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quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19175: A galeria dos meus heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III Luís Graça)


Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 22 de outubro de 1969 > Embarque do pessoal da CCAV 2639...  Menos de cinco anos depois, logo a seguir ao 25 de Abril, há manifestações contra o embarque de tropas para o ultramar... As palavras de ordem dos grupos marxistas-leninistas  são: "Nem mais um soldado para as colónias!...Regresso imediato dos soldados!... Independência total e incondicional para os irmãos das colónias!... Morte ao colonialismo e ao capitalismo!"...

Foto (e legenda): © Victor Garcia (2009) . Todos os direitos reservados  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Luís Graça, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12,
junho de 1969
A Galeria dos Meus Heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III (Luís Graça)(*)


[Continuação... 

Sinopse das Partes I e II:

Belmiro Mateus, advogado, que não fez o serviço militar obrigatório, e António Mota, ex-seminarista, professor de história, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, numa das companhias da "nova força africana" do Spínola, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, numa LFG, entre 1973 e 1974. A conversa prossegue num bar a 500 metros do cemitério, incidindo nomeamente sobre o passado dos três amigos e condiscípulos, a infância, a terra, a tropa, a guerra colonial,  o 25 de Abril, mas também o fado, a morte, Deus, a fé...]





E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado, direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, porque era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. Hoje não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar a ser como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a democratização do ensino… Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra…

− Ou pela violência das armas ?! O poder está na ponta das espingardas!, era a vossa palavra de ordem maoista… Pobres diabos, putos imberbes, que ainda não tínham dado um tiro nem sabiam manusear uma arma.

− Eu, felizmente, não fiz a guerra como tu. Nem sequer fiz o serviço militar, por um bambúrrio da sorte. A guerra acabou antes.

− Tiveste mais sorte do que eu… e do que o nosso pobre Zé. Mas, tu, Belmiro, terias dado um grande heróis do 10 de junho. Infelizmente, hoje serias um herói morto, com direito a nome gravado numa chapa metálica, no monumento aos mortos da guerra do ultramar... Como aquele mamarracho que foi erguido no jardim central da nossa vila... Ainda bem que estás vivo...

− E quem te disse, Tony, que eu não poderia ser hoje um herói vivo ?! Um Torre e Espada, que muito honraria a nossa terra ?!

− Os heróis também se fabricam, em função dos interesses dos regimes... Vê o caso do soldado Milhões, que salvou a honra da República e do CEP, o Corpo Expedicionário Português, na I Grande Guerra...

O António aproveitou então para enfatizar as qualidades de liderança do amigo que tinha tudo para ser um bravo soldado,  digno dos nossos maiores:

− Belmiro, a mim que não tinha jeito nenhum para a tropa, fizeram-me alferes...Tu, sim, sempre foste um líder, mais do que um chefe, desde os tempos do escutismo. Não tenho dúvidas que terias chegado a general, se tivesses ido para a Academia Militar, como chegaste a sonhar. Estou grato ao teu pai por te cortado a crista de galo…

− Meu sacana!... Tinha alinhado no 25 de Abril, disso podes estar ciente. Mas nos meus 15, 16 anos ainda cheguei a sonhar com a carreira das armas…

− Em contraciclo!... A Academia Militar estava às moscas, homem!… Depois, o militarismo era, para mim, o lado mau do escutismo. Deixaste-te seduzir pelo espírito de corpo, a unidade comando-controlo, a disciplina, o garbo, a ordem, a farda, os galões, os estandartes, a parada, a música marcial…

− Não, estás enganado. O que me seduzia, na tropa, era a arte e a ciência de mandar, ou comandar!... Para servir os outros, a comunidade, o país, a pátria... O escutismo foi também uma das minhas grandes escolas, estou grato ao Baden-Powell e, já agora, à Mocidade Portuguesa… E, tu, não te esqueças que também lá andaste… Se eu fosse para a tropa, não tenhas dúvidas que queria ser o primeiro, o melhor, do pelotão…

Fez-se um silêncio, algo embaraçoso. O Tony nunca contava a ninguém que também andara na "bufa"… e depois no seminário. Desviou a conversa:


− Então, o nosso querido Zé também foi parar ao ultramar, estás-me a dar uma novidade.

