terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)

A Galeria dos Meus Heróis >  Os caminheiros do Parque da Cidade (Parte I)

por Luís Graça





Às quintas-feiras encontram-se no Parque da Cidade, têm lá um grupo e amigos e conhecidos que gostam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas.

“Duas voltas ao bilhar grande”, dizem eles e elas. Desenferruja-se as pernas, desentaramela-se a língua, massaja-se os neurónios, tonifica-se o coração, estreita-se os laços sociais e afetivos, limpa-se a vista (com o azul do mar, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultiva-se a boa disposição e o humor, desliga-se o malfadado telemóvel…

O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dizas, é quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, reformados, gente com tempo e vagar, e algumas economias no banco. No essencial, e em comum, têm o gosto por conviver, conversar e andar a pé. É a “tertúlia dos caminheiros do Parque da Cidade”… Já são populares entre os demais utentes e os trabalhadores do Parque e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona.

Há de tudo um pouco: professores, talvez a maioria, engenheiros, bancários, magistrados, advogados, secretárias, domésticas, uma médica, uma enfermeira, uma jornalista, e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vêm do Porto e de Matosinhos, e até de mais longe.

É a primeira geração de portugueses de que se pode dizer que são filhos da abundância, do Estado-Providência, e que podem aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (, contrariamente ao que se passou com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).

Em função da condição física e do número , variável, dos que vão aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acaba por fragmentar-se ao fim de meia-hora.

Formam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não há solidariedade com os fracos que vêm na cauda do pelotão. A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, faz-se uma pausa, de dez minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. É então que o pelotão se reagrupa, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.

Os temas de conversa são os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (, há gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas, das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se divorciam e os netos que vão para a escola…

Vêm também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos e parentes)… Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se fala em sexo nem em dinheiro”, segundo me confidenciou a minha amiga “Nucha”. Percebe-se: muitos tiveram uma formação puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor…

− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejei eu.

O telemóvel e o tabaco são, agora, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” é uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores são, nesse ponto, os mais intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!)...

Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel é “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”. E, tanto quanto me apercebo, quando por lá ando, não há fumadores no grupo.

Um ou outro mais “chato” vai, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes, o liceu, a mocidade portuguesa, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império… Alguns passaram por África e têm memórias desse tempo, umas boas, outras más. Há retornados e ex-combatentes…

Chegam por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que é o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino”, do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim nascida no Estado Novo.

No caso de alguns, os mais velhos, quando nasceram, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.

São quase todos portistas, mas também não se fala de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...

Ficam lá fora as “redes sociais, a par da “política partidária”. São quase todos “desalinhados”, à esquerda e à direita, mas alguns/algumas têm um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até é compreensível.

− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidencia-me a “Nucha”, uma mulher nortenha de grande generosidade.

Quando chove (e aqui chove mais do que no Sul…), ficam a cavaquear no café até próximo do meio-dia, altura em que cada um vai às suas vidas.

− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ?

− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa o “Filósofo”, a caminhar ao lado do “Mister” e da “Poetisa”.

E prossegue o “Mister” que vai no meio dos dois:

− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…

− Então, não me lembro, carago, o “Focinho de Porco”,  andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Poetisa”.

Transmontana, a “Poetisa” é uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade é um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamam-lhe a “Poetisa” porque dá ares da Natália Correia… e também escreve… “versos”. Tanto quanto julgo saber, foi professora de português.

Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciam e toleram o seu “génio”. Tem fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gosta de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"...

− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?! – acrescentou o “Filósofo”.

− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as estafadíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… – interveio o “Mister”.

− Ah!, o Portugal plural no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e branco – lembrou a “Poetisa”.

− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e a censura – acrescentou o “Mister”.

E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje são “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar mais um exemplo:

− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…

− Tens razão, ó “Mister”, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…

E explicou a “Poetisa”:

− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu 1º marido… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…

− E sem “airbag”, que era coisa que, nesse tempo, os carros ainda não tinham! – galhofou o “Filósofo”.

E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar os três amigos.

Na Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade quase toda a gente parece ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que me disseram, faz parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratam por tu, o que ajuda a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores.

E também me parece que, pelo convívio que vou tendo(, irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém leva a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, é mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da(s) história(s) de vida.  Enfim, um ou outro, no início, pode não ter gostado lá muito ou ter até rangido os dentes. Os novatos, que têm sido poucos nos últimos dois ou três anos, são sujeitos, como eu, à incontornável praxe de integração.

− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-me a “Nucha”, uma velha amiga de há, pelo menos uns 20 anos.

Em rigor, não há regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, vai criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.

Curiosamente foi tudo trabalho de um grupo de mulheres, de que restam duas ou três, a quem chamam carinhosamente as “abelhas mestras”. São uma espécie de “mães fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam umas às outras e perguntaram-se:

− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas, e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?!

Foi assim que nasceu a Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade, com a intenção mais ou menos explícita (mas não expressa) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo me contou a minha amiga “Nucha”, que foi professora de biologia… São mais as mulheres do que os homens, o que até é natural neste grupo etário de gente sexagenária e septuagenária… Em dez anos, o grupo sobreviveu e renovou-se. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...

Mas no grupo também há a “Viúva Alegre” (que já despachou para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos…), a “Papa-Léguas” (também conhecida por “Rosa Mota”, por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva…), a “Facebook…eira” (que se vangloria de ter “cinco mil amigos”), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, sempre muito calado), o “Morcão” (ex-autarca, que vem de Gondomar), a “Dina” (ou “Adrenalina”, por ser uma das mais “stressadas” do grupo…) e o “Coronel”, enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequenta o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos arrelvados que, no passado, devem ter dado muitos carros de milho…

− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister” – retomou o “Filósofo” o fio à meada.

E continuou:

− Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…

− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – ironizou a “Poetisa”, que gosta de “picar” tanto o “Mister” como o “Filósofo”.

Prosseguiu este, que tem sempre uma “teoria” para explicar tudo:

− Deixem-me avançar com a minha teoria… 


− Então, avança lá!...Somos todos ouvidos.

− Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens. 

− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou o “Mister”.

− Há uma economia de meios, de energia, de recursos ! – concorda o “Filósofo”. – Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…

− Como alguém disse – continuou o “Mister” – somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…

− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade… − interrompeu o “Filósofo”.

− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do criador – comentou, com sarcasmo, a “Poetisa”.

− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.

− Ou então são confrangedoras! – ripostou a “Poetisa”.

− Sim, repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nas sextas-feiras treze, ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!

− A minha teoria – volta à carga o “Filósofo – é a seguinte: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.

− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Poetisa”− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças… Aponta aí, ó “Filósofo”.

− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!

− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – diz a “Poetisa”.

− E quanto mais velhos, pior! – sentenciou o “Mister”. − Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…

− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Poetisa” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.


(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)

7 comentários:

Alberto Branquinho disse...

Luís

Boa descrição/aula peripatética sobre um grupo tão diverso, com personagens bem definidas, colocada aqui, neste lugar, no momento do movimento de um ano para o outro.
Abraço.
Alberto Branquinho

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Caro Luís, agradeço o teu esforço para nos convencer, aos que vivemos no Porto e Matosinhos (eu vivo no Porto, e bem perto do Parque da Cidade, por sinal), para que frequentemos o magnífico espaço verde (e também azul, junto ao mar) que é o Parque da Cidade do Porto. No entanto, desde que me reformei, tornei-me noctívago e às nove e tal da "madrugada" ainda estou em Vale de Lençóis. Só me levanto ao meio-dia... e tal! É mesmo verdade! Por várias vezes tenho sentido o desejo de me deslocar ao restaurante Espigueiro, ou Milho Rei, ou lá como é que agora se chama, para conhecer pessoalmente a malta da Tabanca de Matosinhos, mas acabo sempre por não ir, porque a essa hora ainda estou em casa a fazer a barba... De qualquer modo, não te preocupes com a minha condição física. Farto-me de andar a pé. Ando tanto que até o meu carro ficou sem bateria por falta de uso. Além disso, tenho o tempo ocupadíssimo. Mas tens toda a razão. O Parque da Cidade é um espaço que os antigos combatentes deveriam frequentar obrigatoriamente, sob pena de serem castigados com meia dúzia de reforços... Aquilo não se pode perder por nada deste mundo.

Feliz Ano Novo

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da CCAÇ 3535, do BCAÇ 3880, que esteve no Norte de Angola

Anónimo disse...

Caro Luís, eu ontem li este belo 'romance' da terceira idade e gostei, como já disse na última parte - II parte.
Mas depois tive de ir tomar ar, e não escrevi, mas compartilho em parte o que o nosso amigo e camarada ex-combatente de Angola- Também são Camaradas? - os horários agora são mais apertados, e a cama faz muito bem.
O que eu queria dizer, sobre estes diálogos, é apenas uma coisinha:

'O CIMBALINO' já não se usa em parte nenhuma, do Porto e arredores.
Ele nasceu com a primeira máquina Expresso, com o nome de Cimbalino, mas durou uma ou duas décadas, mas hoje em dia, não me lembro de algum pedir um Cimbalino, quer seja no Magestic, no Guarany, ou noutro cafezito qualquer. Saia um CAFÉ por favor - ou curto, normal ou cheio, com ou sem açucar, mais quente ou menos quente. Também pedimos em chávena escaldada, não só para vir quente, mas para matar os micróbios do parceiro anterior.

Depois temos o Pingo, que pode ser normal (metade café e metade leite) 'Pingo Directo' que é mais café do que leite, e o 'Café Pingado' aquele que tomo, só café, e um pinguito de leite.

Para as meias de leite, os galões etc, é mais ou menos a mesma coisa, mais café ou menos café, depende do cliente se gosta de leite ou não.
A minha mulher que nunca tomou esta bela bebida - o café - só pede 'Pingo de Cevada' outra variante, e ainda há 'O pingo de limão', água quente com a casca do dito.

Mas o melhor que ainda hoje sonhamos, é mesmo aquele café de caso, dos anos 50 e tais, sempre a sair para a panela de bico...

E peço isto em qualquer parte do país, não vou nessa de 'bica'!

Uma boa continuação.

Virgilio Teixeira

Anónimo disse...

rectifico.

'CAFÉ DE SACO'.
vt.

Luís Graça disse...


Obrigado, Virgílio, eu sei que o termo "cimbalino" já não se usa ou usa-se pouco... Quando comecei a ir ao Porto (e a primeira vez foi... em 1975|, o mais longe que tinha ido, antes do 25 de Abril de 1974, foi à Murtosa...), era um vocábulo corrente... Esta geração dos caminheiros é do tempo do "cimbalino"... O vocábulo está grafado nos nossos dicionários... É uma pena que se perca o seu uso, por influência dos média (TV, jornais, Internet...).

Tens razão, "bica" é sulista...

Ab, Luís
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cimbalino | s. m.

cim·ba·li·no
(Cimbali, marca registada + -ino)
substantivo masculino
[Portugal: Norte] Café feito em máquina de pressão e servido geralmente em chávena pequena. = BICA, EXPRESSO


"cimbalino", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/cimbalino [consultado em 02-01-2019].

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Tomando o fio à meada do comentário do camarada Virgilio Teixeira, quero lembrar que, durante muitos anos, o estabelecimento do Porto que servia o melhor café de saco da cidade era... o Café Progresso. Esse mesmo, o do "Bando". De resto, o Café Progresso deixou a sua marca na história do Porto. Já existia há cem anos e era o ponto de reunião preferido dos professores da Universidade que estavam politicamente situados mais à direita. Em contraponto, o Café Âncora d'Ouro (mais conhecido por Piolho, pelas razões que se imaginam) era o ponto de reunião dos alunos da Universidade politicamente situados mais à esquerda. Como se calcula, durante a Primeira República os ânimos andaram exaltados entre os frequentadores de um e do outro café, a ponto de chegarem a vias de facto com alguma frequência. O que valia, era que o Hospital de Santo António estava logo ali à mão para tratar as cabeças rachadas...

Com a queda da Primeira República, veio a Ditadura e a seguir veio o Estado Novo, que muito devem ter agradado aos frequentadores do Café Progresso. Alguns deles devem ter tomado o caminho de Lisboa, para ocuparem cargos em governos de Salazar, e os outros também se dispersaram porque, entretanto, novos e luxuosos cafés foram surgindo no Porto, como o Palladium, o Rialto, o Imperial, etc. Alguns destes novos cafés eram de tal modo requintados que até tinham orquestra privativa! O Café Progresso, por seu lado, não definhou, nem um bocadinho, precisamente por causa da qualidade do seu café de saco. Em vez de receber os excelentíssimos senhores professores doutores que o frequentaram no início, o Café Progresso adquiriu um caráter mais popular e passou a receber pessoas de todas as classes sociais, que nele entravam para se deliciarem com o melhor café da cidade. Quanto ao Piolho, esse manteve-se exatamente na mesma e continuou a albergar gerações e gerações de estudantes e intelectuais de esquerda, mais alguns "bufos" da PIDE à mistura. Mesmo depois do 25 de Abril, o Café Piolho manteve esta característica de café do reviralho, que só perdeu quando se tornou no centro da "movida" noturna do Porto.

Lá pelo virar dos anos 60 para 70, quando já o resto do país bebia café de máquina (menos em alguns estabelecimentos resistentes, como o Café Intercontinental, em Coimbra), a máquina de café expresso começou a fazer a sua aparição na cidade do Porto. Foi nessa altura que uma das empresas fabricantes de máquinas, chamada La Cimbali, lançou uma campanha publicitária na cidade, na qual se dizia: "Não peça café. Peça um cimbalino". E o nome "cimbalino" pegou. Pegou, mas já não se usa mais, porque já ninguém bebe café de saco.

E o Café Progresso, como é que ficou no meio desta mudança de hábitos? Ficou muito mal. Foram rareando cada vez mais os verdadeiros apreciadores de café, que no Progresso entravam para o beber, porque o sabor forte do café de máquina se impôs ao paladar dos portuenses, em vez do do requintado e aromático café de saco. O Café Progresso não teve outro remédio senão render-se e instalar também uma máquina de tirar cimbalinos. O Progresso deve ter sido um dos últimos estabelecimentos do Porto, juntamente com o Estrela d'Ouro (que eu mesmo frequentava), a adotar a malfadada máquina. Esta quase ditou o desaparecimento do Café Progresso, porque este estabelecimento passou a servir um café igual ao dos outros. Entrou em decadência e um dia, como se esperava, encerrou. Toda a gente julgava que tinha sido para sempre. Mas não, algum tempo depois o Café Progresso renasceu, parecido com o que tinha sido antes, mas renovado e acolhedor, sem luxos nem arrebiques despropositados. As pessoas voltaram a entrar no café Progresso, não já por causa da sua bebida, mas sim por causa do seu ambiente e do convívio que este proporciona.

Aqui começa a história do Bando do Café Progresso, mas esta só os "bandalhos" poderão contar.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da CCAÇ 3535, do BCAÇ 3880, que esteve no Norte de Angola

Anónimo disse...

2ª parte do texto sobre o Cimbalino e outras coisas….

O Café Progresso conheço-o apenas a partir de 64, quando entrei na Faculdade de Economia, que funcionada então no Edificio da Universidade, lá em cima no 3º piso em apenas duas salas, nós éramos muito poucos.
Então eu como trabalhava de dia, era aluno extraordinário, só era obrigado a frequentar as aulas práticas, das 8-10 h da manhã, e a partir das 18 horas.
De manhã lá vinha no electrico, que apanhava perto de minha casa, no Jardim da Arca de Água, era o Nº 9 e vinha do Amial até ao Carmo, e tinha uma paragem ali na Praça Carlos Alberto, e logo ao lado estava o Café Progresso, onde ia saborear o meu café antes das aulas, e naquelas manhãs frias de Janeiro e Fevereiro, lembro-me como se fosse hoje.
Não fui grande frequentador de Piolho, era um local para a malta que só estudava, e não me lembro se eram de esquerda ou direita, pois eu próprio não sabia nada disso, era um 'apolitizado nato'.
Com a ida para a tropa, quando voltei fui logo trabalhar, depois casar, 3 filhos seguidos, e lá ia fazendo umas cadeiras ao abrigo da lei militar, quando queria, mas era dificil conciliar tudo, com filhos todos bebes, mesmo com a omnipresença da mãe, que não tinha tempo para tudo.
Assim viria a acabar já na Faculdade Nova lá para os lados do Cemitério de Paranhos e Hospital de São João.
O café expresso ficou a ser a bebida mais procurada, pois os outros iam lentamente deixando o café de saco, e todos os novos cafés só abriam com máquinas expresso, oferecidas pelas marcas dos cafés que utilizavam, como ainda hoje acontece.
Então o Café Progresso esteve ausente da minha vida por largas décadas, fui lá no ano passado, andava por aqueles lados sozinho a ver as novidades, e lá vou encontrar o Progresso com as 'novas instalações' que não eram nada do passado, o estabelecimento é o mesmo, o mobiliário e afins já diferentes, mas mantendo a traça. Não me lembro se tinham café de saco, mas sei que bebi um bom café expresso.
Agora têm a palavra os 'bandalhos do Progresso' cujo nome só fiquei a conhecer através deste Blogue há menos de um ano.
Acho que passava aqui o dia todo a escrever sobre a vida dos cafés do Porto, pois eram os locais de encontro dos amigos, das familias, do povo todo, ricos e pobres.
Hoje encontramo-los nos novos 'Shopings' e os cafés foram fechando dando lugar a outros estabelecimentos, Bancos, Casas Comerciais, Mc Donalds, mas felizmente alguns ainda hoje sobrevivem, mas nada com o ambiente nostálgico do passado, também tinhamos os 20 anos e hoje já não. Entretanto mudo para uma cidadezinha à beira mar plantada, e tudo o vento levou.

Agora o Fernando Sousa Ribeiro, já conhece um pouco mais destas histórias dos cafés.

Um abraço,
Virgilio Teixeira, ex-alferes miliciano do SAM do BCAÇ 1933, Guiné 67/69.

Em 2019-01-03

(O dia em que assentei praça em Mafra, 3 de JANEIRO de 1967, faz hoje 52 anos, passando por aquele cena degradante, todo nu e com frio de rachar, naquele enorme Convento, com o tal papelinho na mão a tapar o pudor, em fila indiana, a passar por aquela legião de médicos para nos darem aptos para ingressar naquela tropa de então. Passo e ter um NIM 00439364, e sou chamado o Soldado Cadete nº 10, do 1º pelotão da 3ª Companhia).