Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta Moçamboque. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Moçamboque. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27141: A nossa guerra em números (36): Auxiliares da administração colonial: régulos, sobas e liurais...


Guiné >  Sem data nem local > Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, zona leste, região de Bafatá,  tenente de 2ª linha, comandante da companhia de milícia do Cuor (nos anos 60/70), vogal do conselho legislativo da Província, craiado em 1964  [ao lado, por exemplo, de outro grande aliado dos portugueses, o régulo manjaco Joaquim Baticã Ferreira]; intitulando-se Fula, era considerado pelos Mandingas e Biafadas como Biafada, em virtude da ascendência materna;  foi fuzilado pelo regime de Luís Cabral, em 1975, em Bambadinca.

Segundo informação de um dos  filhos, o engº Cherno Sanhá, formado em Cuba  (e falecido em 2016) , esta foto deve ser de finais de 1960 ou princípios de 1970, quando o tenente Mamadu Sanhá foi condecorado com a cruz de guerra. Deveria ter uns 40 e poucos anos (pelo que terá nascido na segunda metade da década de 1930).

Foto: © Cherno Sanhá (2012). Todos os direitos reservados, [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



Timor Leste > s/d (c. 1936/40) > O "liurai" Dom Aleixo Corte-Real (1886-1943), régulo de Ainaro e Suro, um dos heróis luso-timorenses  da resistência contra os ocupantes japoneses na II Guerra Mundial.

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público.
 

1. Os auxiliares do poder colonial  nos territórios sob administração portuguesa em África (Cabo Verde; Guiné-Bissau; São Tomé e Príncipe; Angola; Moçambique) e na Ásia (Goa, Dão e Diu; Macau; Timor) tiveram diversas designações: por exemplo, régulos na Guiné, sobas em Angola, liurais em Timor. 

Vamos fazer um apanhado dessas figuras, destacando também as suas funções e o seu significado socioantropológico no âmbito da história da administração colonial portuguesa (*)


Para além dos conhecidos régulos na Guiné, dos sobas em Angola e dos liurais em Timor, a administração colonial portuguesa recorreu a uma diversidade de intermediários locais para consolidar o seu domínio nos restantes territórios. 

As designações destes auxiliares do poder variavam, refletindo as estruturas sociais e políticas preexistentes em cada colónia.

Em Moçambique, a figura central da administração local indígena era também o régulo.

 Tal como na Guiné, os régulos eram chefes tradicionais que, uma vez submetidos ao poder colonial, eram instrumentalizados como o elo de ligação entre a administração portuguesa e as populações locais. 

Os régulos eram responsáveis por:
  • cobrança de impostos; 
  • recrutamento de mão de obra;
  • e manutenção da ordem nas suas áreas de jurisdição (incluindo a aplicação dos usos e costumes jurídicos dos seus povos)

Já em São Tomé e Príncipe, a estrutura de poder local era distinta, em grande parte devido à ausência de população nativa à chegada dos portugueses  (as ilhas eram desabitadas) e à posterior organização da sociedade em torno das roças. 

A administração era mais direta, encabeçada por um Governador e chefes dos serviços públicos. Não existia uma figura de chefe tradicional indígena com a mesma relevância ou designação específica que se encontrava noutras colónias africanas.

O poder nas roças era exercido pelos seus proprietários ou administradores, sendo a mão-de-obra, em grande parte, contratada sob o regime de "serviçais".

Em Cabo Verde,  a situação era igualmente particular. Foi uma sociedade escravocrata. Devido à não aplicação do "Estatuto do Indigenato" (1929) da mesma forma que nas outras colónias africanas, a estrutura administrativa local assumiu contornos diferentes. (***)

No período inicial da colonização, existiram os capitães-mores, que detinham poderes militares e administrativos. Posteriormente, a administração local foi exercida pelos administradores de concelho, nomeados pelo governo central. 

Não se consolidou, portanto, uma figura de chefe local tradicional que atuasse como auxiliar do poder colonial com uma designação específica e generalizada como a de "régulo" (Guiné e Moçambique) ou "soba" (Angola) ou "liurai" (Timor).

Finalmente, em Macau, o contexto era único em todo o império. A administração da população chinesa, maioritária, era feita através de uma estrutura específica. 

A figura-chave era o Procurador dos Negócios Sínicos (ou simplesmente Procurador dos Chins). Este era um funcionário português, muitas vezes um vereador do Leal Senado, que tinha a responsabilidade de:

  •  mediar as relações com a comunidade chinesa:
  • tratar dos seus assuntos;
  • e garantir a aplicação das leis portuguesas. 

Embora não fosse um chefe tradicional chinês, o Procurador dos Negócios Sínicos funcionava como o principal intermediário entre a administração colonial portuguesa e a vasta população chinesa residente no território, desempenhando um papel crucial na governação de Macau.


2.  Auxiliares da administração portuguesa: designaçõesfunções e significado socioantropológico.

África

Cabo Verde

  • Designações: chefes locais eram menos marcados pela figura do régulo (mais típica de Angola, Guiné  e Moçambique), já que as ilhas, sendo desabitadas, não tinham populações indígenas.

  • Surgiram “capitães-mores” e outros oficiais nomeados diretamente pela Coroa;

  • Função: administrar terras, recrutar mão de obra e controlar populações escravizadas.

  • Significado: Cabo Verde foi um espaço de “crioulagem” rápida; não havias chefias tradicionais (a não ser eventualmente informais, entre comunidades de escravos trazidos para as ilhas).


Guiné-Bissau

  • Designaçõesrégulos (chefes de tabanca ou etnia, reconhecidos pelos portugueses); cabos de terramanjuandadis (chefes de linhagem); muitos deles eram também, durante a guerra colonial, comandantes de companhias de milícias, sendo graduados em alferes, tenentes ou capitães de 2ª linha (caso, por exemplo, do tenente Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, e comandante da companhia de milícias do Cuor) (**);

  • Função: mediação entre colonos e populações locais, cobrança de impostos, mobilização de trabalho forçado (portagem, cultura obrigatória como a mancarra);

  • Significado: incorporação do poder indígena no aparelho colonial, mas com tensões: a legitimidade tradicional nem sempre coincidia com a legitimidade colonial.


São Tomé e Príncipe

  • Nas ilhas, tal como em Cabo Verde, a estrutura de chefaturas africanas foi mais fraca;

  • Havia figuras de “capitão-mor do mato” (encarregado de controlar quilombos e escravizados fugidos);

  • Função: assegurar disciplina entre trabalhadores e escravizados;

  • Significado: aqui, o poder colonial teve caráter mais direto, sem forte mediação de “autoridades tradicionais”.


Angola

  • Designaçõesrégulossobas (chefes locais, herdeiros de autoridade política pré-colonial).

  • Funções:

    • Garantir fidelidade ao governo colonial;

    • Recrutar trabalho forçado (contratados);

    • Organizar contingentes militares auxiliares;

    • Cobrar impostos (imposto de cubata).

  • Significado: o “sobado” era incorporado ao sistema colonial, mas mantendo raízes culturais próprias; o “régulo” era, muitas vezes, uma invenção colonial para transformar chefes tradicionais em agentes administrativos.


Moçambique

  • Designaçõesrégulos (chefes tradicionais reconhecidos pela administração), sipaios (força militar local auxiliar), mambos (na tradição local).

  • Funções: semelhantes a Angola: mediação, cobrança de imposto de palhota, mobilização de mão de obra, polícia.

  • Significado: figura emblemática do “indigenato” português; o régulo representava simultaneamente a continuidade da chefia africana e sua subordinação à soberania portuguesa.


Ásia

Estado Português da Índia (Goa, Damão e Diu)

  • Designaçõescomunidades (gaunkaris), com chefias locais chamadas patels ou desais (já existentes antes da chegada portuguesa).

  • Funções:

    • Cobrança de rendas e tributos;

    • Administração da comunidade agrícola (gaunkaria).

  • Significado: coexistência de instituições coloniais e estruturas hindu/muçulmanas pré-existentes. O colonialismo português adaptou-se às hierarquias locais.


Macau

  • Designações: chefias chinesas tradicionais (tchonsihopus), não régulos.

  • Função: mediação com autoridades imperiais chinesas, controle da população chinesa residente.

  • Significado: Macau sempre foi um entreposto dependente da boa vontade da China; os “auxiliares” eram mais negociadores sino-portugueses do que régulos no sentido africano.


Timor

  • Designaçõesliurai (chefe de suco ou reino local); datomoro.

  • Funções:

    • Subordinar-se ao governador português.

    • Garantir tropas auxiliares e cobrança de tributos.

  • Significado: a dualidade de poder entre liurais tradicionais e poder colonial foi fundamental para a resistência e colaboração em Timor.


Síntese Antropológica e Histórica

Régulo / Soba / Liurai = tradução colonial da chefia tradicional para os mecanismos de administração indireta.

Função geral: mediadores entre colonizador e colonizado; asseguravam trabalho, impostos e ordem.

Significado:

(i) criaram uma elite intermediária (chefes africanos/asiáticos legitimados pelo colonialismo):

 (ii) reconfiguraram sistemas de autoridade locais (ex.: um “régulo” podia ser inventado pelos portugueses, sem linhagem ou sem tradição anterior);

(iii) reforçaram a dominação colonial pela indireta, reduzindo custos de ocupação;

(iv) no pós-independência, muitos desses chefes foram contestados ou reintegrados em novas lógicas nacionais.

 Apresenta-se a seguir uma tabela comparativa organizada por colónia, com as principais designações, funções e significado socioantropológico:


Auxiliares do poder colonial português

Região / ColóniaDesignações principaisFunções no sistema colonialSignificado socioantropológico
Cabo VerdeCapitães-mores, oficiais régiosAdministração direta; disciplina da mão de obra; defesa
Estruturas tradicionais pouco preservadas; crioulagem rápida; poder local absorvido pelo colonial
Guiné-BissauRégulos, cabos de terra, chefes de tabanca
Cobrança de impostos; recrutamento de trabalho forçado; mediação com etnias
Poder indígena cooptado; choque entre legitimidade tradicional e colonial
São Tomé e PríncipeCapitão-mor do mato, feitores
Controle de escravizados; repressão a quilombos; disciplina laboral
Autoridade tradicional quase inexistente; poder colonial direto
AngolaRégulos, sobas
Cobrança do imposto de cubata; mobilização de contratados; tropas auxiliares; polícia local
Incorporação dos “sobados” ao aparelho colonial; reforço da dominação indireta
MoçambiqueRégulos, mambos, sipaios (força auxiliar)
Cobrança de imposto de palhota; recrutamento de mão de obra; policiamento
Figura central do indigenato; fusão de chefia africana e imposição colonial
Goa, Damão
e Diu
Patels, desais, líderes de comunidades (gaunkaris)Gestão agrícola e fiscal; mediação entre comunidades e colonosContinuidade de estruturas hindus/muçulmanas pré-existentes; integração ao sistema colonial
MacauChefes chineses locais (tchonsi, hopus), mediadores luso-chineses
Negociação com autoridades imperiais; regulação da população chinesa
Autoridades locais mantidas; poder português dependente da China
TimorLiurais, datos, moros
Cobrança de tributos; fornecimento de tropas auxiliares; mediação política
Dualidade entre poder tradicional timorense e soberania colonial portuguesa

Fonte: Adapt de IA/ChatGPT  (2025)


Essa tabela mostra bem como:

  • Em África continental (Angola, Moçambique, Guiné), a figura do régulo/soba tornou-se símbolo da administração indireta.

  • Nas ilhas atlânticas (Cabo Verde, São Tomé), a chefia local foi menos relevante, substituída por cargos coloniais diretos.

  • Na Ásia, os portugueses adaptaram-se mais às hierarquias locais já estruturadas (goa, macau, timor).


O papel dos auxiliares do poder colonial mudou muito ao longo dos séculos, acompanhando a forma de dominação portuguesa (do comércio fortificado → colonização agrícola → administração indireta → Estado Novo). Aqui vai a linha temporal simplificada:


Linha Temporal dos Auxiliares Coloniais

PeríodoContexto colonialPapel dos auxiliares

Séculos XV–XVIExpansão inicial; feitorias; alianças políticas (África e Ásia).Chefes locais reconhecidos como parceiros comerciais ou aliados militares. Função de mediação diplomática (ex.: sobas em Angola, liurais em Timor, líderes indianos nas comunidades de Goa).
Século XVIIConsolidação do domínio nas ilhas (Cabo Verde, São Tomé) e em partes de Angola/Moçambique.
Em ilhas: substituição por cargos coloniais diretos (capitães-mores, feitores). No continente africano: chefes locais começam a ser “nomeados” como régulos para garantir tributos.
Século XVIIIExpansão agrícola (plantations, escravatura) e militar (guerras de ocupação).
Auxiliares tornam-se cobradores de impostos e recrutadores de mão de obra escrava ou forçada. Muitos chefes locais perdem autonomia; outros fortalecem-se como intermediários.
Século XIXCrise do tráfico atlântico; abolição da escravatura; Conferência de Berlim (1884–85) exige ocupação efetiva.
Colonialismo indireto intensifica-se: régulos e sobas tornam-se parte formal da administração portuguesa (com salários simbólicos, insígnias). Funções: cobrança de imposto de cubata/palhota, policiamento, mobilização de trabalhadores contratados.
Séc XX (até 1926)Primeira República; resistência armada em Angola, Moçambique e Guiné.
Auxiliares ainda essenciais para “pacificação”; alguns chefes tradicionais resistem, outros são cooptados. Em Goa/Macau, líderes locais já eram mais administrativos do que militares.
Estado Novo (1926–1974)Sistema do indigenato em
 África; exploração máxima da mão de obra africana.

Régulos institucionalizados como “autoridades gentílicas”: recrutam trabalho, cobram imposto, controlam populações. Criam-se forças auxiliares (sipaios). Ao mesmo tempo, surgem resistências internas (régulos pró-movimentos nacionalistas).
Pós-1961Guerra colonial (Angola,
Guiné, Moçambique)


Régulos tornam-se ambíguos: uns fiéis a Lisboa (usados como propaganda de “tradição africana”), outros aderem aos movimentos nacionalistas. Papel perde legitimidade após independências.

Fonte: Adapt de IA/ChatGPT (2025)


Síntese

  • Séculos XV–XVIII → auxiliares = mediadores entre mundos (aliança, comércio, diplomacia).

  • Século XIX → passam a ser peças-chave da administração indireta.

  • Estado Novo → tornam-se instrumentos de exploração sistemática (imposto, trabalho forçado, polícia).

  • Guerra Colonial → a sua autoridade fragmenta-se; muitos deixam de ser aceites pelas populações.


(Pesquisa: LG + assistente de IA / Gemini / ChatGPT)

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)
___________________

Notas do editor LG:


Último poste da série > 20 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27137: A nossa guerra em números (35): Qual a probabilidade de o nosso saudoso Valdemar Queiroz (1945-2025) encontrar, em Nova Lamego, Gabu, em 1970, um libanesa, de olhos verdes, fatais ?


(***) O "Estatuto do Indigenato", criado formalmente em 1929 pelo regime colonial português, nunca foi formalmente aplicado em Cabo Verde. 

A partir de 1945, com a revisão da Carta Orgânica do Império Colonial Português, ficou explicitamente estabelecido que as populações de Cabo Verde, Macau e Índia não estavam sujeitas ao regime do indigenato e tinham estatuto de cidadãos portugueses

Na prática, muitas das medidas discriminatórias e restritivas do indigenato foram aplicadas de forma indireta aos cabo-verdianos durante o período colonial, especialmente em termos de trabalho e mobilidade, mas sem o enquadramento jurídico do Estatuto do Indigenato propriamente dito.

Portanto, o Estatuto do Indigenato nunca esteve formalmente em vigor em Cabo Verde, sendo esta exceção juridicamente clarificada já em 1945
.