrou esta fotografia de João Barreto que aqui se mostra, bem procurei mais elementos, nada se encontrou, é sabido que labutou na Guiné 12 anos, dali partiu altamente considerado, terá sido em Lisboa que pesquisou documentação e escreveu a sua História da Guiné, de que pouco se fala, injustiça habitual, não é recomendável louvarmos os pioneiros... As peças científicas existentes é este relatório de 1927, o artigo que escreveu sobre a doença do sono da Guiné em 1926 para a revista da Agência Geral das Colónias e a sua colaboração para um artigo sobre craniometria na Guiné Portuguesa, terá sido o fornecedor da matéria-prima, recolhida no cemitério de Bolama.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (2)

Mário Beja Santos

O primeiro trabalho que se conhece de João Barreto é o seu relatório apresentado em 1927 à Direção dos Serviços de Saúde e Higiene, será publicado pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama, em 1928. Ele é diretor do laboratório de análises do Hospital Civil e Militar de Bolama. Barreto faz parte de uma missão que procedeu a estudos que tinham por fim averiguar se a doença do sono existia, ou não, entre as populações indígenas da colónia; e, ao mesmo tempo, praticar a vacinação antivariólica e proceder a inquéritos sobre outras doenças tais como lepra, filarioses, bilharzioses, etc.

Confesso que me dou muito bem com estilo narrativo de João Barreto, este seu relatório sobre a doença do sono, apresentado à Direção dos Serviços de Saúde e Higiene da Guiné, é um modelo de rigor e até de divulgação científica: explica a missão, quem nela intervém, os inquiridos e aonde, o que historicamente se conhece da doença do sono, as outras doenças tropicais com que os médicos da missão se confrontarão, desde as elefantíases à lepra, o modo como se executou a missão diante colheitas de sangue, vacinação antivariólica, captura de insetos hematófagos. E para comprovar que conhece o contexto em que está a trabalhar não só descreve ao pormenor a demografia da circunscrição de Buba como esclarece que naquele local ocorreu uma guerra devastadora, a do Forreá, que teve um impacto económico medonho, arrasou as grandes promessas de uma agricultura próspera no Sul.

Este gosto pela análise histórica e observação social a propósito da demografia levam-no a escrever as razões do despovoamento e abandono daquele território da circunscrição de Buba, onde encontraram grande número de crianças doentes, e nem sempre é claro que uma boa parte dessas manifestações de doença possam ser atribuídas à doença do sono. E escreve:
“Os poucos elementos por nós colhidos não nos habilitam a tirar conclusões se há um parasitismo crónico entre os Fulas de Buba e se esta endemia contribuiu para o abandono da região. No entanto, há um facto que não podemos deixar de prestar atenção.
Dentro da colónia da Guiné notam-se duas regiões em que o decrescimento da população se acentua progressivamente não tendo até hoje quaisquer medidas de ordem administrativa conseguido evitar o seu lento abandono.

Estas zonas estão situadas uma, ao Norte do rio Cacheu, compreendendo quase toda a circunscrição de S. Domingos, e, outra, entre as sedes administrativas de Buba e Cacine, abrangendo os territórios banhados pelos rios Bolola, Tombali, Cumbijã e Cacine. Ora é precisamente nestas duas zonas desabitadas pelos indígenas que a produção e desenvolvimento das glossinas parece ter atingido o máximo da sua intensidade; e esta aparição exagerada da mosca, quer a consideremos como mera coincidência quer como elemento causal do despovoamento, não é de molde a favorecer a fixação do indígena.”


Este relatório vai culminar com a apresentação de providências sanitárias, que João Barreto enumera assim:
“Reconhecida a existência da tripanossomíase humana dentro das nossas fronteiras, cabe-nos o dever de organizar um plano de combate dessa endemia. Não vamos enumerá-las, uma por uma, porque nos parece desnecessário transcrever para aqui aquilo que já está escrito e assente entre os tratadistas.
Podemos estabelecer um programa completo de campanha anti-hipnótica socorrendo-nos das lições que as autoridades sanitárias portuguesas têm colhido com a prática destes serviços nas colónias de Angola, S. Tomé e Príncipe.

A execução destas providências na colónia está dependente de uma medida fundamental, que é a criação de uma Brigada Médica com caráter permanente, especialmente destinada a este fim, tornando-se, porém, obrigatória a inclusão da respetiva verba no orçamento ordinário da colónia. Esta Brigada Sanitária, constituída por um médico, dois enfermeiros e pessoa auxiliar, fixaria a sua sede em Cacine ou Buba, teria por missão, percorrer especialmente ao longo da fronteira, as circunscrições de Buba, Cacine, Gabu, Bafatá, Farim e S. Domingos, a fim de descobrir e tratar os indígenas atacados da doença do sono, executar as medidas agronómicas para a destruição ou afastamento das glossinas, mosquitos e outros insetos hematófagos; defender a fronteira terrestre contra a invasão de moléstias contagiosas, podendo também auxiliar a Polícia Pecuária contra a importação das epizootias; proceder à vacina antivariólica; tratar as doenças endémicas como, por exemplo, a boba e sífilis.”


Recorde-se que João Barreto já escrevera grande parte destas sugestões para limitar a doença do sono no artigo intitulado “Doenças do sono na Guiné Portuguesa” publicado no Boletim da Agência Geral das Colónias, ano 2.º, n.º 11, mais de 1926.

Temos agora a referência à sua colaboração no trabalho “Contribuição para o estudo antropológico da Guiné Portuguesa”, publicado em Coimbra na Imprensa da Universidade em 1932, onde se diz expressamente ser o primeiro trabalho acerca da craniometria dos indígenas da Guiné Portuguesa. Recorde-se que nesta época existia doutrina, hoje totalmente contestada e abolida, que a craniometria permitiria conhecer as diferenças rácicas, chegar ao conhecimento dos indicadores de inteligência, etc., houve filosofia nazi neste sentido, o objetivo era conhecer as características dos homens superiores e das raças inferiores. O capitão médico João Barreto foi o fornecedor de um conjunto de crânios que os outros dois autores do artigo, Pires de Lima e Constâncio Mascarenhas, introduziram informação de índole craniométrica.

Nada mais conhecemos da obra científica de João Barreto, muito se agradece se o leitor puder contribuir com quaisquer informações sobre outros trabalhos deste historiador amador, autor da única História da Guiné.

Trata-se da única fotografia que se conhece do médio João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Mapa étnico da Guiné, seguramente enviado por João Barreto aos seus colegas
Doente portador da doença do sono
A lepra, um flagelo que ainda não está completamente erradicado
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Nota do editor

Último post da série de 26 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25685: Historiografia da presença portuguesa em África (429): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25685: Historiografia da presença portuguesa em África (429): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
A partir da circunstância de ter comparecido a uma homenagem dedicada a João Barreto pelo seu neto Aires Barreto e historiador Valentino Viegas, que ocorreu na Casa de Goa, deu-me para procurar conhecer melhor a atividade deste facultativo que veio de Margão para Bolama, e tudo leva a crer que teve um comportamento admirável, de tal sorte que quando partiu para Lisboa foi tratado como cidadão de mérito bolamense. Só encontrei dois trabalhos a que o seu nome está ligado, este relatório sobre a doença do sono, onde a tendência para a investigação histórica já é patente, a ponto, como aqui se faz notar, ele parece um historiador a descrever a guerra do Forreá, e dá razões quase de caráter sociológico para a localização da doença do sono; e outro trabalho que é o primeiro que se escreveu acerca da craniometria dos indígenas da Guiné Portuguesa. Se algum leitor conhecer outra obra de João Barreto, peço-lhe o favor de me informar.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1)

Mário Beja Santos

O primeiro trabalho que se conhece de João Barreto é o seu relatório apresentado em 1927 à Direção dos Serviços de Saúde e Higiene, será publicado pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama, em 1928. Ele é diretor do laboratório de análise do Hospital Civil e Militar de Bolama. Barreto faz parte de uma missão que procedeu a estudos que tinham por fim averiguar se a doença do sono existia, ou não, entre as populações indígenas da colónia; e, ao mesmo tempo, praticar a vacinação antivariólica e proceder a inquéritos sobre outras doenças tais como lepra, filarioses, bilharzioses, etc. Barreto trabalhava com outro facultativo, Fernando Leite Noronha, andaram durante algumas semanas na circunscrição de Buba e concluíram que a moléstia do sono existia entre os indígenas de uma forma endémica. Escreverá mesmo que a extensão da tripanossomíase era enorme. Começa por informar que a referência mais antiga que encontrou da doença do sono na Guiné vinha num relatório enviado em 1885, da autoria de João Pedro Esmael Moniz, descrevendo três moléstias tropicais: a tripanossomíase, a uncinária e a bilharziose. Dirá depois que irão encontrar situações de anasarca, anemia palustre, caquexia palustre, disenteria crónica, doença do sono, febre perniciosa, febre renitente palustre e febre biliosa hematúria. Barreto faz um vasto reportório de informações retidas de diferentes serviços sanitários, à escala internacional.

Deverá ter incomodado os decisores políticos da época ao dizer coisas como estas: “Pode dizer-se que, até aqui, a função dos médicos na Guiné se tem limitado a assistência clínica à população civilizada e pouca aos indígenas. A parte puramente de investigação científica tem sido bastante descurada, há pouco mais do que a higiene e o saneamento da colónia.”

A missão médica começou os trabalhos em meados de maio de 1927, visitaram primeiramente povoações indígenas da ilha de Bolama, uma inspeção superficial a Mancanhas, mas a repartição de saúde deu instruções para marcharem imediatamente para Buba. “No desempenho das nossas funções clínicas tivemos conhecimento de três casos de lepra na ilha de Bolama, casos de elefantíases, admitia-se haver casos de tuberculose e não se encontraram casos de bilharziose.” Visitaram em Buba quase todas as tabancas, procedendo à inspeção médica dos indígenas para a verificação clínica da doença do sono, elefantíase, lepra e qualquer outra doença suspeita; fizeram colheitas de sangue, procedeu-se à vacinação antivariólica e à captura de insetos hematófagos, em especial, glossinas.

João Barreto não deve ter resistido à ideia de que cabia ali lugar apresentar dados de investigação histórica, dado o quadro demográfico da região em análise, a circunscrição de Buba, quis fazer a quem o lia um relato da história recente, vale a pena lê-lo com atenção:
“Entre os diferentes fatores que podem contribuir para a despopulação de um território, cremos que na circunscrição de Buba deveriam ter atuado dois mais importantes: um ligado à política e à administração indígena, e outro, à insalubridade da região. É de data recente a infiltração dos Fulas-Forros entre os Biafadas do Corubal. Tendo-se estabelecido pacificamente como colonos, tributários daqueles, os Fulas foram aguardando uma ocasião oportuna para se libertarem dos seus senhores e essa ocasião foi-lhes proporcionada por um régulo Biafada que solicitou auxílio dos Fulas para castigar a rebeldia da tabanca de Bacar Guidali, construída em 1852 por uma fidalga Biafada. Os Fulas-Forros não só prestaram auxílio na destruição da tabanca referida, mas acabaram por expulsar os Biafadas de uma e de outra margem do Corubal, organizando um regulado independente a que deram o nome de Forreá, isto é, terra de liberdade.
Mas no intuito de satisfazer os principais cabos de guerra, a região foi dividida entre os chefes, Bacar Guidali, Bacar Demba (eleito régulo), Sambel Tombon e Ogô Maná, de que resultou, como era de prever, uma série interminável de lutas e rivalidades.

Alguns comerciantes portugueses estabelecidos de 1874, na margem direita do rio Bolola, lembraram-se então de, para garantia das suas vidas e haveres ameaçados, pedir ao Governo de Bissau uma força armada em 1879, datando desse ano o estabelecimento de presídio militar de Buba.
Não tardou, porém, que as dissidências entre os Fula-Forros, Fulas-Pretos, Futas-Fulas e Biafadas destruíssem esta relativa prosperidade. Desde 1880 a 1890, poucos meses decorreram sem que os comandantes militares de Buba tivessem de registar assaltos às tabancas, raptos de mulheres, roubos de gado, mortos, assassinatos e guerras, entre as diversas tribos capitaneadas por Bacar Guidali, Paté Coiada, Paté Bolola, Daman Iaiá e outros. Essas lutas, pondo a região toda em estado permanente de guerra, acabaram por dizimar uma grande parte da população pela morte, fome e fuga, e só tiveram fim depois da derrota de Paté Coiada por intervenção do Governo português. Pode-se, por isso, dizer que há pouco mais de 20 anos esta região entrou num período de normalidade.
Os factos que acabamos de expor parece-nos terem sido causa principal dos despovoamento e abandono desse território aliás fértil.”


E muda de linha de observação, temos agora o médico tropicalista: “Há nesta região um outro facto que chama desde logo a atenção do observador: é o grande número de crianças portadores de poliadenites e de cicatrizes da extração de gânglios submaxilares. As adenites suboccipitais observadas nessas crianças poder-se-iam em grande parte às dermatoses do couro cabeludo. Quanto à hipertrofia dos gânglios cervicais e submaxilares observada em 80% das crianças examinadas, não nos foi fácil encontrar uma explicação plausível e parece-nos que este assunto tem de ser estudado demoradamente. Os indígenas atribuem-na invariavelmente à doença do sono. Até que ponto é verdadeira esta hipótese?”

Barreto procura uma explicação para esses fenómenos, há um facto merecedor de atenção, como ele pretende analisar:
“Dentro da colónia da Guiné notam-se duas regiões em que o decrescimento da população de acentua progressivamente, não tendo até hoje quaisquer medidas de ordem administrativa conseguido evitar o seu lento abandono e despovoamento.
Estas zonas estão situadas uma ao norte do rio Cacheu, compreendendo quase todas a circunscrição de S. Domingos, e outra, entre as sedes administrativas de Buba e Cacine, abrangendo os territórios banhados pelos rios Bolola, Tombali, Cumbijã e Cacine. Ora, é precisamente nestas duas zonas desabitadas pelos indígenas que a produção e desenvolvimento das glossinas parece ter atingido o máximo da sua intensidade; e essa aparição exagerada da mosca, quer a consideremos como mera coincidência quer como elemento causal do despovoamento não é de molde a favorecer a fixação do indígena nem tão pouco dos seus rebanhos, pela facilidade da transmissão das tripanossomíases animais, podendo ser que este último facto tenha levado os indígenas a procurarem de preferência localidades menos visitadas pelas glossinas.”

Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Mapa étnico da Guiné, seguramente enviado por João Barreto aos seus colegas
Crânios enviados por João Barreto para o trabalho de equipa, tratou-se de um artigo em homenagem ao professor J. Leite Vasconcelos

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 19 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25659: Historiografia da presença portuguesa em África (428): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (7) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média





Fotos: cortesia de Alice Cruz (2009) (*)



1. Até ao séc. XVI, há três grandes epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. Vamos abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19. 

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam  disponíveis na minha página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas as citações e referências bibliográficas.

E a melhor maneira é ver como a experiência da doença e da morte ficou fixada na linguagem do dia-a-dia, ou melhor, nos provérbios populares enquanto "representações socais".

Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática:

(i) Está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");

(ii) E, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569, no reinado de Dom Sebastião: terá morto um terço da população da cidade, qualquer coisa como 60 mil);

(iii) É vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode");

(iv) Se não acaba na morte, é de prognóstico reservado ("A doença vem a cavalo e vai a pé"; "O mal vem às braçadas e sai às polegadas");

(v) É quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");

(vi) E que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam");


(vii) Por fim, a doença é repulsiva, estigmatizante e ruinosa para o indivíduo e a família ("Não tenhas medo que eu não tenho lepra"; "Em casa de doente o lugar não se aquente"; Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"; "Um doente come pouco e gasta muito").

2. Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime, ou seja, até à Revolução Francesa) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.

Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa.

Durante a Idade Média, não há sequer um clara noção do que seja a saúde, individual ou colectiva. A única excepção são a lepra e as epidemias (, nomeadamente de peste) que devastam a Europa medieval.

O conceito positivo e multidimensional de saúde que temos hoje em dia, e que remonta à criação, em 1948, da OMS - Organização Mundial de Saúde, seria então completamente ininteligível para os nossos antepassados medievos.

A brutalidades dos números da morbimortalidade, a terrível impotência humana, o triunfo da morte e a exclusão social caracterizavam, então, a experiência da doença. Com as epidemias medievais, não há doentes: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte. Inelutável, indizível e fatal, a doença só tem uma saída: a morte ou a exclusão social (, que era uma forma de morte em vida). 


A resposta das nossas sociedades era a do internamento forçado e da brutal segregação, sexual, social e espacial, dos doentes. Foi assim que lidámos, por exemplo, com a lepra. E continuámos a lidar (ou somos tentados a continuar a lidar: veja-se o "lazareto", o "manicómio" ou o "sanatório" nos finais do séc. XIX/princípios do séc. XX;  os "hospitais-colónias" e os "sidatórios", no séc. XX)...


A lepra, a Doença por Excelência 


3. No caso da lepra, e devido ao terror infundido pela doença e à crença infundada no contágio pela simples presença do leproso, os doentes (alguns sendo portadores de simples afecções cutâneas!) eram apartados da comunidade e da família, despojados dos seus bens, submetidos a um macabro simulacro de funeral em vida, além de serem obrigados a viver da caridade, a usar um vestuário distintivo e a fazer-se anunciar através do toque de matracas, junto às povoações e nas vias públicas. Eram literalmente apartados dos vivos.

Hoje sabemos que a doença só é transmitida por contacto físico íntimo e prolongado (por ex., entre mãe e filho ou nas relações sexuais). Mas na altura o conhecimento médico da doença era grosseiro, o que explica os erros de diagnóstico cometidos e o radicalismo das soluções adotadas pelo Ocidente cristão. Os suspeitos eram então examinados por júris, compostos por autoridades civis e religiosas, incluindo um médico ou um cirurgião.

4. A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes...Era uma doença "repugante", caracterizada sobretudo pela desfiguração do rosto: provoca(va) danos principalmente nos nervos periféricos (nervos localizados no exterior do cérebro e da medula espinhal), na pele, nos testículos, nos olhos e nas membranas mucosas do nariz e da garganta...

No baixo latim infirmus (doente), tal como malaud (na língua occitana), assumia por vezes o sentido específico de leproso.

Causada pelo bacilo 
Mycobacterium Leprae  ou Mycobacterium 
Lepromatosis [só identificado em 1874 pelo norueguês Gerhard E.A. Hansen (1841-192), que estará em Lisboa, em 1906, sendo um das vedetas do XV Congresso Internacional de Medicina ), era conhecida desde a Antiguidade (vd. por ex., Bíblia, Levítico, 13 e 14: Deus, através de Moisés e Aarão, divide os judeus em puros e impuros, sendo estes os portadores de lepra).

Em Portugal chegou a haver "mais de sesenta  casas de São Lázaro, predominantemente no Norte e no litoral", fruto da caridade cristão, manifestada sob a forma de doações e legados. As mais importantes eram "as gafarias de Coimbra, Guimarães e Santarém, além do Hospital de São Lázaro, no termo de Lisboa. (***)

5. Desde o Séc. VI, diversos concílios da Igreja Católica (Orleães, Arles, Lyon) recomendavam o isolamento dos doentes, se bem que na altura a lepra ainda fosse endémica, ou seja não epidémica, localizada ou circunscrita a uma dada região

Com as Cruzadas (as expedições cristãs para a "reconquista" dos lugares santos de Jesrusalém, ocupados pelos muçulmanos), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Séc. XIII.

A partir do Séc. XV, esta terrível doença que marcou o imaginário medieval, tenderá a regredir no Ocidente, Crê-se que a exclusão social na Idade Média, a par da imposição de interditos sexuais, pode em parte explicar este recuo da lepra...

A desafectação progressiva das leprosarias (em Portugal, gafarais) vai, por seu turno, fazer aumentar a rede hospitalar, nomeadamente em países como a França.

6. No nosso caso, as gafarias obedeceriam, a "três tipos de governo" (i) As criadas por iniciativa do rei, e dirigidas por representantes seus; (ii) ass municipais (por exemplo, Braga, Guimarães, Lisboa e Porto); e, finalmente, (iii) as estabelecidas pelos próprios gafos e por eles administradas, embora sob protecção régia.

Embora associada à promiscuidade e à pobreza, a lepra também vitimava gente da alta nobreza e do alto clero;  D. Afonso II, por exemplo, morreu em 1223, vítima de lepra. Tal como seu pai, D. Sancho I.

Algumas destas gafarias sobreviveram até ao séc. XX, como foi o caso da Gafaria para Lázaros e Lázaras (ma prática, para "doentes de chagas incuráveis", anexada em 1721, ainda fazia parte dos "hospitais menores" da Misericórdia do Porto, no início de década de 1930.

De qualquer modo, quando comparado com as regiões europeias transpirinaicas (por ex., a França), o nosso país terá tido poucas gafarias. Só em França, no Século XIII, contavam-se mais de duas mil. Fora da Pensínsula Ibérica, o desenvolvimento da doença terá sido muito maior, a partir sobretudo das Cruzadas (finais do Séc. XI).

Tal facto tende a ser imputado a uma menor mobilidade das populações cristãs peninsulares: estando empenhadas na "Reconquista" até tardiamente (em Portugal até meados do séc. XIII), não teriam podido (nem precisado de) ir combater ou peregrinar à Terra Santa. Recorde-se que o último reino muçulmano, o de Granada, só cairá nas mãos dos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492.

No reinado de D.Afonso IV, há já notícias de abusos na administração dos bens destinados aos "gafos". Tal facto, aliás bastante corrente, conduzirá à intervenção do poder régio, nomeadamente no caso do Hospital de São Lázaro de Coimbra. Assim, por carta de 30 de março de 1326, ordenava-se ao maioral e ao escrivão da gafaria de Coimbra que se não dessem rações a pessoas de fora que, além de sãs, tivessem com que se sustentar.







Guiné-Bissau > Bissau > Cumura > Missão Católica e Hospital de Cumura > 14 de Dezembro de 2009 &gt > 18h > Mural com as seguintes inscrições: "Obrigado, Bispo Settimio"; "X Aniversário da Morte de Dom Settimio"; "A Verdade Vos Libertará".

O missionário Settimio Arturo Ferrazzetta, da ordem franciscana, foi o 1º bispo da diocese de Bissau, criada em 1977. "Homem Grande" da Igreja Católica de África, nasceu em Itália, em 8 de Dezembro de 1924, e morreu, com fama de santidade, em Bissau, em 26 de Janeiro de 1999.