− Falávamos pouco da tropa… Só sei que andou pelo Índico, a patrulhar a costa moçambicana. Deve ter comido muito camarão moçambicano que era (e é) o melhor do mundo…

− Nada mau, viver numa corveta, sempre era melhor do que andar no mato, como a "tropa-macaca".


− O que é isso de "tropa-macaca" ?

− A que andava a penantes, no mato...

Na realidade, o Zé tivera mais sorte do que o António. O Belmiro ainda se lembrava dele, aos fins de semana, fardado de branco, impecável, oficial e cavalheiro, um "príncipe encantado" para as garotas da terra.

− O melhor da Marinha era a farda e o bar dos navios − acrescentava, irónico, o Tony.

− O Zé falava muito pouco ou nada desses tempos da guerra do ultramar. Andou por lá, nunca deu um tiro, a não ser nos exercícios navais.


E mais acrescentou o Belmiro:

− Sei que, quando cá veio de férias, ainda em 1973, trouxe uma cassete com as famosas canções do Niassa, que estavam proibidas…

− Nessa altura, como sabes, estava eu na Guiné, só ouvi as canções do Niassa uns anos depois. Mas também havia um cancioneiro da Guiné...

− Eh!, pá, da nossa geração poucos escaparam, tirando a malta que andava na universidade e foi adiando o serviço militar, como eu… De exame em exame, lá fomos dobrando o cabo da Boa Esperança…

Naquele tempo, poucos foram os condiscípulos do Belmiro que continuaram a estudar para além da 4ª classe ou do 5º ano do liceu.

− Ah!, e não te esqueças da malta que deu o salto – disse o Belmiro, que se lembrava ainda de uma leva de jovens do concelho que fora numa carrinha de um passador e que teve um acidente grave já a caminho de Bordéus…

− Não estava cá quando isso foi… França, Alemanha, Suécia, Canadá, América, Brasil (antes da ditadura militar de 1964)… eu sei lá para onde a rapaziada foi parar!... Muitos à procura de melhor vida, não tinham qualquer consciência política, mas a verdade é que mandaram o  país à merda, e os gajos que cá mandavam...

− Desertor, que me lembre, não conheci nenhum. Mas faltosos e refratários foram bastantes. E olha que não eram filhos de agrários. O tipo do stand de tratores e máquinas agrícolas, um comerciante que veio de fora e que enriqueceu depressa, esse, tratou logo, na devida altura, de pôr o filho mais velho a bom recato na Suécia ou na Alemanha. Lembras-te dele ? Ficou por lá, casou com uma loura, da Europa  do Norte... Não tenho mais notícias dele...

− Tu é que nunca pensaste em dar o salto!... Eu, também não, porque estava no seminário…

− Acredita que não, foi coisa que nunca me passou pela cabeça!... Se a Pátria precisasse de mim, como soldado, eu lá estaria na primeira fila... Não sou menos patriota do que tu, lá por não ter feito a tropa e a guerra do ultramar. O meu querido paizinho, esse, sim, ainda pôs a hipótese de me pôr na fronteira se as coisas corressem para o torto. Era o plano B, mais para tranquilizar a minha mamã do que para valer… 


Felizmente, para o Belmiro (e a família), funcionou o plano A: ele foi um menino bem comportado, pelo menos o q.b., não se deixou apanhar pela ramona, muito menos pela PIDE/DGS,  nunca chumbou, e depois… veio o plano C, que não estava previsto pelo pai dele e os seus amigos da situação: o 25 de Abril…

− Grande sortudo!− exclamou o Tony − A sorte protege os escuteiros… E é caso para dizer, uma vez escuteiro, escuteiro para sempre…


E aqui convém esclarecer o leitor que o pai do Belmiro não era um tipo qualquer. Era um conceituado advogado, mais tarde autarca e dirigente da ANP, a Ação Nacional Popular, a nível local. Tinha sido o próprio Marcelo Caetano, seu antigo professor, a integrá-lo nas hostes da União Nacional nos anos 40, quando era ministro das colónias.  


