quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19356: Historiografia da presença portuguesa em África (143): Meu Corubal, meu amor (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Junho de 2018:

Queridos amigos,

O mínimo que se pode dizer deste relatório que se julga ter sido elaborado pelo antigo administrador de Buba, Capitão Castro Fernandes, e datilografado nos anos 1930 por António Pereira Cardoso, importante funcionário colonial, é que se trata de um documento cheio de informação, de muita história e de saber de experiência feito. 

O administrador, a fazer fé no que escreveu, palmilhou todo o território e sabia do que falava quando descrevia etnias e culturas. à distância de um século, revela preconceitos e ideias feitas sobre etnias, mas o que aqui importa é o seu poder de observação e o vigor do seu testemunho.

Um abraço do
Mário


Meu Corubal, meu amor (2)

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um dossiê assim apresentado: Província da Guiné – Relatório de autor ignorado (mas que julgamos ter sido elaborado pelo antigo administrador de Buba, Capitão José António de Castro Fernandes, natural da Índia, cujo filhos residem, ainda, na Guiné. 

O original existia em poder do falecido Capitão Alberto Soares, antigo administrador do concelho de Bolama, combatente das campanhas de pacificação). Quem datilografou em 1931 diz que faltam as primeiras páginas, o que reproduz inicialmente está cheio de tracejado, é manifestamente incompreensível. O manuscrito, como iremos ver, é da década de 1910.

O documento datilografado (presumivelmente em 1931) começa por dizer tratar-se de Cópia – Extraída de um relatório, feito por autor desconhecido. Quem terá datilografado foi António Pereira Cardoso, funcionário colonial vastamente referido em diferentes relatórios das décadas de 1930 e 1940.

Depois de ter falado sobre o rio Corubal, e correspondendo às perguntas do inquérito: Que raças habitam a sua circunscrição? Qual a que predomina? Responde que as raças predominantes eram: Fulas-Forros, Futa-Fulas, Fulas-Pretos, Mandingas, Beafadas, Brames ou Mancanhas, Balantas e Manjacos. 

E dá-nos um quadro bastante rigoroso de quem é quem na circunscrição de Buba.

Os Fulas-Forros povoavam todo o território do Forreá, encontrando-se também no Corubal. É raça bastante simpática e nada tem de comum com as outras que habitam a Guiné, distinguem-se pelo seu temperamento linfático e uma constituição fraca, cor mulata, nariz saliente, boca e face regulares, cabelos lanudos e voz suave. 

O aparecimento desta raça na Guiné data de 1851, ter-se-iam estabelecido no Forreá pouco a pouco e como emigrantes vindos do Norte e Oriente de África. Para se estabelecer, tiveram de pagar um imposto aos Beafadas, destes receberam toda a qualidade de represálias e vexames, e exemplifica: não lhes era permitido que se deitassem em camas ou esteiras no sentido do seu comprimento; não lhes deixavam possuir qualquer espécie de armamento, ou mesmo instrumento cortante; aos cadáveres só era permitido que dessem sepultura dentro das próprias palhotas. 

Assim oprimidos os Fulas-Forros, prepararam a rebelião, nomearam vários cabecilhas, entre eles Bacar Guidali, pai do atual régulo Monjur, do Gabu, e este, auxiliado pelo régulo Délabé, na colónia vizinha, conseguiu livrar os Fulas-Forros do jugo dos Beafadas, mas ao mesmo tempo foi nesta época que se iniciou o aniquilamento do falado comércio e das feitorias do Rio Grande.

Descreve assim os Futa-Fulas: distinguem-se por Futa-Fulas os cativos de Alfa Iáiá, isto é, Futa-Fulas Pretos, que povoam a região do Forreá entre o rio Corubal e os marcos da fronteira 20 a 24; e por Futa-Fulas Forros, que andam em grande número espalhados nas mais densas florestas sem domicílio certo. Estes não se dedicam à agricultura, empregam-se na colheita de produtos naturais, especialmente a borracha. Procuram evitar a aproximação da autoridade, esquivam-se ao pagamento do imposto de palhota. Os processos que esses Futa-Fulas Forros empregam na extração da borracha causam grandes prejuízos às matas.

Os Fulas-Pretos povoam todo o território do Corubal. Antigos escravos dos Fulas-Forros, libertaram-se das opressões destes, por uma revolta estabeleceram-se no Corubal. O Fula-Preto constitui um grupo étnico de filhos espúrios nascidos no cativeiro, sendo assim mestiços de Fulas e Beafadas, por quanto durante as lutas entre estas duas raças escravizavam os seus prisioneiros de guerra. São bastante trabalhadores. Embora amigos de álcool, os seus costumes assemelham-se aos dos Fulas-Forros.

Os Mandingas constituem um grupo oriundo das raças Beafadas, Oincas e Soninqués, que deixaram de beber vinho e se tornaram sextários de Maomé. A origem da raça Mandinga propriamente dita é na região de Pacau, do território francês, ao Norte de Farim. Na circunscrição, como em toda a nossa Guiné, são governados pelos Fulas ou outra raça predominante onde se estabelecem. A sua índole denota uma pronunciada falta de caráter, tendo em pouca conta o princípio da honestidade e honradez; mentirosos por hábito, todos os seus atos são regulados para os fins que têm em vista, não se importando com os meios para os alcançar. Dedicam-se principalmente ao trabalho comercial, sendo a lavoura entregue às mulheres.

Os Beafadas são os primitivos habitantes do Forreá e Corubal, donde sucessivamente foram expulsos pelos Fulas. Povoam o centro do território do Quínara, onde vivem na maior miséria, furando palmeiras e bebendo o vinho que extraem. As suas mulheres, pode-se dizer, são as que pensam no passadio quotidiano, empregando-se na agricultura.

Os Brames ou Mancanhas são emigrados do território da circunscrição de Cacheu e de Mansoa, povoam todo o território marginal do Quínara, desde a confluência do Rio Grande com o de Bolama até ao canal das Arcas. Empregam-se, especialmente, na plantação de mancarra. É considerada a raça mais inferior da Guiné e distinguem-se das outras raças não só pelo seu vestuário como por trazerem a cabeça e o corpo untados com azeite de palma, o corpo tatuado com salientes cicatrizes com variados desenhos feitos com instrumento cortante. São muito trabalhadores e ágeis no manejo de pau e espada.

Os Balantas povoam o território marginal do Quínara desde o canal dos Arcos até Gampará. Vieram emigrados da margem oposta, sendo os que vêm de Nhacra até Colicunda, oriundos da primitiva raça Papel; os que vêm de Gole até Malafo, da raça Beafada e os que vêm de Contoiá, uma mistura de Papéis, Beafadas e Brames. De caráter independente, cada um é chefe de sua casa, não têm régulo.

Os Manjacos são emigrantes de Pelundo, Cacheu, Pexixe e Bissau, povoam geralmente todo o território marginal do Rio Grande e seus afluentes. São muito trabalhadores.

O inquérito irá seguidamente abordar a duração da vida humana (natalidade e mortalidade), os produtos naturais da região, a borracha, a escultura, a habitação, e algo mais.

(Continua)


Publicidade publicada no jornal ‘O Comércio da Guiné’, numa edição de 1931.


O Quartel Militar de Bolama, fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19336: Historiografia da presença portuguesa em África (141): Meu Corubal, meu amor (1) (Mário Beja Santos)

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