O Hospital da Cumura foi construído nos anos 50 pelos Franciscanos de Veneza. Dedicava-se à Lepra. Hoje também, mas sobretudo à Sida e à Tuberculose.(**)

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



7. Até ao final do Século XIV, não parece haver ainda uma clara distinção semântica (nem muito menos conceptual) entre gafarias, albergarias, mercearias, hospícios, hospitais e estabelecimentos assistenciais similares. 

Algumas gafarias, como a de Lisboa (fundada provavelmente pelos Hospitalários, por volta de 1220) e a de Coimbra eram também conhecidas como hospitais de S. Lázaro, mas na prática não prestavam quaisquer tipos de cuidados, limitando-se pura e simplesmente a segregar os doentes em relação ao resto da população

Não temos números sob os "gafos" ou leprosos no nosso país e o resto da Europa. No séc. XVI ainda existiam: por exemplo, em 1514, dá-se por concluída a reforma geral dos legados pios e estabelecimentos assistenciais, com a publicação do Regimento de como os contadores das comarcas hão-de prover sobre as capelas, hospitais, albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e residos.


E hoje ainda está longe de ter sido erradicada. Na Guiné-Bissau, por exemplo, é ainda endémica. E, para se evitar o estigma social, já não há "leprosos", mas sim "doentes de Hansen". Mas de acordo com um inquérito de 1937, em Portugal, onde a doença começou a recrudescer a partir do séc. XVIII, haveria 1.127 casos, concentrados sobretudo na região Centro (distritos de Viseu, Aveiro, Coimbra e Leiria). No Sul, havia duas manchas, nos distritos de Santarém e Faro. (***)


8. Com o tempo, as gafarias ou leprosarias destinadas ao internamento dos "gafos" ou leprosos, passam, mais tarde a ser conhecidas por lazaretos, termo que deriva do facto de a lepra ser então igualmente conhecida como o mal de S. Lázaro. 

Os lazaretos, com a reforma da saúde pública, liderada por Ricardo Jorge (1899-1901), passam a ter outras funções,  nomeadamente o confinamento de passageiros, oriundos, em geral por via marítima, de países ou portos com surtos epidémicos de doenças "exótico-pestilenciais": por exempo, o lazareto da Trafaria (que já existia no séc. XVI, com essa função).

Endémica em Portugal, a lepra chega aos nossos dias: nos anos 40 do séc. XX,  é criado, sob inspiração de Bissaia Barreto (Castanheira de Pera, 1886-Lisboa, 1974), o Hospital-Colónia Rovisco Pais, na Tocha, que chegou a te
r um milhar de internados. (O internamento era compulsivo.)

Este estabelecimento assistencial foi criado graças à herança de José Rovisco Pais (Sousel, 1862 — Lisboa, 1932), um grande proprietário, lavrador, industral de cervejas, dono da Cervejaria Trindade, filantropo: em testamento doou aos Hospitais Civis de Lisboa as suas herdades de Pegões, qualquer coisa com sete mil hectares, que deram origem depois,  nos anos 50, à Colónia Agrícola de Pegões.

O Hospital-Colónia Rovisco Pais ficou conhecido pela sua natureza repressiva, senão mesmo totalitária (*). 

Nascido em 1947, no auge do Estado Novo, e na sequência da "luta contra a lepra"   (D.L. nº 36450, de 2 de Agosto de 1947)(***), a disciplina era implacável: até à década de 1960, havia uma cadeia privativa e os próprios médicos puniam os doentes com penas de prisão, por simples faltas ao regulamento como sair para o exterior sem autorização.

A partir de 1996, nas antigas nas instalações do Hospital-Colónia Rosvisco Pais, antiga "Leprosaria Nacional",  foi instalado o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro - Rovisco Pais.

(Continua)
_____________

Notas do autor:

(*) Alice Cruz - O Hospital-Colónia Rovisco Pais: a última leprosaria portuguesa e os universos contingentes da experiência e da memória. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.16 nº 2, Rio de Janeiro,  Apr/June 2009 [Consult em 1/4/2020. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-59702009000200008].


RESUMO

"O Hospital-Colónia Rovisco Pais foi inaugurado em Portugal na década de 1940, com vistas ao tratamento, estudo e profilaxia da lepra, de acordo com modelo de internamento compulsivo, cuja configuração remete ao conceito de instituição total proposto por Goffman. Trata-se de um importante projeto higienista do Estado Novo. O seu paradigma educativo combinava elementos inspirados na medicina social europeia e na ideologia do regime ditatorial paternalista português. 


"O Hospital-Colónia será aqui ponderado como dispositivo disciplinar, desenvolvendo-se reflexão acerca do confronto entre o poder disciplinar e a experiência. A memória emerge como instrumento contingente para o acesso às práticas e aos significados intersticiais tecidos no quotidiano do Hospital-Colónia, buscando-se auscultar a experiência de seus ex-doentes como sujeitos políticos."


(**) Vd. poste de  21 de abril de  2011 > Guiné 63/74 - P8146: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (8): 14/12/2009, das 16 às 18h: Visita ao hospital de Cumura: lepra, sida, tuberculose... e compaixão

Vd. também poste de 13 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)

(***) D.L. nº 36450, de 2 de Agosto de 1947: "Organiza o regime jurídico do combate à lepra. Cria o Instituto de Assistência aos Leprosos, estabelecendo a sua orgânica, competências e funcionamento. Determina que a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, passe a denominar-se Hospital-Colónia Rovisco Pais, que fica subordinado administrativamente aos Hospitais Civis de Lisboa, e dispõe sobre a sua estrutura, gestão financeira e assistência médica aos doentes."

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13131: Notas de leitura (589): "Os Frades Menores de Veneza na Guiné-Bissau: 50 anos de história para recordar (1955-2005)", por Fabio Longo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
Trata-se de um relato inspirado na bondade e dedicação ilimitada de franciscanos italianos implantados na Guiné desde 1955. É um relato tocante, pelo que se constrói e a seguir se vê destruído, basta uma guerra civil.
Estão aqui páginas de ouro da vida missionária de uma Guiné que deploravelmente foi esquecida durante séculos, isto sem deixar o reparo de que o clima era adverso para trabalho em profundidade, que é propósito básico do missionário.
Obra rica nas ilustrações, desvela igualmente almas esplendorosas como a de Settimio Ferrazzetta, sepultado na Catedral de Bissau.

Um abraço do
Mário


Os Frades Menores de Veneza na Guiné-Bissau: 50 anos de história para recordar (1955-2005)

Beja Santos

É um registo tocante, por vezes a roçar o épico, desvelam-se aqui santos, gente mais compassiva é difícil de imaginar que estes franciscanos vénetos que aportaram à Guiné Portuguesa em 1955 e aqui têm operado maravilhas em prol do desenvolvimento humano e das convicções cristãs. O autor da narrativa chama-se Fábio Longo que trabalhou a documentação recolhida pelo Padre Rino Furlato, arquivista da diocese de Bissau. O autor destaca vários objetivos para esta publicação, penso que o mais carregado de intensão é o último, onde ele escreve que pretende dar o conhecimento de como permanece intacto o ideal evangélico de S. Francisco de Assis: o amor e o cuidado dos homens mais infelizes e abandonados, os leprosos e os mais pobres entre os pobres do mundo, afinal o que fizeram os Frades Menores vénetos desde 1955 na Guiné: Padre Settimio Ferrazzetta, Frade Giuseppe Andreatt, Frade Epifanio Cardin, seguidos depois por muitos outros, religiosos, religiosas e leigos.

Começa por apresentar a Guiné-Bissau em termos geográfico-históricos, sumaria a evangelização da Guiné-Bissau que, diga-se em abono da verdade, é paupérrima e coroada de insucessos. Pela Guiné andaram franciscanos em 1973, a supressão das ordens religiosas em Portugal, em 1834, deitou por terra o esforço missionário destes frades que evangelizaram em Farim, Geba e Ziguinchor. Os missionários franciscanos portugueses regressaram em 1932, desembarcaram em Bolama e alcançaram Cacheu, logo perceberam que tudo tinha voltado à estaca zero. No seu primeiro relatório apelaram a pelo menos 20/25 sacerdotes, dada a impossibilidade dos franciscanos portugueses corresponderem ao pedido apelou-se ao Instituto Pontifício para as Missões Estrangeiras, de Milão, que aceitou enviar um primeiro grupo de sacerdotes e um irmão leigo, em 1947, data da primeira chegada de missionários não-portugueses. Nesta época já vigoram os princípios missionários combonianos (com origem em Dom Daniele Comboni): formação de catequistas, uma das bases da evangelização; seminários diocesanos e casas de noviciado, enfim, preparar no local os servidores religiosos que atuaram no local.

A chegada dos três primeiros franciscanos a bordo do Ana Mafalda, a sua preparação em Bor e depois a sua ida para a Cumura, junto à leprosaria dão conta da atividade que aqui se desenrolará, em torno de uma aldeia habitada pela etnia Papel. O que ali existia era uma aldeia com 18 palhotas, terra batida, todas sem água e sem luz, habitadas por 205 leprosos, desfigurados no rosto, corroídos na pele e na carne, mutilados nos membros, sem mãos, sem dedos, com os pés totalmente deformados, alguns com os braços e o corpo carregados de feridas nauseabundas. É nesta atmosfera de pobreza extrema e de morbilidade intensa que os franciscanos começam a sua ação. Settimio Ferrazzetta escreve em julho de 1955: “Era a primeira vez que via uma leprosaria. Esta primeira visita lançou-me um pouco o pavor na alma, não pela sensação de me encontrar defronte à terrível doença, não pelo medo de me infetar, mas pelo ambiente em que vivem estes pobres leprosos”. Lançam-se ao trabalho, assistem e medicam diariamente os doentes, procedem ao exame bacteriológico e clínico, distribuem géneros alimentícios, dão catequese. Depois começam a chegar reforços. Em 1966, é criada a Missão Católica de Cumura, chegam os donativos, são postos de pé novos pavilhões, arejados, com leitos de ferro, colchões, lençóis e redes mosquiteiras. Settimio Ferrazzetta escreve em 1970, a propósito dos leprosos convertidos: “É algo de comovente ver estes pobres infelizes rezar: o terço não desliza bem em suas mãos, porque… perderam os dedos, por isso querem terços de grãos muito grossos! Pobrezinhos! Mas numa fé profunda e vivida encontraram a resignação cristã. É muito fácil encontrar leprosos no nosso hospital que dizem: O bom Deus é para todos, eu sofro, mas Ele o sabe, amanhã me pagará os meus sofrimentos, amanhã Deus me dará as minhas mãos e os meus pés, o meu corpo será belo como o corpo dos outros, e eu viverei feliz na eternidade”.

O trabalho é insano, constroem-se casas, jardins para os filhos dos leprosos, presta-se assistência aos pobres, a guerra de 1998-1999 agravou as condições de vida dos guineenses, a ajuda das Missões intensificou-se, procuram oferecer comida, vestuário, sabão, o indispensável. Como o Estado já não pode responder às necessidades básicas, os franciscanos constroem um hospital-maternidade, abrem-se postos de socorro, a atividade assistencial alastra. O livro elenca a edificação de igrejas e capelas na Cumura, em Bor, Prábis, em Cumura-Papel. O reconhecimento das gentes é cada vez maior, são tratados como os pais. O primeiro batismo foi administrado a um adolescente em fim de vida na leprosaria, crescem as conversões, aumentam os catequistas, as escolas de Cumura ganham notoriedade até se transformarem em complexo escolar. A partir dos anos 1970, Settimio Ferrazzetta começa a enviar para Portugal e Itália alguns jovens guineenses com a finalidade de formar gente preparada para favorecer o progresso social e cultural do país. Infelizmente, poucos voltaram à Guiné-Bissau, defraudando as esperanças neles depositadas pelos missionários. A promoção social, na lógica missionária é a de “não dar um peixe sem ensinar a pescar”, assim surgem a carpintaria e a oficina mecânica.

Conta-se a infausta Missão de Bolama, encetada em 1956 e interrompida em 1962 por razões do início dos focos independentistas, os padres foram afastados. De igual modo são descritas as missões de Brá, de Nhoma, de Safim, que foram profundamente afetadas pela guerra civil. Pelo adiante são descritas com mais pormenor as missões de Quinhamel e de Blom e, por último a Missão de Caboxanque, na região de Tombali.

A narrativa desnuda-nos a alma santa de Settimio Ferrazzetta, primeiro bispo da Guiné-Bissau, sacerdote da paz e do diálogo, prosélito e evangelizador, a ele, tanto como a Cumura, ficam associadas iniciativas como os seminaristas que mandou estudar filosofia e teologia no Senegal enquanto não se construiu o seminário diocesano em Bissau, depois a construção do seminário maior e casa de formação para aspirantes a irmãs guineenses. Morre imprevistamente mal tinha regressado à Guiné, em janeiro de 1999, deixou consternada toda a Guiné, fora, nesses tempos duríssimos da guerra civil uma figura eloquente da mediação e da tentativa da resolução pacífica da contenda entre Nino Vieira e a Junta Militar. A narrativa prossegue apresentando outros frades que acompanharam Settimio Ferrazzetta desde a primeira hora aquelas que já partiram deste mundo. É dado igualmente destaque à Ordem Franciscana Secular na Guiné-Bissau, aos muitos voluntários que dão a sua generosidade ao serviço dos guineenses, merece destaque Vittorio Romano Bicego, um antigo sargento do Corpo dos Alpinos, depois empregado nos lanifícios, que se dedicou de alma e coração à construção de missões em Tite, Ingoré e Bendanda e na região de Tombali criou uma propriedade agrícola modelo chamada “São Francisco da Floresta”.

Enfim, um documento acerca da exaltação do amor de vultos excecionais que têm doado a sua vida à Guiné.
Para que conste.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13119: Notas de leitura (587): "Um Sorriso para a Democracia na Guiné-Bissau", por Onofre dos Santos (Mário Beja Santos)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8133: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (5): A lepra (Rui Silva)

1. Mensagem de Rui Silva* (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 16 de Abril de 2011:

Caros amigos Luís e Vinhal.
Em anexo, envio mais um trabalho na sequência dos anteriores (“Doenças e outros problemas de saúde…”), desta vez sobre a Lepra (V).

Recebam um grande abraço mais votos da melhor saúde.
Rui Silva



2. Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

DOENÇAS E OUTROS PROBLEMAS DE SAÚDE (ou de integridade física) QUE A CCAÇ 816 TEVE DE ENFRENTAR DURANTE A SUA CAMPANHA NA GUINÉ PORTUGUESA (Bissorã – Olossato – Mansoa 1965/67)

(I) Paludismo (P7012)
(II) Matacanha (P7138)
(III) Formiga “baga-baga” (P7342)
(IV) Abelhas (P7674)
(V) Lepra
(VI) Doença do sono

Não é minha intenção ao “falar” aqui de doenças e outros problemas de saúde que afligiam os militares da 816 na ex-Guiné Portuguesa imiscuir-me em áreas para as quais não estou habilitado (áreas de Medicina Geral, Medicina Tropical, Biologia, etc.) mas, tão só, contar aquilo, como eu, e enquanto leigo em tais matérias, vi, ajuizei e senti.

Assim:
As 4 primeiras, a Companhia sentiu-as bem na pele (ou no corpo). As 2 últimas (Lepra e Doença do sono), embora as constatássemos - houve mesmo contactos directos de elementos da Companhia com leprosos (foram leprosos transportados às costas, do mato para Olossato nas tais operações de recolha de população acoitada no mato para as povoações com protecção de tropa) –, não houve qualquer caso com o pessoal da Companhia, ou porque estas doenças estavam em fase de erradicação (?), ou porque a higiene e a profilaxia praticadas pela Companhia eram o suficiente para as obstar.


LEPRA - V
Esta era a doença mais temível que sabíamos, ou pensávamos saber, existir na Guiné. Era a mais falada entre a malta quando ainda estávamos em Santa Margarida aonde a Companhia esteve algumas semanas antes de rumar ao cais de Alcântara para embarcar no Niassa para a Guiné. Ao falarmos das doenças que grassavam naquele território ultramarino, principalmente as contagiosas, e que teríamos de algum modo a estar expostos, a Lepra era aquela que mais temíamos, se bem que, camaradas antecessores, de nada falassem, ou até de que tivéssemos conhecimento de algum caso. Mas que ela existia sabíamos nós e, não menos, que era muito (?) contagiosa.

No entanto não conheci, nem conheço, embora leia ser uma doença de incubação muito longa, casos desta doença apanhada por militares que andaram pela Guiné, mas ela existia de facto e eu próprio vi muitos nativos, principalmente habitantes no interior do mato, que a tinham, principalmente nativos já com alguma idade avançada. Não tinham dedos nas mãos ou nos pés ou as duas coisas juntas como a foto seguinte ilustra. (Foto reproduzida com a devida vénia ao seu autor ou legítimo proprietário)

Os braços e as pernas acabavam em cotos, em alguns casos, embora não se vissem quaisquer feridas abertas ou úlceras.

Militares da 816 transportava-os às costas, quando trazíamos população encontrada isolada, nas chamadas operações de recolha de pessoal, algures no mato, para as povoações, (passava pelo trabalho da Companhia também esta tarefa de trazer gente do mato para as povoações, pois para além de ficarem sob a nossa jurisdição, portanto fora da alçada do inimigo, era ali que eles tinham meios de uma melhor sobrevivência e qualidade de vida, incluindo assistência médico-medicamentosa), no caso para Bissorã ou para o Olossato que foram, principalmente, as povoações aonde a Companhia esteve temporariamente aquartelada. Sabíamos também que estas povoações “clandestinas” colaboravam, obviamente, com o inimigo Ninguém era abandonado, quer fosse idoso, doente ou deficiente. Era ponto de honra para o Comandante da Companhia.

A miséria e a promiscuidade era muita, principalmente no interior e nas povoações, agora e para nós clandestinas, aonde a assistência sanitária era nula.

Embora nas povoações com tropa, aonde habitualmente havia uma enfermaria militar, os indígenas tinham medo ou relutância ou ainda por convicções religiosas de recorrer àquelas. Só à força ou à ordem do Chefe de Posto ou da Administração a isso os obrigava.

Lembro-me de ver um nativo à porta da enfermaria em Mansoa, que ali foi levado compulsivamente para ser tratado adequadamente, que tinha um buraco numa perna com o tamanho de uma bola de ténis.

O enfermeiro tirou daquele buraco toda a espécie de ervas e terra lamacenta.

Os nativos viam-se assim sujeitos a confiarem nas propriedades terapêuticas de ervas, mezinhas e outras coisas tais, que a natureza, pelo menos esta, lhes dava, embora não fosse bem para aquilo que o referido nativo necessitava para o seu caso.

Cozer um profundo golpe numa perna a um rapazinho nativo, em Bissorã, foi, para este e família, o fim do mundo, mas, passados uns dias, com uma leve cicatriz, ele já saltava com os outros ali mesmo na cara do enfermeiro milagreiro.

Afinal há pouco tempo é que soube, que a cerca de 10-12 quilómetros de Bissau existia uma Leprosaria, mais tarde assistida por abnegados missionários italianos, isto nos anos cinquenta e, depois, mais tarde, é então edificado um hospital, já nos anos 60.

Portanto a Lepra era uma doença na Guiné com assistência, no possível, para a época e no sítio que era, há mais de 50 anos.

Também sobre a Leprosaria de Bissau, o estimado camarigo Correia Nunes poderá acrescentar algo, pois colaborou lá na construção de uma Escola de Carpintaria para ensinar as crianças.

Posição geográfica de Cumura – entre Bissau e Prábis, a cerca de 12 quilómetros de Bissau.
Imagem do Google


Seguem dois interessantes artigos sobre a Leprosaria de Cumura. Um, o primeiro, reproduzido do site www.uniao-missionaria-franciscana.org e o outro, com data de 2009, também reproduzido, este da Gazeta de Notícias (www.gaznot.com).

Reproduções aqui feitas com a devida vénia para com tais entidades.

LEPROSARIA DE CUMURA

CUMURA: A Lepra não é maldição dos céus!

1. Local:

A 10 quilómetros de Bissau, na estrada de Prábis, situa-se a Missão Católica de Cumura, bem conhecida em toda a Guiné-Bissau, sobretudo pela sua leprosaria, que neste momento é referência única para o país de Amílcar Cabral e referência assinalada para alguns países vizinhos (Senegal, Guiné-Conakry, Gana), já que também de alguns deles acorrem doentes do Mal de Hansen a procurar tratamento conveniente.



2. Categoria da actividade:

Esta actividade enquadra-se na categoria de projectos de intervenção social na área da saúde, educação e formação.


3. Finalidades e objectivos:

A missão de Cumura tem uma actividade multi-facetada (leprosaria, hospital geral ambulatório, escolas primária e liceal, actividades paroquiais, etc.), mas é conhecida sobretudo pelo seu valioso trabalho com os leprosos. Este trabalho teve um salto qualitativo após a vinda dos Franciscanos italianos de Veneza (1955), que ampliaram em muito os inícios de assistência aos leprosos em Cumura, tentada pela administração colonial portuguesa.

Actualmente, a leprosaria de Cumura dispõe dum conveniente laboratório de análises, bem como dos serviços de fisioterapia, oftalmologia, lavandaria, sapataria, nutrição e dietética, sempre em ligação com as necessidades dos doentes hansenianos. Assiste uns 50 internados e trata em regime ambulatório muitas dezenas de doentes.

Por razões de caridade cristã, dada a insuficiência ou incapacidade dos serviços de Saúde pública, em Cumura começou também a dar-se assistência quer a doentes terminais de SIDA (cerca de 150 internados em 2006, uns 70 admitidos para antiretrovirais e cerca de 400 seguidos em ambulatório, no mesmo ano), quer a doentes de tuberculose (em 2006 houve internamento temporário de uns 45 doentes e tratamento ambulatório de 145 doentes).

De tal modo o trabalho assistencial de Cumura se impôs à população das redondezas, que à volta da missão-leprosaria se foi implantando uma nova povoação, já que as pessoas se sentiram protegidas pela presença missionária. Hoje Cumura tem duas aldeias, contíguas mas distintas: “Cumura Pepel e Cumura-Padres”! A fixação confiante da população à volta da missão é o melhor prémio para a acção missionária aí realizada e é também uma espécie de grito silencioso mas eloquente: “ A lepra tem cura, não é uma maldição dos céus contra ninguém”!


4. Responsável:

A Custódia de S.Francisco da Guiné com o seu Custódio Frei João Dias Vicente.


5. Donativos:

A União Missionária Franciscana abraçou esta projecto desde o início e são necessários apoios a nível monetário para suprir os investimentos que vão sendo feitos de forma a melhorar as condições de tratamento dos leprosos. Os contributos monetários a este projecto podem ser feitos em vale do correio/cheque ou por transferência bancária BPI : NIB 0010 0000 26140490002 14, indicando a que fim se destina (Leprosaria de Cumura). Todos os apoios cedidos gozam de dedução fiscal, ao abrigo da “lei do mecenato” (artigos 39.º e 40.º do código do IRC e do artigo 56.º do código do IRS).

Contacto:
União Missionária Franciscana (Leprosaria de Cumura)
Convento da Portela
Rua dos Mártires, 1
Apartado 1021
2401-801 Leiria

União Missionária Franciscana

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HOSPITAL DE CUMURA : CINQUENTA E CINCO ANOS AO SERVIÇO DO POVO

(20-7-2010) O Hospital de Cumura, na vanguarda da luta contra o mal de Hansen há mais de 55 anos, hoje na luta contra tuberculose e VIH-Sida, é das estruturas hospitalares mais conhecidas da Guiné-Bissau.

Situado a 12 quilómetros de Bissau, ao longo da sua existência tem acolhido doentes de todas as partes da Guiné-Bissau e além fronteiras. As suas actividades têm sido marcadas não só pela cura das pessoas afectadas pela lepra mas também em termos de assistência social prestada pelos missionários na sua recuperação e reintegração. O falecido Bispo D. Settimio Ferrazzetta foi dos missionários que trabalharam em Cumura logo após a sua chegada a Guiné nos anos 50.

“Os missionários chegaram em Cumura, na Guiné-Bissau em 1955, enviados pelo Papa PIO XII, para tomarem conta dos doentes de lepra que viviam isolados numa grande reserva chamada Cumura, mais ou menos abandonados a si mesmo”, começou por explicar a GN, a Irmã Valéria, administradora deste estabelecimento hospitalar muito procurado por doentes de todo o país.

Esta responsável explicou ainda que com a presença dos missionários e “muito devagar” foi se iniciando uma verdadeira cobertura ao serviço da lepra “e não muito tarde depois também ao serviço das famílias dos doentes de lepra. Logo sem grande demora, começamos a sentir a necessidade de servir e proteger os grupos mais vulneráveis da população entre as quais as crianças e as mulheres sobretudo em idade fértil ou durante o período da gestação, parto e pós-parto”.


Especialidades

Solicitada a falar sobre as especialidades que o hospital atende, a Irmã explicou que as suas intervenções são muito amplas.

“Como disse, tudo se iniciou em torno dos doentes de lepra que naquele tempo tinha uma incidência muito menor”, adiantando que devagar foi surgindo a necessidade da consulta geral aos adultos. Daí começaram a desenvolver a assistência pediátrica e assistência da maternidade, pré-natal e pós-parto.

Para responder a procura de que o hospital era alvo, foram criadas duas estruturas sanitárias, uma para atender a lepra e outra para a clínica geral “onde tínhamos a maternidade, a pediatria e algumas camas para adultos. Assim fomos adiante por algumas décadas.”

Na ultima década, 2000 para cá, quando foi avançando o VIH/Sida e a tuberculose, foram obrigados, de acordo com as necessidades das populações, a se abrirem para algumas emergências e uma melhor cobertura da maternidade.

A irmã Valéria assegurou no entanto que a assistência ao parto, pós-parto e pré-natal quadruplicou nos últimos anos, “ o que nos levou a organizar para dar assistência de guarda aos doentes de VIH/ Sida e da tuberculose.” Revelou que actualmente estão com um movimento “talvez seja o maior no país, que alberga doentes de sida seguidos regularmente em tratamento ambulatório e, igualmente, um grande número de doentes de tuberculose seguidos anualmente.”

Em primeiro plano, julgo tratar-se da irmã Valéria


No concernente ainda a matéria de HIV/sida, a Irmã explicou que vão se organizando na assistência as crianças com HIV/sida congénita e a tuberculose. Segundo esta responsável, “o serviço que está produzindo muito bons frutos é o PTNF (prevenção de transmissão vertical), na qual entram todos os gestantes diagnosticados como seropositivos que são colocados no programa de facilitação da defesa da criança de forma a não ser contaminada pelo HIV/sida. Esta intervenção vai de quatro meses da gestação até os dezoito meses depois do parto.”


Estrutura

Quando solicitada a falar da forma como se organizam para atender os pacientes e manter um funcionamento adequado às diferentes especialidades, a administradora do hospital de Cumura disse que “hoje o movimento é grande”, têm um grande volume “não só de doenças agudas como também de doenças crónicas” que exige uma verdadeira organização e seguimento bem conduzido. Por isso estruturaram o hospital da seguinte forma: direcção clínica, serviço da enfermagem e médica e o serviço de apoio e diagnóstico. Dentre eles figuram o laboratório de análise clínica, serviços da radiografia e da ecografia e a administração. Também contam com outros serviços de apoio como a lavandaria, serviços de refeições, limpeza e jardinagem.

“Todos são serviços correlatos a necessidade de uma organização de forma a oferecer as condições essenciais adequadas”, enfatizou.


Dificuldades

Instada a falar sobre os constrangimentos com que se deparam nas suas actividades, a Irmã foi peremptória: “é bom saber que há grandes dificuldades em se organizar, no controlo dos serviços sociais, mas à medida das necessidades, da saúde e a educação, por exemplo. É claro que não será possível levar adiante esta máquina com tantas dificuldades”.

Apontou que a primeira dificuldade é que não podem contar com o apoio das autoridades que não dão conta e não estão conseguindo enfrentar estas dificuldades nas estruturas hospitalares estatais muito menos nos privados.

Explicou que têm enormes dificuldades que vão desde os parcos recursos financeiros, materiais, até aos medicamentos. Adiantou que na Guiné-Bissau, as grandes dificuldades são de abastecimento a curto prazo. Para conseguir os materiais, têm que ter uma previsão de três, quatro a cinco meses. “É uma situação bastante difícil”, lamenta Irmã Valéria. “Procuramos nos organizar para podermos contar com os seguimentos necessários para garantir uma continuidade de assistência aos doentes” informa a Irmã para concluir que isso é lhes não permite ter uma “ruptura de stock”.

Quanto aos recursos financeiros, disse que contam bastante com os seus voluntários, com a Direcção-geral dos Padres Menores e também com Irmãs e alguns organismos.

Esta responsável sublinha que uma das organizações que tem “apoiado muito” o Hospital de Cumura é a Cooperação Portuguesa. No entanto aponta que “ao longo destes anos começa a se fazer presente com alguma ajuda, o Secretariado Nacional de Luta contra a Sida, com aquilo que se refere ao VIH/sida que hoje abrange a maior parte dos nossos serviços aqui em Cumura”.


Medicamentos

Actualmente o maior fornecedor de medicamentos a este hospital é a IDA Fundation da Holanda.


Evacuação

No tocante a evacuação dos doentes para o exterior do país, a Irmã Valéria conta que “nós não temos programas de evacuação dos pacientes. Particularmente, não trabalhamos com isso”.


Pessoal e camas

Falando dos recursos humanos, ela diz que “quanto ao número de pessoal, estamos com 110 elementos, contando com os profissionais dos serviços de apoio.”

Em termos de capacidade de internamento, a Irmã assegura que na primeira estrutura, que é o hospital do mal de Hansen (lepra), que hoje não é mais a leprosaria mas sim uma parte aberta aos doentes de lepra e que pode ser chamada também de estrutura ao serviço de doenças infecto-contagiosas, “estamos em torno de 90 camas”.

A segunda estrutura onde atendem o maior número de gestantes e crianças, tem 45 camas.

Nautaram Marcos Có
Gazeta de Notícias

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LEPRA - Explicação científica da doença
- extraído, com a devida vénia, de: www.manualmerck.net

A lepra (doença de Hansen) é uma infecção crónica, causada pela bactéria Micobacterium leprae, que lesa principalmente os nervos periféricos (aqueles nervos localizados fora do cérebro e da espinal medula), a pele, a menbrana mucosa do nariz, os testículos e os olhos.

A forma de transmissão da lepra não é conhecida. Quando um enfermo não tratado e gravemente doente espirra, as bactérias Mycobacterium leprae dispersam-se no ar. Cerca de metade das pessoas com lepra contraíram-na, provavelmente, através do contacto estreito com uma pessoa infectada. A infecção com Micobacterium leprae provavelmente também provirá da terra, do contacto com tatus e mesmo com mosquitos e percevejos.

Cerca de 95% dos indivíduos expostos ao Mycobacterium leprae não contraem a doença porque o seu sistema imunitário combate a infecção. Naqueles em que isso acontece, a infecção pode ser de carácter ligeiro (lepra tuberculóide) ou grave (lepra lepromatosa. A forma ligeira, ou seja a lepra tuberculóide, não é contagiosa.

Mais de 5 milhões de pessoas em todo o mundo estão infectadas pelo Mícrobacterium leprae. A lepra é mais frequente na Ásia, na África, na América Latina e nas ilhas do Pacífico. Muitos dos casos de lepra nos países desenvolvidos afectam pessoas que emigraram de países em vias de desenvolvimento. A infecção pode começar em qualquer idade, mais frequentemente entre os 20 e os 30 anos. A variedade de lepra grave, a chamada lepra lepromatosa, é duas vezes mais frequente entre os homens do que entre as mulheres, ao passo que a forma mais ligeira, denominada tuberculóide, é de igual frequência num e noutro sexo.


Sintomas

Devido ao facto de as bactérias causadoras da lepra se multiplicarem muito lentamente, os sintomas não começam habitualmente antes de um ano, pelo menos, após a pessoa se ter infectado; o usual é mesmo surgirem de 5 a 7 anos mais tarde e amiudadas vezes muitos anos depois. Os sinais e sintomas da lepra dependem da resposta imunológica do doente. O tipo de lepra determina o prognóstico a longo prazo, as possibilidades de complicações e a necessidade de um tratamento com antibióticos.

Na lepra tuberculóide, aparece uma erupção cutânea formada por uma ou várias zonas esbranquiçadas e achatadas. Estas áreas são insensíveis ao tacto porque as micobactérias lesaram os nervos.

Na lepra lepromatosa, aparecem sobre a pele pequenos nódulos ou erupções cutâneas salientes, de tamanho e forma variáveis. O revestimento piloso do corpo, incluindo as sobrancelhas e as pestanas, desaparece.

A lepra limítrofe (borderline) é uma situação instável que partilha características de ambas as formas. Nas pessoas com este tipo de lepra, a doença tanto pode melhorar, caso em que acaba por se parecer com a forma tuberculóide, como piorar, circunstância que resulta mais parecida com a forma lepromatosa.

Durante a evolução da lepra não tratada ou mesmo naquela que, pelo contrário, recebe tratamento, podem verificar-se certas reacções imunológicas que por vazes produzem febre e inflamação da pele, dos nervos periféricos e, com menor frequência, dos gânglios linfáticos, das articulações, dos testículos, dos rins e dos olhos. Dependendo do tipo de reacção e da sua intensidade, o tratamento com corticosteróides ou talidomida pode ser eficaz.

O Mycrobacterium leprae é a única bactéria que invade os nervos periféricos e quase todas as suas complicações são a consequência directa desta invasão. O cérebro e a espinal medula não são afectados. Devido ao facto de diminuir a capacidade de sentir o tacto, a dor, o frio e o calor, os doentes com lesão dos nervos periféricos podem queimar-se, cortar-se ou ferir-se sem se darem conta. Além disso, a lesão dos nervos periféricos pode causar debilidade muscular, o que por vezes faz com que os dedos adoptem a forma de garra e se verifique o fenómeno do “pé pendente”. Por tudo isso, os leprosos podem ficar desfigurados.

Os afectados por esta doença também podem ter úlceras nas plantas dos pés. A lesão que sofrem os canais nasais pode fazer com que o nariz esteja cronicamente congestionado. Em certos casos, as lesões oculares produzem cegueira. Os homens com lepra lepromatosa podem ficar impotentes e inférteis, porque a infecção reduz tanto a quantidade de testosterona como a de esperma produzido pelos testículos.


Diagnóstico

Certos sintomas, como as erupções cutâneas características que não desaparecem, a perda do sentido do tacto e as deformações particulares derivadas da debilidade muscular, constituem as chaves que permitem diagnosticar a lepra. O exame ao microscópio de uma amostra de tecido infectado confirma o diagnóstico. As análises de sangue e as culturas não se mostram úteis para estabelecer o diagnóstico.


Prevenção e tratamento

No passado, as deformações causadas pela lepra conduziam ao ostracismo e os doentes infectados costumavam ser isolados em instituições e colónias. Em alguns países esta prática continua a ser frequente. Apesar de o tratamento precoce poder evitar ou corrigir a maioria das deformações mais importantes, as pessoas com lepra estão propensas a sofrer de problemas psicológicos e sociais.

O isolamento, contudo, é desnecessário. A lepra só é contagiosa na forma lepromatosa quando não recebe tratamento, e mesmo nesses casos não se transmite facilmente. Além disso, a maioria das pessoas tem uma imunidade natural face à lepra e só aqueles que vivem próximo de um leproso durante muito tempo correm o risco de contrair a infecção. Os médicos e as enfermeiras que tratam dos doentes com lepra não parecem estar mais expostos do que as restantes pessoas.

Os antibióticos podem deter o avanço da lepra ou mesmo curá-la. Dado que algumas das micobactérias podem ser resistentes a determinados antibióticos, o médico pode prescrever mais do que um medicamento, em especial para os afectados pela lepra lepromatosa. A dapsona, o antibiótico mais frequentemente utilizado para tratar a lepra, tem um preço relativamente acessível e, em geral, não tem efeitos secundários; apenas em alguns casos produz erupções cutâneas de natureza alérgica e anemia. A rifampicina, que é mais cara, é inclusivamente mais forte que a dapsona; os seus efeitos colaterais mais graves são a lesão hepática e sintomas semelhantes aos da gripe. Outros antibióticos que podem ser administrados aos leprosos incluem a clofazimina, a etionamida, a minociclina, a claritromicina e a ofloxacina.

A antibioterapia deve ser continuada durante muito tempo, porque as bactérias são difíceis de erradicar. Dependendo da gravidade da infecção e da opinião do médico, o tratamento pode ser mantido por um período que oscila entre 6 meses e muitos anos. Muitas pessoas afectadas de lepra lepromatosa tomam dapsona o resto da sua vida.

Segue: Doença do Sono
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8073: Convívios (223): Pessoal da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, e Mansoa, 1965/67) dia 7 de Maio de 2011 em Barcelos (Rui Silva)

Vd. último poste da série de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7674: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (4): As abelhas (Rui Silva)