Como o pai do Belmiro não era ribatejano, mas lisboeta, só passou a dirigir os destinos da autarquia local em 1969. O presidente da câmara municipal até então tinha sido um médico veterinário, da linha dura do regime. Pertencera, dizia-se,  à Legião Portuguesa e havia combatido, quando jovem, na guerra civil de Espanha, ao lado dos franquistas.

− O meu pai era o típico advogado de província, que vem de fora, como os médicos, que precisa de todos, não se quer incompatibilizar com ninguém, a começar pelos senhores da terra…  Casou cá, com uma menina prendada, herdeira de umas boas terras, que não fez mais nada na vida do que ser boa esposa e melhor mãe... Eu fiquei com o escritório do meu pai e com alguns clientes, os piores, os caloteiros...

− Belmiro, não levas a mal se eu te disser que foste, apesar de tudo,  um privilegiado!

− Não tenho culpa de ter nascido numa família de classe média alta, politicamente de direita, se bem que republicana e liberal… Mas, atenção, o meu pai era, em termos de peso político, um segunda ou terceira linha…

− Sem querer ofender a memória do teu pai, que Deus já lá tem, dizia-se no meu tempo que havia quem lhe metesse cunhas… E ele gostava de mostrar que tinha prestígio e poder, ou pelo menos que se movia com relativa facilidade nos círculos de poder: os governadores civis, os deputados da Nação, a Praça do Comércio, o Palácio de São Bento...

− Sim, sei que lhe fazia bem ao ego. Mas ele não mandava nada ou muito pouco.  Era um homem bom, afável, tolerante, prestável, generoso, mais depressa capaz de ajudar os de fora do que os da casa… Cunhas para livrar alguém do ultramar, isso, não, posso garantir-te, juro mesmo pela alma dele… Agora que as havia, havia, as cunhas... É uma instituição, é coisa que existe em todas as guerras e em todos os regimes...

− Fiz três anos de tropa e de guerra, por isso sei do que falas. Não direi que me impressionou ou intrigou, já estava à espera…mas nos sítios por onde passei, a começar por Mafra (ou Máfrica, a fábrica de oficiais para a guerra de África, como a gente lhe chamava) nunca encontrei nomes sonantes, filhos-família... 
Nem sequer afilhados. Não sei se os filhos da elite da época foram à guerra, mas se foram não foi como "tropa-macaca", como eu. Teriam eventualmente boas especialidades, tinham a força aérea e a marinha, a reserva naval, como alternativa ao exército… De facto, não éramos todos iguais, Belmiro, se é isso que querias saber.

− Tony, repara, o que já lá vai, lá vai... Éramos todos putos quando rebentou a guerra em Angola… Tu e eu cantámos, em muitos acampamentos, o hino "Angola é nossa!", para além do "Lá vamos cantando e rindo"... Ainda te lembras da letra ?

− Mas a guerra não sobrou para ti, por exemplo, sobrou para a mim, para o Zé… e outros, da nossa terra, da nossa geração, que não tiveram a tua sorte. E muitos por lá ficaram… Só do nosso concelho foram uns trinta e tal.

− Reconheço, Tony, que o país tem uma dívida de gratidão, muito grande, para com vocês, os ex-combatentes.

− Dívida de gratidão ? É uma figura de retórica, desculpa lá. Em todas as épocas, em todas as guerras, essa dívida fica por saldar. Revolta-me o cinismo com que hoje se fala dos coitadinhos dos ex-combatentes… Vamos todos parar à vala comum do esquecimento, mais dia menos dia… O resto é o folclore do 10 de junho onde nem sequer há desfiles de ex-combatentes, porque são todos uns velhadas, malta do "caga & tosse", que já não podem, coitados, com o rabo entre as pernas!


− Desculpa lá, tens razão, embora estejas a ser cruel, muito cruel, para com os teus ex-camaradas… E, para mais, foram vocês os coveiros do Império. Foi um ciclo de quinhentos anos que se fechou… A história vai lembrar os heróis, os marinheiros aventureiros que foram os primeiros na terra e no mar, os descobridores, os fundadores do Império, os vice-reis das Índias, os Gamas, os Albuquerques, não os coveiros...

− Sem honra nem glória, Belmiro! Pelo menos é o que dizem os revisionistas da história, bem como os saudosistas do Império…


− Tony, se for preciso, eu assino por baixo…Mas já que estás aqui, deixa-me confessar-te a minha, nossa, estupidez juvenil… Eu fui dos que, logo a seguir ao 25 de Abril, ainda gritei, no cais da Rocha Conde Óbidos, a palavra de ordem do meu movimento: “Nem mais um soldado para as colónias!”… Mas acho que era preciso alguém gritar contra a guerra, a favor da paz!

− Eu regressei só em setembro de 1974 e sei o mal que isso nos fez, ao moral da tropa que lá ficou a aguentar as pontas... Mesmo assim as coisas correram, aparentemente, melhor do que em Angola e em Moçambique. Não havia colonos na Guiné, o único problema eram os homens de lá que combateram ao nosso lado, os nossos camaradas guineenses. Os meus fulas, por exemplo, de que o Amílcar Cabral não gostava nada. Infelizmente, eles escolheram o cavalo errado… Chamavam-lhe os "cães do colonialiso"...

− Tony, era inevitável… Há sempre excessos, contradições, efeitos perversos... É próprio da ação humana, é uma lição da história… Vê as perversões do cristianismo, que era uma ideologia libertadora…

− Era ou é ?

− Passo em frente, não discuto religião contigo... Mas, historicamente, tu sabes bem que foi.

− OK, são as nossas regras, não falemos de religião... Mas, já que estamos em maré de confidências, deixa-me dizer-te das mágoas que trouxe da guerra... Uma delas nunca  a contarei aos meus filhos, conto-a a ti que és meu "mano"...

O António pediu então mais uma taça de branco, que bebeu de um trago, e contou:

− Numa das nossas incursões a sul do Morés, que era uma região que a propaganda do PAIGC considerava como "área libertada", fizemos um "golpe de mão" a uma tabanca, de população predominantemente balanta ... Como sabes, os balantas eram os homens do mato, e foram a "carne para canhão" da guerrilha do Amílcar Cabral... O meu grupo de combate foi o primeiro a entrar na povoação, onde o alvoroço já era grande, com porcos, galinhas, cães, crianças, mulheres e velhos a fugir em debandada ... Por detrás de um bagabaga (um morro de terra, feito pelas formigas), vejo um atirador isolado, com uma Simonov, uma espingarda russa, semiautomática, que em geral equipava as milícias do PAIGC... A arma encravou-se-lhe ou então o atirador entrara em pânico, desiquilibra-se, o corpo fica parcialmente a descoberto, justamente na altura em que lhe acerto com curta rajada certeira no peito e no ombro. 

Aqui o Tony fez uma pausa, para retomar o fôlego:

 Continuei a correr com os meus homens... Fizemos de imediato um balanço dos "estragos" provocados: para além dos mortos e prisioneiros, tudo população civil, capturámos armas, arroz, documentos; não tivemos uma única baixa...Deparei-me então, junto do bagabaga, com o puto da Simonov, caído por terra: era um "blufo", balanta, adolescente, que não teria mais do que 17 anos, a idade do meu irmão mais novo que, infelizmente, já faleceu, com uma neoplasia, penso que não o terás chegado a conhecer... Esvaía-se em sangue, sem um ai nem um ui... Eu tinha acabado de matar um homem, o primeiro pelo menos a quem via a cara... Senti-me terrivelmente angustiado. Não tive coragem de lhe dar o tiro de misericórdia. Pedi ao meu guarda-costas, o Sori Jau... 

E o António concluiu, quase em surdina:

− Às vezes ainda hoje tenho pesadelos, e a cara do puto da Simonov, impassível, entra pelo ecrã dentro da minha televisão... E, por detrás dele, a espreitar por cima do ombro, o fantasma do meu irmão...

(Continua)




Espingarda semiautomática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm M43, 1945 (Origem: ex-URSS).

Foto (e legenda): © Luís Dias  (2010) . Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:


6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)

domingo, 9 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13864: Armamento que equipava um bigrupo do PAIGC em novembro de 1970 (Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491 / BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74)



Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Um bigrupo (em geral, constituído por 30/40 elementos). Repare-se que na sua generalidade os guerrilheiros usam sandálias de plástico e há uma grande indisciplina no vestuário. Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda. São alegadamente tiradas em "regiões libertadas", aquando de uma visita, ao PAIGC; de uma delegação  sueca..

Pedi ao nosso especialista em armamente, Luís Dias, que está reformado a Polícia Judiciária, e que foi alf mil  para identiciar este armamento. Ampliei e decompus a foto em quatro partes, para melhor visualização dos pormenores.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI) [Edição: LG]



O Luís Dias, ex-alf mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), empunhando uma pistola-metralhadora, a PPSH, a famosa "costureirinha". Foto de Luís Dias.


1. Resposta do Luís Dias, em 7 do corrente, ao meu pedido de identificação doa armamento (foto de cima)

Caríssimo Luís

Está tudo bem contigo? Continuo a ser um leitor do blogue, da nossa Tabanca Grande, embora, de facto, não tenha sido tão participativo quanto desejaria. Vou tendo uma vida atarefada, mas também tenho escrito sobre armamento para publicação no Facebook, em "Armamento Militar do Exército Português".

Tenho estado a actualizar o que escrevi sobre o armamento que utilizámos na Guiné (*), bem como o do PAIGC, com mais fotos, aliás, também tenho algumas destas fotos. Quando estiver pronto posso remetê-lo para tua apreciação e se achares que é de publicar, estarás à vontade.

Em relação ao que me pedes, embora nalguns casos haja dificuldade em identificar as armas, devido à posição das mesmas e qualidade da fotografia, julgo que no essencial são estas [que passo a descrever a seguir]:.



Foto nº 5 


Na 1ª foto, onde está um grupo de 8 elementos, só consigo certificar que o 2º indivíduo, da esquerda para a direita tem nas mãos uma metralhadora ligeira Dectyarev (ou também como é conhecida Dectyaryov) RPD, de origem,  normalmente, ex-URSS, no calibre 7,62 x 39 mm M43, de 1953, operando com uma fita de 150 munições inseridas num tambor. Só produzia fogo contínuo (automático).

Nos outros elementos não se percebe quais as armas que têm na sua posse.


Metralhadora ligeira Dectyarev RDP, calibre 7,62 x 39 mm, m/13, 153 (Origem: ex-URSS).




Foto nº 2

Na 2ª foto, onde estão 5 elementos e da esquerda para a direita verifico que: (i)  o primeiro tem uma metralhadora ligeira Dectyarev RPD, igual à acima descrita; (ii) o  segundo elemento terá uma espingarda semi-automática Simonov SKS-45, no calibre 7,62 x 39mm  M43, da ex-URSS (ou países satélites e da China), surgida em 1945, levando 10 munições dentro de uma caixa, com inserção superior (tipo pente como a mauser) e tendo uma baioneta acoplada. 

Os outros elementos na frente transportam Lança granadas foguete RPG 2, da ex-URSS e países satélites e também da China,surgido em 1949, pesando 4,67 Kg, quando carregada com a granada de 80mm, com capacidade para atingir alvos a um máximo de 200 m (práticos entre 100-150 m).



Espingarda semi-automática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm  M43, 1945 (Origem: ex-URSS). 


LGFog (Lança granadas foguete)  RPG 2, com  4,67 kg de peso (quando carregada com a granada de 80 mm), 1949. (Origem: ex-URSS)



Foto nº 3

Na foto 3, estão 7 elementos, sendo possível identificar no 1º elemento  na frente (da esquerda para a direita), uma espingarda automática Kalashnikov, no calibre 7,62 x 39mm, M43, de origem ex-URSS, mas podendo ser fornecida também pelos países satélites  e pela China, surgida  a partir de 1949, carregador com capacidade para 30 cartuchos, uma cadência de tiro de 600 tpm, peso de 4,78 kg (com as munições), com uma energia de 715 m/s e com alcance prático até 400m.





Espingarda automática Kalashnikov,  calibre 7,62 x 39mm, M43, 1949, com carregador curbo de 30 cartuchos  (Origem: ex-URSS)



Por trás deste elemento está outro com o que parece ser uma espingarda semi-automática Simonov SKS, já identificada anteriormente. Ao lado do 1º e na frente está um guerrilheiro também com uma metralhadora ligeira Dectyarev RPD, também referida anteriormente.

Ainda na frente, do lado direito da foto e de lado está um elemento que parece ter nas mãos uma espingarda Simonov, que também já foi referida.




Foto nº 4

Na foto 4, onde se vêem 5 elementos, nota-se que o 1º do lado esquerdo tem uma espingarda automática ou de assalto Kalashnikov AK-47, o 2º 3º e 5º elementos não se consegue ver qualquer arma, parecendo que o 4º elemento é também possuidor de uma espingarda de assalto kalashnikov AK-47.



Foto nº 5


A foto 5 é a foto de todo o grupo e não acrescenta nenhuma outra arma diferente das que mencionei. O armamento apresentado aqui pelos guerrilheiros [que no total somam 28]  é um pouco inferior ao normal de um  bigrupo do meu tempo, em que surgiam também os RPG7 e mais AK-47 ou mesmo AKM do que as Simonov. Não se vê pistolas metralhadoras [, "costureirinhas",], que ainda usavam, mas também faltam elementos para completar o bigrupo, vê-se mais indivíduos lá atrás e esses poderão ter outras armas.

Junto fotos para comparação destas armas.

Um grande abraço para ti e para todos os editores.
Luís Dias

[Texto e fotos (do armamento): Luís Dias](*)

___________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores Luís Dias sobre Armamento;

21 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5682: Armamento (1): Morteiros, Lança-Granadas, Granadas e Dilagrama (Luís Dias)

23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)


terça-feira, 1 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > 1969 > "Interrogatório a um prisioneiro. Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita. O sorriso é o mesmo nas duas fotos. O prisioneiro era o Malan Mané".... 

Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso ; legenda do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos) (1).


Texto de Luís Graça (2)

Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias...

Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na CCAÇ 12: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…

Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é talvez pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos...

Os páras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. A mala pata do Mané!... Por azar, foi apanhado pelos páras com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (3).

Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui. Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné. Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2).

Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho, o refeitório dos praças. Entre a escola e o posto administrativo. Há um correpio de gente que vem ver o turra capturado pelos paras, na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.

Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca (cabo-verdiana, ao que parece) que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola.


Guiné > Circa 1969 > Cartaz de propaganda das NT, dirigido ao homem do mato...

Imagem enviada por: © A. Marques Lopes (2006)

A senhora professora (que os senhores oficiais tratam com a deferência de cavalheiros) deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Se calhar é simpatizante do PAIGC. Ou até mesmo militante. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (5).

Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885, e que tem nome de rua no Porto...

Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável...

Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?

Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.

Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.

Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão. Foi no mato ainda menino, não consegue precisar com que a idade. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha-grande em Ponta Varela.

Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da luta di partido africano.

O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus cento e tal quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané (6). Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima. Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Conquistadores. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. São os cipaios, os agentes do colonialismo... Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.

Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do Pelotão de Informação e Reconhecimento. Um personagem sinistro, a quem nunca dirijo a palavra. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá. Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros.

Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, eu julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral!... Que idiota!... Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.

Por um dia, O Malan Mané foi o meu herói, o meu anti-herói (7)...

O Malan Mané, se hoje ainda for vivo (8), terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.

A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (9). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau (8). Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois.

Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ? Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento da Ponta do Inglês, à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo.

Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real). Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar as suas criaturas, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós próprios fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui.
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(2) Há uma outra versão anterior: vd post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(3) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)

(4) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"

(5) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas.

Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, a começar pelo comandante (tenente-coronel Pimentel Bastos, mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).

Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)


(6) O Abibo Jau consta da lista dos guineenses que combateram do nosso lado e que terão sido fuzilados a seguir à independência: vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(7) Vd. posts anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã ;

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau