sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19343: Memórias de Gabú (José Saúde) (76): As habituais mensagens Natalícias de antigos combatentes. Realidades de guerra (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

     Gabu em memórias 

As habituais mensagens Natalícias de antigos combatentes

Realidades de guerra

O tempo foi, é e será de uma Paz que a humanidade expressamente muito considera.

Uns acreditam piamente no solene momento espiritual; outros, guiam-se pela inatingível
“estrada de Santiago” mostrada no infatigável horizonte boreal que os conduzem ao
mundo das utopias.

Prezo a quadra mágica do Natal e do Novo Ano. Considero e respeito todas as opiniões,
volto a referir com ênfase. Recordo, com um inabalável e contemplativo sentimento
nostálgico, as mensagens que os soldados fixados então nas três frentes de guerra –
Angola, Moçambique e Guiné - transmitiam aos seus familiares e amigos nestas épocas
festivas.

“Daqui fala o soldado…” um combatente que transmitia à plebe que se “encontrava
bem” e lá ficavam os beijos e os abraços para que o povo, carente de sensível saudade,
descansasse a sua alma que se inseria num manto salpicado de tristeza. “O meu rapaz
está bem”, comentava uma desconhecida mãe que entretanto se mostrava refeita de uma
desmedida mágoa pela ausência do caridoso fruto que colocara no mundo. Via-o na
televisão e logo o seu ânimo ressuscitava.

Nesta panóplia de infindáveis mensagens lá surgia um camarada que enviava beijinhos
para o seu recém nascido filho, ou filha, que por ora não conhecia. Partiu para a guerra
com o embrião aconchegado na barriga da sua amorosa companheira.

As imagens televisivas, onde o cenário de guerra mostrava jovens envergando os seus
camuflados e normalmente inseridos numa paisagem onde a vegetação de fundo
apontava para os gigantescos planos de uma África no seu melhor, eram escolhidas a
dedo, sendo que o repórter de imagem não corria um alegado risco que interferisse com
o bem-estar pessoal.

Em Gabu ocorreram reportagens “encaixadas” em tempos de pleno conflito. Todavia, as
realidades da guerra eclipsavam-se por esses momentos de lazer. O combatente sentia
que o seu dever era transmitir que “estava bem” e tudo se confinava a uma auréola de
fértil esperança.

Da então Nova Lamego, hoje Gabu, guardo réstias de memórias dos tempos em que a
televisão, a preto e branco, transmitia “Mensagens de Natal e de um Feliz Ano Novo”
de camaradas que se entregavam ao elevo de uma fantástica “máquina” de filmar que
lançava depois para o ar imagens de sonho e carregadas de confiança.

Mas, tudo o que tem princípio tem fim. Revejo, em lembrança, o período das nossas
comissões militares na Guiné, e das “escarpas” que tivemos de ultrapassar, sendo
algumas delas rotuladas de extrema dificuldade.

Uns partiram rumo a solo guineense e chegaram isentos de mazelas; outros,
infelizmente, morreram em combate, ou numa outra inusitada situação; mas existem
aqueles que revelam danos corporais que um dia levarão para a sua derradeira morada,
cuja consequência direta teve como origem uma mina antipessoal, uma bala que lhe
perfurou o corpo numa maldita emboscada, ou como efeito uma improvável causa que
entrementes lhe causou o desespero.

E com estas indesmentíveis realidades de guerra, sempre merecedoras de reparo, me
despeço dos camaradas que fizeram o favor de me “aturar” ao longo desta minha
“comissão” no blogue em que partilhei convosco escritos sobre o conflito na Guiné,
onde fomos evidentes protagonistas, uns como “heróis” no momento exato em que o
combate acontecera, admitindo, com convicção, que todos foram substancialmente
“heróis”, alguns deles vistos depois como “vilões” por força de um regime que
entretanto libertou soldados entregues à sorte nas antigas províncias ultramarinas.

Desculpem a utilização proibitiva neste espaço dos termos “herói” e “vilão” que, ao que
sei agora, não se compadecem com as regras implícitas no nosso blogue, admitindo
desde logo que esta “obscenidade” era-me totalmente desconhecida. Peço, obviamente,
perdão pelo lapso. Sou humano e como tal reconheço o erro.

Mas permitam-me regressar ao tempo em que Portugal assumia a democracia e nos
deparávamos na rua com militares de cabelos compridos, barbas cerradas, cigarro ao
canto da boca, mal fardados, exibindo vaidosamente uma G3 que pressupostamente não
saberiam a razão do porquê factual da sua existência e, bem pior, maltratando
combatentes que além-mar serviram a Pátria, desconhecendo, ou talvez não, que a
pessoa “torturada” fora alguém que combatera com garra ao lado das NT.

Da Guiné, aquela em que todos nós combatemos, ficarão fundamentais retratos de
homens que para além das suas mensagens natalícias, guardam, embora escassamente,
sinais de literais maus tratos praticados por gentes que jamais saberão o que foram
cenários de uma coerciva guerra a que fomos forçados, engrossando, sem rei nem roque,
as frentes de combate.

Mitigando em temáticas que entendo usufruírem de uma cabal audição, provocando
“ronco” numa Tabanca aberta a todas as opiniões, vejo-me entretanto débil para
transportar jocosamente um tambor cuja emissão de “ruídos” não consegue porventura
ultrapassar a barreira do som. Neste contexto, a batalha ter-se-á ajustado ao copioso
parecer que aqui não houve vencidos e nem tão-pouco vencedores.

Imaginariamente continuarei a palmilhar um trilho que se aperta em cada dia que passa,
mas, por outro lado, isento de minas antipessoais que ferem sensibilidades. Aliás, será
inserido neste pausado caminhar que me deparo com o motivo de tristeza por parte de
quê de direito em não considerar os antigos combatentes como “heróis”, compensando-
os estoicamente pela sua bravura, e não como meras peças descartáveis onde os
“vilões”, ou seja, “plebeus comuns de um universo onde se cruzam opiniões adversas”,
jamais terão cabimento. 


Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:  


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