sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19341: Notas de leitura (1135): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66) (Mário Beja Santos)

Ruína de antiga fábrica alemã
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
É de incontestável importância o relatório assinado pelo Dr. Durval Ribeiro, ao funcionário da Sociedade Comercial Ultramarina que visita a Guiné em abril de 1963, fica-se a saber que ainda há movimento predador e pilhagem do Movimento de Libertação da Guiné, surtidas do Senegal, que ainda se nota uma certa paz no centro e à volta de Bissau e que o Sul até à região do Corubal está numa completa polvorosa, os funcionários da Sociedade, uns demitem-se outros estão desanimados, os europeus partem. Dir-se-á mais tarde, numa insinuação de que não há elementos concludentes abonatórios, que a Sociedade Comercial Ultramarina estava a ser mais afetada pela lealdade à soberania portuguesa que a Casa Gouveia, esta jogaria no equívoco, na dupla face. Mas não há elementos que substantivem essa insinuação.
Tudo mudara radicalmente, de janeiro para abril de 1963.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66)

Beja Santos

De 1 a 13 de abril de 1963, o adjunto da administração da Sociedade Comercial Ultramarina vai à Guiné e elabora um relatório de 16 páginas, carreia elementos e informações de inegável interesse. Fora encarregado de observar o que se estava a passar nos diferentes postos da Sociedade, visitar clientes e apurar a situação geral da Guiné, entre outros elementos de missão. Não se poupou a viajar, esteve no Sul, em Catió, Bedanda e Cacine e a norte do Geba esteve em Bafatá, Contuboel, Farim, Mansoa, Teixeira Pinto e Cacheu. Contactou inúmeros clientes: Arif Elawar, Mamud Elawar, Álvaro B. Camacho, Alberto C. Barros, Salim Boulassem, Jamil Heneni, Virgílio Reis, Casimiro Pires, Hermínio Correia, João S. Sepúlveda, Ernesto Lima, Jamil Wounes, Pedro G. Santos, Heni Abi Kalil, José Kalil, José Gabriel, Francisco Correia, Joaquim Escada, José Reis, José Amine, Mário Lima, Benjamim Correia, Taufik Saad, Carlos Domingos Gomes, Manuel J. Morais. Contacta um grande número de entidades, Governador da Província, altos funcionários, Comandante da Polícia, Chefe da PIDE, oficiais em Catió, Bafatá e Tite, administradores de circunscrição, Presidente da Associação Comercial, gerente do BNU, gerentes da Casa Gouveia e de Barbosa & Comta.

A situação da Província é relatada ao pormenor e quem leu o relatório vai sublinhá-lo amiudadas vezes. Escreve ele o seguinte:
“A actuação subversiva assumiu na Guiné três aspectos distintos que passarei a referir segundo as regiões onde se processaram:

Zona Norte – Na região fronteiriça ao Senegal continuam fazendo sentir-se os efeitos de um grupo cujo móbil tem sido, essencialmente, o saque e a pilhagem. Esse grupo que após as primeiras depredações em Guidage passou a actuar principalmente na região entre S. Domingos e o Litoral, hostilizado, nas suas últimas incursões, pelos nossos nativos, os Felupes, ter-se-á deslocado para Leste, encontrando-se na região do Casamansa, frente à nossa faixa entre Ingoré e Bigene, na qual já se verificaram recentemente roubos de gado.
Na opinião do administrador da circunscrição de Farim, com o qual me avistei, preocupado com a posição do nosso posto de Guidage, cujo encarregado encontrei em Farim, não haveria risco para a nossa empresa, dado que a autoridade administrativa do Senegal, da região que directamente lhe faz face, o tranquilizara a esse respeito.
Com excepção do centro comercial de Susana, abandonado em virtude dos estragos sofridos, várias actividades das populações continuam a processar-se como anteriormente e a insegurança é acidental, dado que os agitadores se encontram do lado de lá da fronteira que atravessam para as suas surtidas de saque, pilhagem e depredação.

Zona Centro – na região compreendida entre os rios Geba e Cacheu, desde o Litoral até à fronteira Leste, embora num clima de preocupação, vive-se em segurança. Em viagem de automóvel, com um motorista nativo e o chefe dos Serviços Industriais, para a zona de Bafatá, para apreciação dos descasques, e com o chefe dos Serviços Comerciais, para a zona de Teixeira Pinto, tudo se afigurou normal durante o percurso, parte do qual foi efectuado de noite. No entanto, esta zona dos limites da circunscrição de Bafatá para Oeste tem merecido especial atenção por parte dos agitadores, distinguindo-se os centros de Bissau e Bissorã e a região do Biombo, não tem sido, felizmente, ultrapassada a fase das reuniões e elaboração dos planos, gorados eficazmente pela intervenção oportuna das autoridades.

Zona Sul – A situação na região ao sul do rio Geba e a oeste do rio Corubal é totalmente diferente. Reina aqui a insegurança, pois que aos agitadores tem cabido a iniciativa das operações e embora a sua actuação se caracteriza pela mobilidade, o domínio geral da região pertence-lhes. Tal domínio traduz-se por: assalto ao aquartelamento de Tite; ocupação de Darsalame, que teve de ser bombardeado e deixou de existir como povoação e centro comercial; assalto ao aquartelamento da secção destacada em Salancaur e ao nosso estabelecimento pelo apoio que a Sociedade Comercial Ultramarina tem prestado às nossas tropas de que resultou a retirada da guarnição e o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais; abandono da actividade comercial em Unal, Banta e Chequal; recusa das mulheres em efectuar, em alguns locais, como era hábito, os carregamentos de embarcações, cumprindo assim as instruções recebidas dos agitadores, etc.

A estes factos há a acrescentar a perda de duas embarcações, refugiadas na República da Guiné, uma, o Arouca, pertencente a A. Pinho Brandão, e a outra, o Mirandela, a A. S. Gouveia, esta última das melhores unidades do tráfego fluvial da Província, as quais se supõe terem sido assaltadas, o Mirandela já depois de carregado com 80 toneladas de arroz.
Posteriormente, a navegação para o Sul passou a ser feita em comboio, escoltado por uma lancha da Armada, o que torna muito mais moroso o movimento das embarcações.

Com os actuais efectivos militares na Província, afigura-se impossível a eliminação dos grupos subversivos, ou mesmo a neutralização da sua actividade, apesar da acção da viação e de o único batalhão de que se dispunha em Bissau como reserva estar já em operação em Catió, desde Fevereiro, o que terá conseguido criar a tais grupos dificuldades e insegurança que, até então, não encontravam. A situação é grave, desprestigiante perante as populações nativas indecisas ou mesmo fiéis. Os reforços que necessariamente terão de ser enviados resolverão o problema do domínio territorial, mas já não eliminarão totalmente as consequências político-económicas de uma situação de domínio do inimigo desde o início deste ano, pois irão chegar tarde. Já no seu regresso da Guiné, em Fevereiro, o nosso Presidente do Conselho de Administração levou ao conhecimento do Governo a necessidade de reforços imediatos, que ao terminar a nossa visita, em 13 de Abril, não tinham sido ainda enviados”.

O relator examina as consequências, nomeadamente o previsível desastre da campanha de arroz, a necessidade imperativa da sua importação, a diminuição da atividade industrial e comercial, o êxodo das populações, e tece considerações sobre a população branca:  
“A população europeia vive, como é óbvio, sob forte preocupação. Vive preocupada com o futuro da própria Guiné, perante a feição que os acontecimentos tomaram. De entre a população nativa é de salientar a atitude dos Fulas e Mandingas que têm patenteado o seu desejo de auxiliar as autoridades na repressão dos movimentos perturbadores, o que já se tem verificado, e o comportamento das tripulações (Manjacos) das embarcações utilizadas no tráfego fluvial e costeiro”.

Expende considerações sobre a confiança na Sociedade por parte das autoridades, comércio e particulares, detalha questões do setor industrial e comercial, procurando avaliar prejuízos havidos nos postos do Sul. Não deixa de referir a luta desenfreada que estava a ocorrer com a prática de preços na compra do coconote, a Sociedade protestara junto da casa Gouveia, por receber coconote com uma percentagem de impurezas superior à fixada.
A situação do pessoal levantava preocupações, é interessante ouvi-lo:
“O encarregado de Cacine acusa já o desgaste da sua permanência junto da fronteira, vai ser substituído. O encarregado de Salancaur demitiu-se por ter sido ameaçado por várias vezes pelos agitadores, supondo-se que devido ao franco apoio prestado aos elementos militares. O encarregado de Cadique pensa em pedir a demissão, embora se encontre presentemente em Bedanda, junto do encarregado deste posto. Está indeciso. Os nossos empregados dos postos do Sul manifestaram a esperança de uma retribuição especial pela posição perigosa que ocupam, o que parece ser de toda a justiça”.

Tece conclusões de caráter geral que enfatizam o que foi anteriormente referido: situação normal e muito preocupante na zona Sul; campanha de arroz fortemente afetada; campanha de mancarra a decorrer normalmente; campanha de coconote com tendência para a concorrência entre os exportadores e produção estimada inferior à dos anos anteriores; sérias preocupações quanto à sementeira na próxima campanha de arroz.

Em 23 de maio, o administrador da Sociedade Comercial Ultramarina envia a Castro Fernandes, administrador do BNU, este relatório assinado pelo Dr. Durval Ribeiro.

Em 31 de maio temos nova carta depois de um silêncio de 2 meses, o gerente informa que continuam operações conjuntas das três armas, com destaque para a ação da Força Aérea que, no Sul da Guiné, quase toda à mercê dos terroristas, empregam bombas de “Napalm”, arrasando sistematicamente os esconderijos dos elementos rebeldes.
Observa do seguinte modo o que por ali se está a passar:
“Exercendo pressão sobre as populações indígenas da referida região, que obrigam a fornecer-lhes alimento e a coadjuvá-los nas suas nefastas actividades, os terroristas prosseguem no abate de árvores para obstrução das vias de comunicação, cortes de estradas por meio de valas, destruição de pontes, queimando, assaltando povoações e estabelecimentos comerciais e, sempre que a ocasião lhes é favorável, armando emboscadas às nossas tropas e chegando mesmo ao ponto de atacarem aquartelamentos militares, como sucedeu em Catió e Bedanda.
O Ana Mafalda, esta semana saído do porto de Bissau com destino a Lisboa, foi alvejado a tiro, no canal de S. João, quando da sua passagem para Bolama, não sendo, contudo, atingido.
Por não ser aconselhável a sua permanência nas áreas dominadas por terrorismo, por falta de cobertura militar adequada, os poucos europeus que ainda habitam o Sul estão a abandonar os seus haveres, retirando para lugares menos expostos.”

(Continua)


Duas fotografias que constam do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
____________

Nota do editor

Poste anterior de 21 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19313: Notas de leitura (1133): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19327: Notas de leitura (1134): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: