segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19327: Notas de leitura (1134): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,

Oxalá o realizador guineense Flora Gomes encontre inspiração nesta bela narrativa para fazer um filme único sobre o homem do cinema que encheu os confins da Guiné com risos e lágrimas.

Manuel Joaquim teve vários requisitos que permitiriam um filme assombroso: as mudanças operadas na Guiné com as comunicações e depois com a guerra; a relação que manteve com a administração e os colonos no mato; o caçador e o comerciante; e aquela espantosa vida familiar, a família em Lisboa e ele a chegar ao aeroporto da Portela na época da chuva sempre em calção, para fúria da Julinha, e temos o meio familiar desse colono que ele julgava vigiar noite e dia, pura ilusão.
Que belíssima narrativa!

Um abraço do
Mário


Com o Manuel Joaquim, o cinema chegou a toda a Guiné (2)

Beja Santos

É possível questionar se a obra “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes, edição da Alfarroba, 2018, é um romance, um relato memorial ou uma investigação de caráter biográfico. Um homem dos sete ofícios, apaixonado pela mecânica, parte da Europa para Cabo Verde e daqui para a Guiné, já com família constituída. A narrativa de Lucinda Aranha Antunes começa num quase presente e num quase presente desagua, num tumulto de revelações e mágoas. É um texto intercultural, o crioulo está sempre presente, Manuel Joaquim e Julinha, a sua amada esposa, pontificam, com filharada, criadagem, amigos certos e desertores nas horas incertas.

Manuel Joaquim não era só o homem do cinema, desenrascava no setor público e no setor privado, a autora conta uma história bem curiosa:

“Certa vez, em 1964, a Central Elétrica de Gabu teve uma avaria que deixou a cidade às escuras por quinze dias. Em desespero, o secretário Barros e o administrador Faria Leite mandaram-no chamar.

Chegou, pela manhãzinha, mandou desmontar o motor, viu as avarias, reparou-as e supervisionou a montagem do motor. Pelas seis horas, já ao lusco-fusco, deu-se o milagre da luz. A criançada, em círculo, batia palmas, dançando e gritando a compasso, Manel Djoquim, Manel Djoquim. O Aguinaldo Évora, o encarregado da Central, dizia para quem o queria ouvir, é um mecânico de mão-cheia, o melhor de toda a Guiné. A ele recorria a própria Central Elétrica de Bissau para a produção de peças, porque não tinha grandes oficinas (…) Pelo trabalho de iluminar a Guiné não cobrava nada, mas em troca os governantes facilitavam-lhe a projeção dos filmes, publicitavam a sua chegada e, frequentemente, encarregavam-se mesmo de fazer vender os bilhetes”.

A sua chegada a qualquer local gerava uma atmosfera de euforia, fosse qual fosse o destino onde arribasse, tocava duas buzinadelas, o altifalante jorrava música. “Era único. A miudagem, de cabeça perdida, batia latas e entoava uma música que corria por toda a Guiné e que marcava o início do momento solene, a chegada do cinema:

A la Manel Djoquim i na bimA la Manel Djoquim cú seu cinema
Olalé, olelá.”

A administração tocava o tantã, o homem do cinema merecia todas as honras:

“Os administradores e os chefes de posto encarregavam-se de anunciar a vinda de Manuel Joaquim, os sipaios, alguns feitos homens-sanduíches, publicitavam o cinema em todas as localidades, os régulos também avisavam toda a gente, afixavam-se cartazes nas árvores. Caso a publicidade não chegasse, lá estavam os sipaios para ir buscar, forma simpática de dizer, os espectadores às tabancas”.

Manuel Joaquim era um moralista, escolhia nos catálogos segundo critérios cinematográficos rigorosos, nada de beijos prolongados, havia cuidados com a toilette, evitava a todo o transe excessos indecorosos.

“As escolhas recaíam em musicais, dramas românticos, comédias, filmes históricos, bíblicos, de capa e espada, de guerra, de aventuras, de terror (…) Eram êxitos garantidos os filmes do Charlot ou do Tarzan, cujo grito de guerra a criançada e até muitos adultos imitavam, e em que a Chita era uma mais-valia, as comédias portuguesas, o Cantinflas, o Totó, o Fernandel, o Jerry Lewis, com gargalhadas a esmo, o Joselito, que fazia sempre as senhoras verterem lágrimas copiosas”.

A narrativa de Lucinda Aranha Antunes multiplica-se em pormenores, em peripécias, assistimos às grandes alterações de Bissau, a luta armada, no início, parecia que não ia bulir com o homem do cinema, as dificuldades surgiram, em Lisboa, a família começa a aperceber-se por quem chegava dos imensos riscos, nas longas temporadas que passava na metrópole Manuel Joaquim levava a família a reboque para passeatas. Regressava à Guiné e a guerra passou a ser um assunto sempre presente nas andanças, a autora desvela o que mudava no território e na sociedade, a própria comunicação social dera muitas voltas, desenvolvera-se a rádio, Bissau tinha cinema na UDIB e no quartel-general. Manuel Joaquim meteu-se em negócios ruinosos, a saúde começou a faltar, começaram os tempos difíceis, os falsos amigos desertaram, um AVC derrubou o homem do cinema, é um rosário de intrigas, de desfeitas, de mudanças radicais.

É uma bonita homenagem que se presta ao homem do cinema da Guiné, mostrar um mapa da colónia e apercebermo-nos que ele percorria todo aquele território com filmes de todos os géneros, deu alegria e alimentou sonhos, jamais se repetiria tão espantosa experiência desse senhor que tinha a sua própria carripana, com atitudes de autossuficiência, mecânico exímio, caçador e negociante, guiava-se por um amor extremo à vida do mato, fugia ao aliciamento citadino e na época das chuvas desembarcava em Lisboa em calções, meia alta e sapato grosso, para desespero da Julinha, pouco dada a exibicionismos.

Lucinda Aranha Antunes dá-nos o contexto familiar em pinceladas sóbrias, onde não falta o colorido das observações em crioulo. E temos os cenários dessa Bissau que se desenvolve e prospera na economia da guerra, um Bissau velho pejado de coisas fartas, há muito dinheiro para as comprar. E também o desânimo desse colono com princípios que era prestável, ingénuo nos negócios e nas amizades, só se apercebeu de muito oportunismo de quem com ele se relacionava nos tempos difíceis, derrubado pela doença. Um percurso humano de alguém que desde criança adorava desmontar máquinas, se embevecia com o celuloide e encheu os matos da Guiné com horas de fantasia, entre a comédia e o drama. Uma belíssima narrativa que devia chegar rapidamente a Cabo Verde e à Guiné, tão poderoso é o texto intercultural e a mensagem inerente a este audaz homem do cinema.

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Notas do editor:

Poste anterior de 17 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19300: Notas de leitura (1132): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19313: Notas de leitura (1133): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

É verdade, Beja Santos.
Venha o Vasconcelos, o Canijo ou outro realizador, argumento já há e que belo filme seria este 'Homem do Cinema'.

Boas Festas

Valdemar Queiroz