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quarta-feira, 24 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19712: Historiografia da presença portuguesa em África (160): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,

Trata-se de uma documentação de valor histórico apreciável. Em diferentes peças, o leitor ficará ciente de que chegara a hora da decadência de Buba e a perda de influência do Rio Grande, guerras étnicas devastam o Forreá, captura-se gente, levam-se reféns. O secretário do Governo envia instruções a Caetano Filipe de Sousa para proceder a um diagnóstico da situação, importa a todo o transe abrir o eixo comercial entre Buba e a região do Futa, estabelecer tratados de paz, fazer retirar os Fulas-Pretos para o Corubal, atrair os chefes do Futa, tratar com deferência o chefe Mamadu Paté, dar presentes, entre outras questões de grande pertinência.

Em termos historiográficos, são peças singulares que dão conta de que no momento em que a colónia da Guiné se autonomiza o Forreá revela uma grande instabilidade, a que não é alheia a pressão dos franceses, eles estão altamente interessados em comprimir o território da colónia, como o comprovará a Convecção Luso-Francesa em 1886. O testemunho de Caetano Filipe de Sousa fala por si.

Um abraço do
Mário


Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3)

Beja Santos

Vamos hoje concluir o resumo do relatório de Caetano Filipe de Sousa, capitão e antigo administrador de Buba, escrito em Buba, em 25 de novembro de 1882 e que está depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa. Depois de uma longa dissertação sobre os Fulas-Forros e os Fulas-Pretos, prossegue o seu historial do seguinte modo:

“O primeiro chefe a quem os Fulas-Forros tiveram chamava-se Sambali. Todo o chão de Bolola, até 1869, era habitado pelos Beafadas, alguns Fulas-Pretos, antigos aliados dos Fulas-Forros e a pequena tribo Fula-Forro com os seus novos escravos. Um dos chefes dos Beafadas declarou guerra ao seu chefe principal e para o ajudar chamou Sambali. O chefe rebelde venceu a questão, porém, o seu partido entre os Beafadas era pequeníssimo, e Sambali aproveitou esta circunstância, declarou então guerra ao único chefe dos Beafadas que havia em Bolola, isto é, o chão que então era habitado pelos cativos, segundo as suas tradições ficavam entregues aos Forros. Sambali, logo que se estabeleceu, mostrou desejo de estar em boas relações com o Governo Português, realizando-se entre ele e o Governador um convénio que teve lugar no cais de Bolola, no Rio Grande, em 1869, e para cujo fim ali foi a escuna Bissau, havendo a seu bordo, além do Governador do distrito, os principais negociantes portugueses de Bolama e Rio Grande. Este convénio foi realizado com grande pompa que ainda hoje entre gentios e civilizados dá pelo nome de A Paz de Bolola.

Os Fulas-Pretos que habitavam no Forreá julgaram-se tributários dos Forros e assim estiveram sem se incomodar até 1879, data da primeira guerra entre eles. Os Fulas-Pretos julgaram-se com direito a possuir o Forreá porque o seu chefe descende por parte do pai do chefe principal dos Beafadas, e que tendo este perdido o Forreá, eles o pretendem como sua legítima. Há já três anos que esta guerra existe e eu estou convicto que ela não acaba tão depressa, e até mesmo creio que, à hora em que estou escrevendo este pequeno relatório, estão-se preparando nos limites do Forreá e Cadi grandes massas de homens para se baterem uns contra os outros.

O chefe Mamadu Paté recebeu toda a sua família, excepto um sobrinho de 10 anos de idade, que, por enquanto, não se sabe para onde foi levado; mostrou-se satisfeito e agradecido ao Governo o ter-lhe restituído a sua família, estabeleceu de novo a sua tabanca em Bolola.

O Bacari Quidali, que ainda está na praça, promete fazer encaminhar o comércio do Futa, Timbo e Labé para esta praça logo que os Fulas-Pretos retirem do Forreá.

Neste espírito também se me oferece dizer alguma coisa: o Bacari Quidali chamou em tempo gente do Futa para o ajudar numa guerra que tentava fazer contra os Fulas-Pretos no Corubal, Badora e Firdu, esta gente está a caminho do Forreá, isto é, está reunida em Cadé sobre as ordens do chefe do Futa. Os portadores deste chefe precisam da sua ordem para cumprimentar o Bacari Quidali na sua tabanca, porém, eu, sabedor disto, mandei ali portadores meus a comunicar-lhes para que venham a Buba, quero orientá-los num tratado de paz que acaba de ser realizado entre o Governo e os Fulas-Forros; depois, avisá-los e aconselhá-los a que não prossigam no seu propósito de guerrear os Fulas-Pretos, mas creio nada conseguir porquanto o chefe do Futa chamou para o seu partido a gente do chefe de Timbo, e este mandou o seu próprio filho, de modo que o chefe do Futa não desistirá para não o acusarem de cobarde, como entre eles é costume.

