1. Nunca é demais recordar os deficientes da guerra do ultramar / guerra colonial (que serão 14324, segundo os números da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas) (*). A guerra teve / tem nomes e rostos (e alguns ficaram marcados para sempre). E histórias, com h pequeno, que nunca serão contadas na História com H grande.
No total, os "cegos e amblíopes" foram 70 (dos quais quase um terço na Guiné). Mas o número de vítimas de cegueira parcial e outras deficiências visuais é 12,3 vezes superior: 863 (das quais 27% na Guimé) (Vd. quadro acima).
Já evocámos vários nomes de camaradas nossos que ficaram totalmente cegos, nossos conhecidos ou figuras mais o menos públicas:
(i) o José Eduardo Gaspar Arruda (1949-2019), o líder histórico da ADFA (sofreu cegueira total e amputação do membro superior esquerdo), em acidente com mina em Moçambique; era furriel);
(ii) o Cândido Manuel Patuleia Mendes (natural do Bombarral, meu vizinho, com amigos na Lourinhã, ferido em Angola; era furriel);
(iii) o Manuel Lopes Dias (hoje cor ref DFA) (não sei onde foí ferido, mas possivelmente em Angola; era alferes),
sendo estes dois útimos membros da atual direção da ADFA, eleitos para o triénio de 2022/24, o primeiro como tesoureiro e o segundo como secretário: mas já foram ambos presidentes da direção.
Mais recentemente, entrou para a nossa Tabanca Grande o 1º cabo Manuel Seleiro, que pertenceu ao Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70): ficou totalmente cego e sem as duas mãos, ao levantar uma mina A/P, na picada de São Domingos para o Senegal, em 1970 (**).
Lembrámos também aqui o nome do camarada (e membro da nossa Tabanca Grande), Hugo Guerra (hoje cor inf ref, DFA, e sofrendo de doença de Parkinson) que foi vítima da mesma mina que o Manuel Seleiro estava a levantar: ficou cego de uma vista (***).
A história de vida destes homens e militares portugueses merece ser melhor conhecida dos portugueses. Hoje vamos reproduzir, parcialmente, um texto publicado no portal Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, com a devida vénia ao autor e aos editores:
Eduardo José dos Reis Lopes, ex-alf mil op esp,'ranger', Cruz de Guerra de 4.ª classe, CCAÇ 2600 / BCAÇ 2887 (Angola, 1969 / 1971)
(..) De entre outras missões que, no decurso do nosso estacionamento em Balacende (Nov69-Mai71), nos foram atribuídas, destacam-se escoltas e protecção aos trabalhos que uma equipa da JAEA [Junta Autónoma das Estradas de Angola]. desenvolvia no itinerário principal Caxito-Nambuangongo, designadamente o levantamento topográfico destinado à construção de uma estrada asfaltada.
Os pontos mais determinantes daquele trabalho eram assinalados com telas (de 5mts de comprido por 1 de largo), dispostas em cruz e posteriormente sobrevoadas. Tendo a frente daqueles trabalhos alcançado as nossas "portas da guerra", tal como do antecedente e sempre que os trabalhos eram diariamente interrompidos, as telas foram rotineiramente colocadas; mas por sucessivas noites, as telas começaram naquela área a ser roubadas por bandos armados da FNLA.
Perante esta situação, sugeri ao comandante da companhia que montássemos emboscadas; ou, em alternativa, que nos seus limites as telas fossem armadilhadas.
Enquanto isso, ao nosso batalhão em Quicabo tinha chegado como guia para as NT, um negro foragido da base IN "Checoslováquia", tida como "sede inexpugnável da Zona B da 1ª RPM-MPLA" (pretensa "Região Político-Militar" do MPLA no Quijoão), cujo comandante era Nito Alves e a citada zona B comandada por Jacob João Caetano. O guia Eduardo, que em tempo se havia entregue às NT no sector do Caxito, posteriormente permanecera no posto local da DGS para "reeducação e reabilitação", após o que ficaram reunidas as condições para o planeamento de uma operação, a nível de batalhão, tendo como principais propósitos: capturar o comandante Jacob Caetano, vivo ou morto; e destruir aquela base IN.
As forças executantes escolhidas para o golpe-de-mão, foram o meu 3º Pelotão da CCaç 2600 e o Pel Rec/CCS, comandado pelo Alf Mil Martins, consideradas pelo comando do batalhão como as mais aguerridas e experientes: íamos defrontar o IN, fortemente armado e no seu próprio "santuário" considerado "inexpugnável", não havendo lugar a quaisquer tácticas defensivas ou hesitações. E a saída de Balacende, estava prevista para as 12:00 de 23Mai70.
Aproximando-se aquele momento, o Capitão Hermínio Batista, comandante da CCaç 2600 , decidiu-se pela alternativa de armadilhar as citadas telas da JAEA, tendo para tal missão encarregue o Furriel Mil 'ranger' Cláudio Manuel Libânio Duarte: acompanhado por uma secção do meu pelotão, comandada pelo Furriel Patuleia que para tal efeito se voluntariou; contudo, em se tratando de uma secção do meu 3º pelotão a fazer a segurança, também por solidariedade com o Patuleia, igualmente me voluntariei.
Estando previsto que a equipa da JAEA saísse para a frente de trabalhos pelas 06:00, cerca de meia-hora antes o Fur Patuleia acordou-me e eu – ainda ensonado e porque às 12:00 iríamos largar para a "Operação Checoslováquia" –, acabei por lhe dizer que não ia ao armadilhamento das telas; e aconselhei-o a que também não fosse, mas aquele Furriel não seguiu o meu conselho.
Por volta das 09:00 de 23Mai70, ouviu-se em Balacende uma enorme explosão: na frente de trabalhos da JAEA, encontrando-se os militares ao lado uns dos outros, o Furriel 'ranger' Duarte, enquanto procedia ao planeado armadilhamento das telas, descavilhou uma granada ofensiva e, inopinadamente, afrouxou a alavanca: o Fur Patuleia ainda lhe gritou que arremessasse a granada mas o Fur Duarte instintivamente tentou apertar a alavanca e, encostando as mãos ao peito, ali encontrou a morte imediata; quanto ao Fur Patuleia, ficou com a cara e o corpo cheios de estilhaços da granada, tal como o soldado Arlindo.
Quando os quatro feridos – dois deles de forma menos grave –, transportados nos Land-Rover da JAEA, começaram a chegar ao nosso aquartelamento, foi um pandemónio.
Fiquei na enfermaria por alguns momentos junto do Fur Patuleia, mas não suportei mais ouvi-lo pedir ao Furriel Enf Fernandes que o matasse. Dali fui para a messe, onde continuei a ouvir os seus gritos de dor, até que por volta do meio-dia chegou um AL-III, tendo sido heli-evacuados para o hospital militar de Luanda o Soldado Arlindo e o Furriel Patuleia.
Quando vim de férias à Metrópole, visitei no HMP-Estrela o Fur Patuleia: estava cego; e tinha (como ainda hoje), a cara cravejada de estilhaços. Após dezenas de operações – algumas realizadas em Barcelona –, recuperou parcialmente alguma visão mas apenas por breves períodos; e da última vez que o vi, estava de novo e totalmente cego.
Uma das minhas recorrentes memórias sobre a guerra no Ultramar, está relacionada com o sucedido ao Furriel Mil Patuleia. (...)
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(¹) Cândido Manuel Patuleia Mendes: nascido em 1947 no Bombarral; veio a ser no ano 2000, presidente da direcção nacional da ADFA.
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 28 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22851: A nossa guerra em números (11): Pedro Marquês de Sousa estima um rácio de 10 feridos por cada morto... A Guiné teve, em números absolutos e relativos, mais feridos graves em combate e Angola por acidente
(**) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24072: Tabanca Grande (543): Manuel Seleiro, ex-1º cabo, Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70), natural de Serpa, DFA, sofreu cegueira total e amputação das mãos, ao levantar e desativar um engenho explosivo, durante uma operação, em 13/3/1970... Senta-se à sombra do nosso poilão, sob o nº 870.
(***) Último poste da série > 17 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24074: (De) Caras (195): Em 1975, cinco anos depois, saí do Hospital Militar Principal com as marcas da mina A/P, armadilhada, que me mudou completamente a vida: estava destroçado, cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda (Manuel Seleiro, 1º cabo, Pel Caç Nat 60, DFA, São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)