sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19361: Notas de leitura (1137): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67) (Mário Beja Santos)


Edifício da Agência do BNU de Bissau e zonas circundantes, 1921.
Por amável deferência do Arquivo Histórico do BNU.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Não subsistem dúvidas que entre 1962 e 1963 o gerente de Bissau teve acesso privilegiado a informações que lhe eram fornecidas a título sigiloso pelo inspetor da PIDE, daí o manancial informativo que extravasava os comunicados oficiais, assim será até ao início de 1964 em que por razões que escapam à investigação o gerente se irá confinar aos comunicados oficiais.
Em meados de 1963, agravara-se a situação do Sul e a guerrilha estendera-se às vizinhanças de Bissau e era a sigla entre Bissorã e Mansabá, o PAIGC organizava-se no Oio e preparava o seu santuário na região do Morés.

Com as informações que nos irá chegar do gerente de Bissau, no final do ano também o PAIGC marcará presença na região de Bambadinca, a subversão também se organizava para lá do Corubal, as forças portuguesas eram diminutas, estavam então sediadas em Fá Mandinga, o aquartelamento de Bambadinca será posterior.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67)

Beja Santos

Tinham crescido, notoriamente, as dificuldades económicas, a desagregação que a guerrilha estava a operar no Sul motivara o comentário do gerente de Bissau em 31 de maio de 1963:  “A actividade comercial está hoje muito reduzida e acha-se quase circunscrita às operações da Sociedade Ultramarina e da Casa Gouveia” e é neste preciso contexto que o gerente, sabe-se lá se premeditadamente ou não, lança uma insinuação da maior gravidade:

“Certamente por instruções superiores, o pessoal da Sociedade Comercial Ultramarina tem colaborado com as autoridades na repressão do terrorismo.

Ao contrário, a Casa Gouveia, não só tem negado o seu auxílio dando ordens terminantes nesse sentido, como ainda despede os empregados que ajudem as nossas forças, tendo até demitido o encarregado da sua operação do Xugué, de apelido Barros, que lutou na defesa da povoação.

Por tal motivo, o citado indivíduo vai ser condecorado com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe, consta que em 10 de Junho próximo, por actos de bravura praticados.

Como resultado de tal política, poucos prejuízos têm sofrido, ao passo que a Sociedade Comercial Ultramarina, em represália da colaboração prestada, foi obrigada a encerrar algumas operações.
Estamos habilitados a informar que a fábrica de descasque de arroz da nossa cliente Camacho & Correia, sita em Cufar, a cerca de 15 quilómetros de Catió, cremos que a única unidade industrial localizada no Sul e até agora protegida pela tropa instalada no próprio recinto fabril, vai ser desmontada e transferida para Bissau logo que termine a operação de descasque do cereal ainda existente nos seus armazéns.

Nota-se que os indígenas da região sublevada estão a aparecer vindos dos seus refúgios no mato e, caso significativo, dispostos a liquidar o imposto.

Será com o receio das chuvas, este ano muito retardadas, que de novo se aproximam do europeu? Ou do espectro da fome, esperada em face da destruição das colheitas de arroz, seu secular alimento?
Os próximos meses nos darão a resposta!

Como a V. Ex.ª. foi dado conhecimento por nosso telegrama de 25 do corrente, devido à escassez de arroz da produção local, uma vez que no Sul, tradicional celeiro da Guiné, pouco se colheu, vai o Governo da Província importar aquele cereal do estrangeiro. À primeira partida de 4 mil toneladas autorizaram outra igual, que se seguirá. Deste modo, será o habitual défice da balança comercial da Província agravado com mais este encargo da ordem das três dezenas de milhões de escudos”.

O discurso agora é orientado para informações sobre o evoluir da luta:

“A actividade terrorista manifesta-se em pequenas acções mais para marcar a sua presença, na opinião das nossas autoridades, que pelos efeitos destrutivos de que se revestem.

No prosseguimento desta táctica, na madrugada de 16, perto da fronteira senegalesa, foi atacada e em seguida incendiada a camioneta da carreira Bissau-São Domingos, presos os passageiros e pessoal de condução, todos indígenas, que não foram molestados, levados para Zinguinchor e mais tarde libertados.

Também em 4 de maio, um pequeno grupo de 15 a 20 indivíduos que se supõem pertencerem ao Movimento de Libertação da Guiné atacou a povoação de Bigene. Repelidos, deixaram rastos de sangue.

O facto mais saliente da acção militar foi a perda em 22 de maio de dois aviões ‘Harvard’, que em missão de rotina sobrevoando a ilha de Como, se despenharam por motivos ainda ignorados. O corpo do piloto de um deles, cujos destroços foram mais tarde localizados pelas brigadas de socorro saídas em seu auxílio numa bolanha situada na área de Tombali, foi encontrado fora da carlinga, desarmado, nu e coberto de palha. Crê-se que foi retirado já sem vida do aparelho sinistrado por elementos rebeldes. O outro avião, descoberto também pelas brigadas na mesma região, foi incendiado depois de uma aterragem normal. Do piloto, Sargento Lobato, não se encontraram vestígios. Corre aqui com certa insistência que está prisioneiro dos rebeldes na ilha do Como. Porém, concreta e oficialmente, nada pudemos saber. Há informações da existência de bandos armados nos territórios vizinhos das Repúblicas do Senegal e Guiné com o beneplácito dos governos respectivos”.

O gerente de Bissau regressa à escrita em 6 de julho, toda a temática se prende com a evolução da guerra. O gerente revela que a sua habitual fonte informativa é o inspetor da PIDE, demorou algumas semanas a poder estabelecer contacto e diz mesmo: “Ainda esta manhã nos deslocámos novamente ao seu gabinete com o mesmo objectivo, sem resultado positivo, não tinha comparecido ao serviço” e pede desculpa pela insuficiência de detalhes nas informações que vai prestar:

“Na semana que hoje termina, a situação atingiu uma fase muito delicada que dia-a-dia se vai tornando cada vez mais grave.

As nossas tropas aqui estacionadas são comprovadamente insuficientes para a manutenção de uma cobertura militar capaz de proteger bens e vidas dos habitantes guineenses.

Os elementos terroristas vindos dos campos de treino existentes em territórios vizinhos do Senegal e Guiné infiltram-se pelas nossas extensas e desguarnecidas fronteiras, disseminando-se pelas terras do Interior, onde praticam os ensinamentos colhidos e fazem o aliciamento das populações nativas.
Os seus últimos e violentos ataques a forças do Exército caracterizaram-se por uma ousadia e conhecimentos de táctica de guerrilhas fruto por certo de aturado treino, que causam espanto e em contraste absoluto com o seu anterior procedimento.

Nalguns sítios do Sul, caso da ilha do Como, onde estão instalados, de pedra e cal como se costuma dizer, possuem mesmo armas pesadas.

Nas margens do rio, entre Cacine e Cabedu, instalaram metralhadoras pesadas que alvejam comboios de navios de transporte de arroz, não obstante a escolta de lanchas da Marinha.

De meados de Junho a esta parte, os seus ataques recrudesceram num ritmo que está a causar perturbações e, nalguns casos mesmo, alarme na população menos calma, alargando as suas actividades a zonas onde até há pouco ainda não tinham feito a sua aparição.

Deste modo registou-se um ataque a uma coluna militar na estrada Mansoa-Bissorã. 
A três quilómetros de Farim, a caminho de Binta, foi atacado um carro particular ocupado por indígenas e feridos gravemente os seus dois passageiros.

O Sr. João Herculano Graça, sócio-gerente da Guimal, de que a Sociedade Industrial  [ou Comercial ?] Ultramarina também faz parte, ao saber da presença de elementos terroristas nas imediações da fábrica de serração daquela firma, descolou-se a Mansabá, distante poucos quilómetros, para avisar o pelotão militar ali sediado, sendo no regresso alvejado a tiro de arma automática, felizmente não foi atingido, todavia o jipe que conduzia ficou danificado.

Houve, também, uma tentativa de destruição de um pontão na estrada Nhacra-Mansoa, a 5 quilómetros desta localidade, presumindo-se pelo buraco encontrado pretendiam utilizar cargas de plástico.

Foi ainda tentado, na mesma estrada, o incêndio de uma pequena ponte de madeira com emprego de gasolina.

Os prejuízos causados, quer em homens, quer em material, a destruição por deflagração de uma mina colocada na estrada São João-Fulacunda, nos primeiros dias deste mês, de um veículo militar com novos ocupantes, foi ocorrência de maior relevo dos últimos tempos. Há a lamentar neste acidente a morte instantânea de dois militares e, mais tarde, de um terceiro que expirou a caminho do Hospital Militar desta cidade, segundo nos foi dito por médicos do Exército por queimaduras provocadas por gasolina derramada pelo depósito do veículo. Os outros quatro feridos, com queimaduras em elevado grau, seguiram para a Metrópole, de avião militar, em estado desesperado.
Chega-nos também a notícia da morte de um alferes em combate, na área de Cabedu.

As nossas autoridades procuram eliminar elementos nativos afectos ao inimigo, mas deparam com inúmeras dificuldades, avultando entre elas o mutismo a que os prisioneiros se remetem, preferindo, muitas vezes, serem maltratados a denunciarem os seus correligionários.

No entanto, consta que há dias foi apanhado o chefe da tabanca de Nhacra e os componentes da sua célula. Tal indivíduo era considerado fiel à nossa bandeira!

Outros acontecimentos se registaram, tais como: ataque a Catió com a população refugiada na igreja; bombardeamento de objectivos em Jabadá, com artilharia de bordo dos navios de guerra em comissão nas águas da Guiné; tentativas de fuga de nativos para se juntarem aos ‘libertadores’.

Do piloto-aviador, Sargento Lobato, que, como dissemos a V. Ex.ª, em 31 de Maio findo, se suponha estar prisioneiro dos rebeldes na ilha do Como, sabe-se que se acha em poder dos terroristas em território vizinho.

Temos ainda a lastimar a morte por acidente do nosso colega metropolitano Furriel Miliciano João Nunes Redondo, vítima do deflagrar de uma mina em Catió.

Não há dúvida que com a proximidade dos acontecimentos, se vive presentemente em Bissau um momento difícil.

É opinião geral que se as nossas forças não forem reforçadas com urgência de modo a abandonarem a táctica defensiva até agora adoptada em face da carência de efectivos, a situação tomará uma feição com tendência a agravar-se”.

No acervo do Arquivo Histórico do BNU encontra-se um importante documento intitulado “Situação Política na Guiné”, provavelmente redigido em maio de 1963 e que é visão do gerente da Sociedade Comercial Ultramarina, trata-se de uma peça que carreia mais informações que permitem melhor compreender o evoluir da guerra e a desagregação do tecido económico e social.

(Continua)

Vista do interior do Cineteatro Bolama, fotografia de Francisco Nogueira.
Retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Guarda de polícia numa recepção ao Comandante Mello e Alvim, Governador da Guiné.
Imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954.
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Nota do editor

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Último poste da série de31 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19348: Notas de leitura (1136): “Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira; Editora UFPE, Recife, 2015 (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Luís Graça disse...

Amigos, amigos, negócios à parte!...

Cãdê "o superior interesse da Pátria" ?... DE um lado a Casa Gouveia, grupo CUF, do outro a Sociedade Comercial Ultramarina (, grupo BNU)...

Valdemar Silva disse...

Para que fique bem claro, a rapaziada foi para a guerra na Guiné para combater por esta causa: os interesses/negócios destas sociedades coloniais.
Combater pela Pátria é outra coisa bem superior.
(se calhar o IN é que combatia pela Pátria)

Valdemar Queiroz

Luís Graça disse...

Valdemar, ao fim destes anos todos, fico com uma dúvida existencial: afinal de contas, eu andei a defender, em 1969/71, os interesses de quem ? Do BNU ou da CUF ?... Teria preferido ser mercenária, ao menos sabia quem me pagava... LG

Valdemar Silva disse...

Pois, Luís.
Calhando, foi o BNU e a CUF quem deu o dinheirinho para pagar à rapaziada que
andava na guerra.

Valdemar Queiroz

Luís Graça disse...

Sempre olhei para aquele dinheiro como dinheiro sujo, o "patacão da guerra"...