O Bacari Quidali, estou certo, não andou nisto de má-fé, todavia, achava-se já comprometido com o chefe do Futa e agora não sabe o modo de sair desse compromisso, por esta forma os caminhos do Futa para Buba continuarão a estar fechados e apresto-me a dizer a V. Ex.ª que teremos de nos limitar, por enquanto, ao comércio do Forreá, que é do cuidado de não se ofender directa ou indirectamente o Bacari Quidali, cujo melindre é bastante apurado.

Em Buba, não vejo mais que uma pessoa que deseja ir a Futa (pondo de parte o meu nome) e este indivíduo chama-se Pedro Lopes e reside nesta praça. Pela sua ida pede mil réis, acho porém que este sujeito não pode servir para ser representante do Governo aos chefes de Futa e Timbo.

Os Mandingas residentes na praça vivem bem com os Fulas-Pretos e Fulas-Forros, porém, outro tanto não sucede com os Futa-Fulas por serem inimigos, noto mesmo que sempre que lhes falo deles prometem ser implacáveis.

Finalmente diria a V. Ex.ª que me parece que o meio mais pronto para fazer chegar ao mercado de rua o comércio do Futa está em manter as melhores relações de amizade com o chefe daquela tribo. Este chefe é bastante moderado, pouco exigente e mostra simpatia pelos brancos (as pessoas civilizadas, seja qual for a sua cor, são designados pelo gentio pelo nome de Brancos).

Para conseguirmos a sua amizade, é necessário presentes anualmente e mesmo em épocas em que ele venha à praça. Calculo, para estes presentes, a soma 1.200$000 e nesta importância é incluído também o presente que costumamos dar ao Bacari Quidali. Estes presentes, bem entendido, não é para que nos não ataquem a praça de Buba, porque se o tentassem sentiriam os efeitos, Buba propriamente dita está bem defendida”.

Após a descrição dos efetivos na praça e a possibilidade de proteger qualquer feitoria do Rio Grande e depois ter dado informações que no Porto de Buba há uma lancha a vapor ao serviço da praça e do Rio Grande, despede-se nos seguintes termos:

“Com estes elementos, as feitorias têm mais alguma confiança na protecção do Governo, garantem que os chefes do Futa e Forreá façam com que o comércio dali se dirija a Buba e a seguir com que os caminhos do Forreá estejam abertos aos negociantes do Futa, sem que estes receiem perder as suas mercadorias. É este o exemplo que nos é dado pelo Governo Francês, é assim que pratica para com as tribos do rio Nuñes e para com a praça de Timbo”.

Procede a uma larga referência às taxas e impostos municipais e despede-se com a saudação: Deus guarde a Vossa Excelência, Buba, 25 de Novembro de 1882, assina e adiante pode ler-se que está conforme, e temos a data de Bolama, 4 de maio de 1883, Caetano Filipe de Sousa.



Imagens do relatório de Caetano Filipe de Sousa, constante dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, com a devida vénia.


Antigo Palácio do Governador, Ilha de Bubaque

Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
____________

Nota do editor

Postes anteriores de:

10 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19665: Historiografia da presença portuguesa em África (157): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (1) (Mário Beja Santos)
e
17 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19688: Historiografia da presença portuguesa em África (158): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 4 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18376: Historiografia da presença portuguesa em África (111): Gabu, terra sangrenta, palco de lutas entre mandingas e fulas, vista pelos olhos do grande repórter, Norberto Lopes (Diário de Lisboa, 27 de fevereiro de 1947)








"Diário de Lisboa", diretor: Joaquim Manso. Ano 26, nº 8710,  quinta feira 27 de fevereiro de 1947. O jornal avulso custava 80 centavos... Cortesia do Portal Casa Com,um / Fundação Mário Soares / Fundos: DRR - Documentos Ruella Ramos

Citação:
(1947), "Diário de Lisboa", nº 8710, Ano 26, Quinta, 27 de Fevereiro de 1947, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_22406 (2018-3-4)
Continuação das "crónicas" do grande repórter Norberto Lopes, que parte de Bafatá até Sara Gabu (, ainda não se chamava Nova Lamego)...

Tópicos:  (i) os burros que transportam mancarra para Batafá, logo de manhã: (ii) os saracolés que se dedicam à indústria da tinturaria; (iii) a tabanca de Dandum ( ou Dando) e o seu velho régulo Idriss Alfa Baldé; (iv) a decadência da outrora orgulhosa e aguerrida  tribo fula, povo de pastores e nómadas, devida à alimentação deficiente e ao sobreconsumo de noz de cola;  (v) a tabanca futa-fula de Chana e o seu régulo Madiu Embaló: referêndia ao grande Monjour (ou Monjuro, ou Monjur...), que morreu em 1944, aos 88 anos [Monjour Meta (Em)Baló, régulo do Gabu entre 19089 e 1927, segundo o antropólogo e nosso grã-tabanqueiro Eduardo Costa Dias]; (vi) a 'guerra de Turubam' [, que quer dizer em fula "a sementeira acabou"]; (vii) o compensador contrabando de ouro, o seu impacto na economia local, e os 300 ou 400 quilos de que continuam a entrar em Portugal, por ano;  (vii) o comércio e a "febre da construção na região; e, por fim, (viii) o fascínio desta parte de África: "é nos extensos plainos dioríticos do Gabu, de vegestação arbústica, de grandes clareiras desoladas, que vem terminar, na costa ocidental, o mundo muçulmano",















1. Norberto Lopes (Vimioso, 1900-Linda A Velha, Oeiras, 1989) foi um notável jornalista e escritor, tendo estado entre outros ao serviço do "Diário de Lisboa", onde foi chefe de redação, desde 1921, cronista e grande repórter, além de diretor (entre 1956 e 1967). Saiu do "Diário de Lisboa" para cofundar em 1967 o vespertino "A Capital" (que dirigiu até 1970, ano em que se jubilou).

Mestre do jornalismo na época da censura, transmontano de alma e coração, grande português, sempre se bateu pela liberdade de expressão, que considerou a maior conquista do 25 de Abril. Entre a suas obras publicadas, destaque-se:"Visado pela Censura: A Imprensa, Figuras, Evocações da Ditadura à Democracia "(1975). Aprendeu a lidar com a censura e os censores e a escrever nas entrelinhas, com engenho, manha e arte, como muitos jornalistas que viveram no tempo do Estado Novo,

Claro, conciso, preciso. objetivo e imparcial... são alguns dos atributos da sua escrita e do seu estilo como repórter da imprensa escrita, um dos maiores do nosso séc. XX português. Foi. além disso, um grande amigo da Guiné e dos guineenses. Tal como nós, também ele bebeu a água do Geba... Visitou aquele território pelo menos duas vezes. Esteve lá em 1927 e em 1947. Das suas crónicas de 1947,  onde não esconde a sua admiração por Sarmento Rodrigues,  transmontano cono ele, publicou o livro "Terra Ardente -Narrativas da Guiné" (Lisboa, Editora Marítimo-Colonial, 1947, 148 pp. + fotos). (*)

O livro de Norberto Lopes, "Terra Ardente - Narrativas da Guiné", já não é de fácil acesso, para a generalidade dos nossos leitores (e muito menos para os nossos amigos da Guiné-Bissau) mas em contrapartida as suas reportagens, publicadas no "Diário de Lisboa", podem ainda ser lidas no portal Casa Comum, da Fundação Mário Soares, graças ao legado de António Ruella Ramos, seu último diretor, É uma documentação fundamental da nossa história do séc. XX, e que ops nossos leitores têm o direito a conhecer.

Hoje reproduzimos, com a devida vénia, a nona crónica que ele mandou para o seu jornal, justamente sobre o Gabu (*),  Foi publicada em 27/2/1947, há 70 anos, a idade, em média,  por que rondam muitos dos nossos camaradas  que nos leem. (**)



Capa do livro de Jorge Vellez Caroço - Monjur: O Gabu e a sua História.  Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948,  269 pp.
______________

Notas do editor:

(*) 18 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17877: Historiografia da presença portuguesa em África (98): Bissau, em 1947, ao tempo de Sarmento Rodrigues, revisitada por Norberto Lopes, o grande repórter da "terra ardente"

(**) Último poste da série > 28 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18365: Historiografia da presença portuguesa em África (110): Um estudo desconhecido sobre a etnia Manjaca em O Mundo Português, por Edmundo Correia Lopes (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11255: Notas de leitura (465): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2012:

Queridos amigos,

Deve-se a Manuel Belchior, funcionário ultramarino, uma recolha admirável das lendas e contos dos Mandingas, foi o seu trabalho de campo no Gabu.
A batalha de Cam Salá foi traumática para a etnia Mandinga que viu reduzido o seu poder em toda a região Leste, procedeu a uma emigração para a região de Farim – Binta, alguns milhares desceram até ao Sul. Esta lenda confirma a avalancha do exército Fula e o suicídio dos Mandingas que não suportavam a ideia de ficarem submetidos aos Fulas.

Seguir-se-ão outros dois textos “A deposição de Alfa Iaiá” e “A canção de Cherno Rachide”.

Um abraço do
Mário


A batalha de Cam Salá

Beja Santos

Mandinga, não estragues o meu milho!
Se o estragas, fujo para Firdu
onde te custará fazer a guerra.
Aqui, no Gabu, tens vida agradável
e podes usar calções largos

(Estribilho da canção intitulada “Chedo”)(1)


Os mandingas, senhores do Gabu, procediam de modo tão insensato para com os fulas estabelecidos na região, que estes tinham todos os motivos para se sentirem descontentes.

Não só a tributação paga em cabeças de gado era exagerada, mas também os senhores mandingas, quando chegavam às “moranças” fulas, levavam os seus cavalos aos celeiros, onde os animais comiam os cereais armazenados.

Os fulas, desanimados, ameaçavam fugir para o Firdu onde se acolheriam à proteção do rei daquele país, Alfá Moló, e diziam aos seus opressores ser preferível eles continuarem a usar os grandes calções próprios das festas dos tempos de paz do que terem de recorrer a uma guerra de resultado incerto.

Os senhores mandingas não tomaram a sério estas razões, e os fulas, tendo recebido auxílio dos seus irmãos do Futa Djalon, desistiram de fugir para Firdu e lutar pela independência. Unidos aos futa-fulas e valendo-se da supremacia do número, derrotaram os mandingas em Beré Colon.

Nas lutas que se seguiram, quase sempre com desvantagem para os mandingas, estes viram cada vez mais reduzida a área do seu domínio, que acabou por confinar-se à região de Cam Salá, cujo régulo, Djanqué Uali Sané, era guerreiro de uma bravura intemerata.

Preparou Djanqué a defesa do seu último reduto e, sabendo que os Fulas lhe dariam pouco tempo de tréguas, fortificou rapidamente a sua tabanca e mandou comprar pólvora a todos os comerciantes brancos dos territórios vizinhos (portugueses, franceses e ingleses).

Quando, depois de ter desprezado todas as propostas para se converter à fé islâmica (condição exigida pelos Fulas para o deixarem em paz) soube que um grande exército se acercava de Cam Salá, mandou o seu sobrinho Turá Sané averiguar o número aproximado dos seus inimigos.

Partiu Turá em reconhecimento e, quando numa vasta planície avistou os invasores, não pôde fazer ideia da sua quantidade, porque eles eram tantos que os seus olhos não alcançavam o fim. Pôs-se de pé em cima do cavalo e o resultado foi o mesmo.

Voltou então para junto do seu tio e, quando este perguntou quantos eram os Fulas, encheu de areia um grande pano e apresentou-o a Djanqué, dizendo-lhe:
- Conta os grãos de areia que aqui estão e saberás o número dos Fulas.

O régulo ficou irritado com a resposta e chamou-lhe exagerado e medroso.

Quando começou a discussão sobre a maneira de conduzir o combate, que calculavam ser já no dia seguinte, Turá e o tio não estiveram de acordo, pois o rapaz pedia muita pólvora e Djanqué queria poupá-la, preferindo que os Mandingas combatessem à espada em que eram individualmente muito superiores aos adversários.

No mais aceso da discussão, Djanqué gritou:
- Se me pedes mais pólvora, mato-te.
- Pois se não me dás pólvora, vou-me embora, porque não quero assistir ao fim da nossa raça - respondeu-lhe o sobrinho.

Furioso, o régulo quis matar o rapaz dizendo que não podia suportar que um homem do seu sangue fosse um cobarde, mas um velho “judeu” para o dissuadir disso, observou-lhe:
- Estás enganado. Turá não é do teu sangue. A mulher do teu irmão não era pessoa séria.

Ficou Djanqué mais sossegado com a explicação do bardo e, mandando abrir as portas da tabanca fortificada, trovejou apontando o sobrinho:
- Todo aquele cuja mãe seja da qualidade da deste cobarde, pode sair.

Com estas palavras limitou o número daqueles que acompanhavam Turá e ficou certo de que os que ficavam estavam dispostos a morrer.

Nessa noite, os “judeus”, nas suas canções, lembraram a Djanqué toda a sua vida guerreira que culminara com a fundação de Cam Salá. Emocionado pelas recordações da sua glória passada, o régulo jurou que morreria na sua tabanca se a sorte não o favorecesse no próximo combate.

No outro dia, de manhã cedo, começou o ataque dos Fulas que, fazendo o uso de escadas, tentavam entrar na fortaleza. Os experimentados guerreiros Mandingas cortavam cabeças em tão grande número que, para não serem incomodados pelo sangue que secava nas suas mãos, as metiam de vez em quando em caldeirões de água quente.

Os mortos Futa-fulas amontoavam-se em tal quantidade junto às paredes exteriores que as escadas já eram desnecessárias. Mas por cada um que morria, dez outros se apresentavam no alto da muralha.

A certa altura, os “batulás” de Djanqué avisaram-no de que era impossível evitar a entrada do inimigo na tabanca, pois os guerreiros Mandingas já tinham os braços cansados de tanto matar e o ataque Fula não afrouxava .(2)

Então o régulo mandou abrir o paiol da pólvora e disse aos “batulás”:
- Deixem entrar os Fulas. Esta tabanca chama-se Cam Salá. Agora passará a chamar-se Turo Bã (acabou a semente) porque aqui será o fim de Fulas e Mandingas.

Depois, rodeado das suas mulheres, preparou-se para fazer explodir a pólvora, esperando somente que entrasse o maior número de Fulas na fortaleza. A certa altura, um dos inimigos conseguiu chegar junto das mulheres do régulo e agarrar o braço de uma delas, mas Djanqué cortou-lhe a cabeça. A mulher lastimou-se:
- Eu sei que vou morrer, dizia ela, mas custa-me levar para outro mundo cheiro de Fula.

O marido ainda teve presença de espírito para mandar lavar o ponto em que o soldado tocara.

Finalmente, quando já não havia mais nada a esperar, Djanqué Uali deitou fogo à pólvora e, numa explosão tremenda, sucumbiram os Fulas e os Mandingas que se encontravam dentro da tabanca. Somente uma menina foi projetada para muito longe. Havia de ser alguns anos mais tarde, a mãe de Alfá Iaiá, rei de Labé.(3)

Assim acabava o domínio Mandinga no Gabu, mas as perdas dos Futa-fulas havia sido tão honrosa que o marabu que os acompanhara e dissera que a empresa seria fácil teve vergonha de voltar ao Futa Djalon e pediu a Deus que o transformasse em árvore.

A menos de 500 metros das ruínas de Cam Salá encontra-se uma grande árvore solitária de uma espécie a que os Mandingas chamam sotô.(4) 

É o marabu do Futa.
______
(1) -“Chedo”, em idioma fula, significa mandinga, que é a palavra com que abre a canção 
(2) - Batulá significa grande guerreiro e conselheiro militar
(3) - Ainda que Alfá Iaiá fosse Fula por seu pai (e é o pai que define a raça quer entre Fulas, quer entre Mandingas) ele foi muito mais estimado entre os Mandingas, a cuja etnia pertencia a sua mãe 
(4) - A batalha de Cam Salá foi travada em 1866, perto de Pirada, região do Gabu 



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Notas do editor:

Vd. postes anteriores de:

1 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11174: Notas de leitura (460): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (1) (Mário Beja Santos)
e
4 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 11 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11238: Notas de leitura (464): O arquiteto Luís Possolo na Guiné, pelos anos 50 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?

1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajonquito (1970/75), hoje quadro superior da administração pública da República da Guiné-Bissau (*):


Ambientes e ambiguidades > Algássimo, o visionário


Quando finalmente saía do quartel, a noite, encontrava o Algássimo Djaló à minha espera, ele gostava da sopa (entenda-se comida do quartel) que trazia metida em latas de conservas de tomate. Não podia entrar dentro do quartel, por ordens do seu pai, de princípios rígidos e ortodoxos como todos os seus conterraneos de Futa-Djalon que em tudo se comportavam como perpétuos emigrantes e nunca se integravam nas comunidades locais consideradas de nível inferior, religiosamente falando.

O Algássimo queria viver como uma criança normal da sua idade mas vivia quase numa clausura. Nao podia frequentar nem a escola, nem o quartel, nem os locais de festa, de baile, de futebol, nada, nada. Ele podia, sim, procurar lenha seca nos arredores da aldeia para a fogueira da noite onde passavam, ele e mais outros rapazes da mesma comunidade, horas a fio, a repetir alguns sons escritos em árabe arcaico numa tábua de madeira cujos significados nem o próprio mestre sabia. Era esta a faceta da religião que alguns religiosos, sobretudo Futa-fulas, nos queriam ensinar. Tempo perdido (**).

Mais tarde o Algássimo, por iniciativa própria, acabaria por entrar no quartel e também frequentar a escola mas com meios próprios pois o pai, na impossibilidade de o impedir, tinha sido peromptório:
- Queres ir para a escola dos brancos, então, vai!..Mas nãoe peças nada e nãso me contes nada porque não te dou nada e não quero saber de nada pois o seitan será o teu companheiro no inferno.

O Algássimo foi e ficou, do satanás não viu nem os rastos. O pai, este, acabaria mais tarde, por falecer, doidinho da Silva.

Pela idade, experiência e ansiedade que ele tinha acumulado, rapidamente galgou os escalões do ensino e por pouco não me ultrapassava de classe. Foi nessa altura que, também eu, animal livre, resolvi encarar com alguma seriedade a escola, e consegui, finalmente, aguentar-me na sala, sentado, aquelas duas horas que me pareciam uma eternidade.

Mais tarde ele tirava conclusões interessantes das suas observações sobre aquela época, em Fajonquito, a sua entrada no quartel, os soldados portugueses, o ambiente do refeitório geral e a escola onde curiosamente o professor era um Sanhá que queria dizer mandinga ou um beafada islamizado. Disse-me uma vez:
- O melhor e o pior que aprendi com estes brancos, durante a minha permanência entre eles, e que depois continuou em diferentes lugares e circunstâncias, foi o espírito sempre presente da irreverência e da insubmissão, o sentido da busca, da insatisfação permanente, do questionamento sobre o que parece evidente, da insaciável curiosidade e coragem de ultrapassar limites, da revolta, da reviravolta... Com eles nenhuma situação é imutável e a mudança é uma constante. Enquanto continuarem a liderar, o mundo nao terá sossego.

Este espírito irreverente e mutante, este paradigma filosófico de mudança em permanência, se quiserem, é, na opinião do Algássimo, "a maior força e quiçá, também, a maior fraqueza do Homem branco, europeu, que está constantemente a pôr em questão as suas próprias verdades ainda agora conquistadas e reconhecidas mas insuficientemente amadurecidas".

Continuando ainda sobre o mesmo assunto, dizia que, na sua opinião, "o tumulto materialista e a incongruência lógica do mundo em que vivemos hoje nasceram desse posicionamento ambíguo do homem europeu que prolonga a vida mas também a sua agonia nas incertezas que engendra sobre o amanhã que está por vir mas cujo porvir já está hipotecado nas bolsas de valor de Londres e Nova Iorque".

O meu amigo Algássimo, temeroso ou grande visiánario, não conseguiu aguentar o período após independência, nãoo, ainda aguentou uns seis anos, até 1980, altura em que, tendo emigrado para Portugal, com o falecimento do pai, voltou e decidiu mudar-se para o Senegal.

Antes de partir, estando eu nessa altura em Bissau a terminar o liceu, disse-me claramente que não podia continuar na Guiné-Bissau porque, segundo ele, esta seria, durante muito tempo, a terra dos outros. Perguntou-me ele:
- Você não ouviu as cantigas deles ?...

Ele referia-se a uma cantiga em crioulo que dizia assim: Kim ki tem terra? Anós ki tem terra. kim ki na labráá...? kim ki na furtáá...? etc. E a sonoridade da música nao colocava quaisquer margens de duvidas sobre as suas origens étnicas.

Na sua opinião, a Guiné-Bissau tinha poucas probabilidades de sucesso porque em vez do bom pastor o gado tinha sido entreque aos lobos, vestidos com pele de ovelhas. Em vez de pessoas instruídas e com experiência na administração do Estado eram pessoas iletradas, quase analfabetas, que dirigiam e controlavam a vida económica e política do pais.
- Assim não vamos a sítio nenhum - arrematava.

Verdade ou mentira a opinião é dele e no que me concerne, sem capacidade de visionar o futuro, e tendo acreditado e abraçado firmemente a visão e os ideais de Amilcar Cabral sobre a necessidade da luta pela afirmação do homem africano, do terceiro mundo, de um mundo mais justo, de progresso, paz e fraternidade, voltei alegremente dos estudos e estou ainda aqui na esperança de ver se aparece a luz ao fundo do túnel.

Mas a questão é, de algum tempo para cá, recorrente e.... inevitável:
- E se o Algássimo tinha razão?...

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

(**) Vd. poste de 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969

Guiné > Zona leste > Galomaro > 2º Gr Comb da CART 2339 (Julho/Agosto de 1969) > Fotos Falantes I (10, 11, 12) > Aspectos da vida do 2º Gr Comb, destacado em Julho/Agosto de 1969, para o reforço do subsector de Galomaro, incluindo a tabanca em autodefesa de Cansamba.


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados.




Estórias de Mansambo II > CANSAMBA I - O 1º de AGOSTO
por Torcato Mendonça (*)


Fotos Falantes I (10, 11, 12)


No dia 1 de Agosto de 69, fomos destacados para a Tabanca em autodefesa, de Cansamba [ subsector de Galomaro]. Mas como e porquê?

Façamos uma breve introdução.

A meio de Julho, dia 13, saímos de Candamã e Afia (**), tabancas em autodefesa, depois de uma estadia de um mês, e regressámos a Mansambo. Pouco descansámos, pois, dia 16 partimos em diligência para Galomaro em reforço da CCaç 2405 e do COP7.

Ficámos então dependentes da 2405, cerca de vinte e cinco militares do 2º Grupo e três ou quatro picadores. Trinta militares ou trinta e dois no total [vd. fotos].

Logo, no dia seguinte ou no outro, assistimos a uma operação, helitransportada, dos pára-quedistas. Efectivamente, era outra tropa. O treino, os meios, a autoconfiança. Isso e muito mais faziam a diferença.

Cerca de meia hora depois, da primeira saída dos helis com tropas já, no regresso, traziam material apreendido. Até uma gazela que o IN estava a esfolar veio... Assim valia a pena. Tinham, em comum connosco o sermos feitos da mesma massa. Óptimos militares a merecerem o meu respeito. Pena nós não termos mais meios. Mesmo com o pouco íamos cumprindo. Curiosamente cumprimos e detesto o termo – tropa macaca – porque não nos sentíamos diferentes dos que eram apelidados de bons… E gostávamos de certas operações. Vidas!

O IN estava muito activo na zona, quer a Sul/Sudeste de Galomaro quer, mais longe, para oeste, à volta de Mansambo. Atacou várias vezes Mansambo, Candamã e Afiá e, naquela zona, atacou Cansamba, onde estava um Grupo, creio que de uma Companhia de periquitos e Madina Xaquili.

Tínhamos acompanhado a Companhia que para lá foi, em 22 de Julho [de 1969], para trazer as viaturas para Galomaro. Não gostámos daquela Tabanca… já tínhamos mais de dois terços de comissão e o cheiro da mata era sentido de forma mais forte. Creio que antes do regresso, o dissemos a um alferes ou furriel, T-shirt de Operações Especiais, a memória pode falhar. Certo é que o IN foi lá experimentar… hoje, tanto tempo depois, parece-me ter sido a CCaç 12.

O IN, com os corredores abertos, mostrava-se com certo à vontade. Na margem esquerda do Corubal (zona leste) onde não haviam aquartelamentos nossos. Na margem direita, vendo a Carta da Guiné, sabendo as nossas posições, é fácil compreender a progressão das forças do PAIGC, aproveitando a época das chuvas. E não só, não só…

No primeiro dia de Agosto, fomos mandados para Cansamba a substituir o Grupo que lá estava. Saíram de lá felizes, os piras.

Antes trocámos breves palavras, recebemos algum material e eles foram-se. A partir daí era connosco. Vimos que era forçoso haver mudanças rápidas. Era uma Tabanca enorme. A cerca de quinhentos metros estava uma outra pequena. A razão era que esta era habitada por futa-fulas. A grande tinha uma mesquita, simples ou humilde, e uma escola (madrassa). Era uma povoação com alguma importância, resultado da junção de várias tabancas.

Assim, demos início ao trabalho.

Os Furriéis (só dois, o Rei e o Sérgio) deram uma volta, falaram com a população, viram as defesas e o que observaram não os agradou. Eu via o material que tínhamos, esperava pelo regresso dos africanos que iam connosco, a passear pela tabanca na obtenção de informações e ia tomando apontamentos.

Depois todos juntos, estudámos rapidamente os elementos que dispúnhamos e estabelecemos uma estratégia. Para o imediato tínhamos que falar com o Chefe de Tabanca, ver o armamento que estava distribuído à população, organizar minimamente a defesa. Na segunda fase, para os dias seguintes, teriam que ser abertas mais valas, colocado mais arame farpado, organizada a defesa e tentar modificar aquilo. Assim, como estava, era um perigo. Num ataque forte entravam por ali adentro com facilidade.

Mandámos chamar o Chefe. Estranhámos a sua ausência e mais estranhámos a sua demora. Estávamos na zona das suas moranças e ele devia já ter aparecido. Demorou. Demorou tempo demais. Quando chegou vimos estar em presença de um homem que nos ia dar problemas. Talvez por isso a alegria da saída do Grupo de periquitos.

Para grandes males grandes remédios. Tivemos que lhe dizer que, a partir daquele momento quem mandava éramos nós. Compreendeu à segunda. Como? Bem… certamente porque não era parvo. Viria a ser, no futuro, um óptimo colaborador. Após ter compreendido porque estávamos ali, respondeu ao nosso primeiro pedido e rapidamente reuniu todos os homens com armas distribuídas. Era uma loucura ver tanta gente com Mausers, G3, dilagramas e muitas munições. Um bando. Nós, à volta de trinta…

Falamos àquele exército, o chefe traduzia e os picadores (milícias) confirmavam com sinais, olhares... nós percebíamos. A linguagem gestual ou por olhares é óptima…

A noite aproximava-se. Mandámos toda a gente em paz e já não fomos à tabanca dos futa-fulas.

Achámos melhor dividirmo-nos em três grupos, separados a uma distância prudente, com possibilidades de entreajuda. Tínhamos bolsa de enfermeiro mas não tínhamos enfermeiro. Tínhamos operador de rádio mas sem aparelho. Claro que estávamos desfalcados, os meios eram os possíveis. Assim se fazia a nossa guerra. A falta de meios, a normalidade.

O Chefe ficava a dormir na sua morança (escolha dele, claro…) mas eu dormia lá também. Cá fora, no telheiro, dois homens, a revezarem-se. As sentinelas eram feitas pelos três grupos, aos pares. De preferência um picador e um soldado. Claro que os turnos cabiam a todos.

Comemos, arrumámos o material, montámos uma precária defesa e preparámos o descanso. De repente uma saída e começou o ataque. Vinham dar as boas vindas. As ordens eram responder o mais forte possível. Alguém já tinha montado a nossa pesada. Ou seja, um bidão aberto totalmente num lado e só metade no outro. Lá dentro uma simples G3 em rajadas curtas, mas a fazer um barulho dos diabos. Estava lá um 82, do IN, que funcionava com as nossas munições e as deles. Nessa noite foi a triplicar.

Mas o pior não foi o inimigo. O pior foi a população. Vinham á porta das moranças e disparavam as Mauser ou as G3. Gritávamos para virem para as valas, mas nada. Pedíamos ao Chefe, que estava ao nosso lado, entre dois militares, para mandar parar o fogo da população. Nada. Nós, no meio, à frente os inimigos, logo atrás os amigos, posição óptima.

Dois ou três militares levantaram o Chefe acima da vala e então, como estivesse a ser capado, berrou e bem. Calaram-se os amigos e pouco depois os inimigos, talvez a esperar melhor ocasião, fizeram o mesmo. Estavam dadas as boas vindas ou feito o teste aos recém-chegados. Por isso, logo no dia da chegada fomos recebidos assim. O nosso 1º de Agosto.

Um morto da população e um ferido. Disparar dilagramas com bala real era terrível. No outro dia começou a instrução, para a não repetição de situações daquelas e melhorar o uso e conservação do armamento. Além disso começámos a estudar onde e como abrir valas e abrigos. Antes visitámos a Tabanca dos Futa-Fulas. Tinham falta de munições e de outras coisas. Parece que tinham estado em Madina do Boé e vindo para a zona após a evacuação do aquartelamento. Gente habituada aos tiros. Se necessário podia contar com eles na protecção de um flanco. Assunto a ser tratado posteriormente.

Recebemos a meio da manhã a visita do Comandante do COP 7, creio que um Major Pára-quedista, porque em Galomaro ouviram o ataque. Não tinhamos rádio. Pusemo-lo ao corrente da situação e fizemos os pedidos de material.

Estivemos até ao dia quinze em Cansamba. Foram quinze dias óptimos. O apoio da 2405 foi excelente. Em Cansamba tivemos ocasião de contactar com a população, falar com Homem grande que ensinava árabe e o Corão aos miúdos. Era homem de grande sabedoria, talvez um marabú. Tive oportunidade e tempo, de falar com ele e assim aprender a compreender melhor aquele Povo e a sua religião. Eu tinha (tenho) o meu nome tatuado, em árabe, no braço esquerdo e sabia fazer as saudações ou cumprimentos. Isso fez com que a aproximação fosse mais fácil. Interrompida, infelizmente, porque estive dois ou três dias fora, em Galomaro, a curar o meu quinto ou sexto ataque de paludismo. Regressei e notei as benfeitorias.

Reforçou-se a auto defesa, a população teve melhor instrução militar, impedimos que a Administração, através de um Cipaio que por lá apareceu (em Galomaro estava um Chefe de Posto), interferisse com a população… perceberam… e foram-se. Certamente causava-lhes prejuízo a população não pagar o imposto!

Quase nos considerávamos em férias. Recebemos nova ordem: apresentar em Bambadinca no Batalhão. Assim foi. Reunião e saída para Candamã.

Missão: procurar onde era o acampamento do Bi-Grupo, reforçado com artilharia que tinha feito tantos ataques na zona em tão pouco tempo. O Comandante, Mamadu Indjai. Descobrimos a acampamento, os Paras destruíram-no e militares da 2339 (3º Grupo) emboscaram-nos fazendo dois ou três mortos e vários feridos, entre eles o Mamadu Indjai.

O Coronel Hélio Felgas não teve razão com a ameaça – só saiem de lá depois de os encontrar… Enganou-se. Pena foi ter-se acabado Galomaro e o sossego de Cansamba. Um mês bem passado, metade em Galomaro, a outra em Camsamba.

Até ao fim da comissão foi sempre a andar…

[Continua]

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá

4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68

(**) Vd. poste de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa