segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19328: Blogoterapia (290): O Medo - como nunca pensei que sentisse (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 21 de Dezembro de 2018:

Carlos e Luís
Após a leitura do livro do nosso camarada António Martins de Matos e em especial o capitulo escrito pela psicóloga Teresa Matos sobre o medo, resolvi fazer uma pequena viagem sobre o meu medo ou medos.
Junto vai uma foto onde estão vários dos que seriam sobreviventes da emboscada do Quirafo em Abril de 1972. De notar que o que está na primeira fila ao centro é o condutor único sobrevivente da primeira viatura. Ao lado dele, à nossa esquerda, é o condutor da segunda.

Um Feliz Natal e um próspero Ano Novo para todos os membros da tabanca mais para as suas famílias.

Abraços
Juvenal Amado


O MEDO

No dia 24 de Dezembro faz 47 anos que desembarquei em Bissau integrado no meu Batalhão 3872, o que quer dizer, que no momento que escrevo estas linhas navegava ou estava ao largo da ilha da Madeira. Não tive medo quando fui mobilizado, nem quando embarquei, nem quando desembarquei. Havia um misto de curiosidade e distanciamento, que quase parecia que não me estava a acontecer aquilo e que era um simples observador.

Mas na noite do desembarque, já no Cumeré, provei o medo como nunca pensei que existisse tal sentimento. A violência da guerra chegou até mim, que tinha dado duas dúzias de tiros de G3 e era esse o som mais próximo que tinha dela. Não sabia na altura que a espiral do medo tinha tantos patamares e que, aquele som das antiaéreas, a fazer batimento de zona, que faziam tremer o chão, não era nada comparado com som de um ataque onde as explosões e o matraquear das armas ligeiras têm um resultado tão aterrador.

O medo tolda-nos os sentidos, desfaz-nos o discernimento, penetra perniciosamente nos músculos, tolhe-nos as passadas, encharca-nos a roupa com suor gelado, deixamos de ver e ouvir com clareza, por vezes não se tem controle sobre as mais elementares necessidades fisiológicas, a irracionalidade sobrevem à amálgama de sensações descontroladas, em que nos tornamos seres sem quereres nem vontades próprias. Desse estado, saímos em várias direcções e soluções impensáveis, quando, no estado da razão de que normalmente somos proprietários, faríamos ao contrário .

Ao longo da vida passamos por diversos medos por ou ignorância rotulamos de medo, pois o medo na infância do escuro, do professor, do resultado do exame, o medo de ser rejeitado, o medo do ridículo, em nada é equiparado ao medo que nos descontrola ao ponto de nada mais ter interesse que a preservação da vida.

O medo como escreve a psicóloga clínica Teresa Matos* (vale a pena ler) é bem mais complexo do que até aqui eu pensava. Envolve a produção ou ausência de substâncias que na nossa condição de humanos produzimos. Escreve ela, que sujeitos ao medo o nosso corpo se transforma com reacções físico-químicas, que nos preparam para receber em antecipação o impacto de qualquer agressão que nos ponha em perigo.

Depois respondemos ao medo por ordem de um superior, porque por vezes existe o medo hierárquico, que suplanta o medo do inimigo. Se assim não fosse, como se explicaria, que à ordem de comando um soldado salta para a frente afrontando cortinas de balas?

Noutras, o individuo reage em autodefesa, porque é necessário responder à agressão. Finalmente o medo pode tolher de tal maneira o individuo que nada fará para se defender.

No principio da guerra, falou-se de quem se matou após a mobilização com medo de morrer na guerra, quando afinal dessa forma certeira cumpriu o destino que temia mas, que lhe era incerto.

“o medo tem alguma utilidade, mas a covardia não”. Mahatma Gandhi

Quem esteve em situações de combate, ou participou em colunas em que minas mataram camaradas, sabe do terror que se sente após os acontecimentos, a dificuldade de abandonar a vala e em especial, em mexer os pés do sítio onde nos abrigamos na urgência.

Conheço um camarada que tendo sofrido uma emboscada onde morreram vários companheiros (Quirafo - Saltinho) sofre de stress pós-traumático e o medo apodera-se dele de tal forma que não consegue responder-lhe, não dorme, é visitado pelos acontecimentos e as caras dos que morreram não lhe saem da cabeça. Os sons da tragédia compõem a banda sonora do que poderia ser um filme. Neste caso são os psicólogos e psiquiatras a administrar químicos em substituição dos que não se produzem naturalmente de que fala a autora Teresa Matos. O organismo do nosso camarada não consegue responder ao medo que se pegou a ele de forma visceral. Cumpre-me aqui informar, que já não falo com o camarada desde que ele começou a ser tratado e por isso, não ter real conhecimento do seu estado hoje.

Alguns destes camaradas sobreviveram à emboscada do Quirafo. O que está na primeira fila ao centro é o condutor único sobrevivente da primeira viatura. Ao lado dele, à sua direita, é o condutor da segunda

Naquele tempo também sofri do medo real e em antecipação ao que poderia acontecer quando ia em colunas mas por outro lado pernoitei em sítios onde só alguma inconsciência da minha parte, permitiu ignorar o perigo. Conheci quem com medo dos ataques, só se deitava após as 11 horas da noite, pois era norma que se não nos atacavam até aquela hora, já não fariam com medo de serem apanhados pela madrugada na retirada.

Fez no dia 1 de Dezembro anos que fomos atacados ao arame farpado. O sentinela na dúvida se eram cabras a pastar ou guerrilheiros, não quis disparar com medo de levar uma porrada do comandante. Valeu-nos outro camarada que pegou na G3 e despejou o carregador sobre os vultos.

Mas o medo também é motor da actividade humana. O medo de ficar para trás, o medo que pareça mal, o medo da solidão e da incompreensão, o medo da velhice quando afinal devíamos ter mais medo de não chegarmos a velhos.

Assim existem vários patamares para o medo. O medo é um sentimento que se revisita como nenhum outro, pois há quem tenha medo de ter medo.

“Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com a coragem”. Jean Paul Sarte

Um Feliz Natal em paz é o meu maior desejo para todos os camaradas

(*) - Livro de António Martins de Matos Voando Sobre Um Ninho de Strelas, capitulo 42
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19145: Blogoterapia (289): Aquele toque a finados é uma coisa que me arrepia... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

3 comentários:

Luís Graça disse...

me·do |ê| 1
(latim metus, -us)
substantivo masculino

1. Estado emocional resultante da consciência de perigo ou de ameaça, reais, hipotéticos ou imaginários. = FOBIA, PAVOR, TERROR

2. Ausência de coragem (ex.: medo de atravessar a ponte). = RECEIO, TEMOR ≠ DESTEMOR, INTREPIDEZ

3. Preocupação com determinado facto ou com determinada possibilidade (ex.: tenho medo de me atrasar). = APREENSÃO, RECEIO

4. [Popular] Alma do outro mundo. = FANTASMA


"medo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/medo [consultado em 24-12-2018].

Luís Graça disse...

Juvenal,é espantoso, andamos aqui há quase 15 anos a falar da guerra, e não tínhamos até agora este decritor ou marcadao, "medo"... Em boa bora, o Carlos Vinhal reparou a anomalia. A partir do teu poste, passamos a ter o descritor, marcador ou palavra-chave "medo"...

Todos tivemos (e temos) medo, medos...Eu também passei por alguns situações, antes, durante e depois (de emboscadas e explosões de minas), de grande medo, ou seja, na fase em que somos comfrontados com uma ameaça (que pode ser de "vida ou morte") e mobilizamos as nossas "forças (competências e recursos cognitivos, materiais, humanos, sociais), e respondemos à ameaça... Esse processo é decisivo, daí a importância do treino humano, militar, operacional...

Juvenal, era bem que a malta pegasse no tema, mas não é fácil... Requer uma boa capacidade de autoanálise e algum talento para a escrita...

Quem diz que nunca teve medo, é mentiroso...O medo faz parte da vida. Mas os nossos filhos (e as nossas mulheres...) gostam, de vez em quando, nos perguntar: pai, tiveste medo ?... Há alguns de nós, valentões, que respondem logo:
- Ó filho, que disparate!... O teu pai nunca teve medo, até tem uma cruz de guerra!

Carlos Vinhal disse...

Quem? Eu? Medo? Nunca tive.
A primeira vez que neutralizei minas antipessoais, umas 4, tinha acabado de morrer o alferes Couto, vítima de uma, quando acabei o serviço dei conta de que a camisa estava completamente encharcada de suor. De medo? Não, que ideia. Foi da temperatura que se fazia sentir.
Nas emboscadas nocturnas, que detestava solenemente, nunca tive medo, acho é que tinha fobia ao escuro. Lembram-se? Até as árvores "andavam".
Nas colunas auto nunca tive medo, nem ao passar no corredor da morte, em Mamboncó. Acho é que enjoava um bocadinho com a trepidação do unimog a rolar no alcatrão.
Medo nas patrulhas? Nem pensar. Talvez sentisse alguma alergia à vegetação e ao capim em particular. Nem quando tivemos de fugir às morteiradas do PAIGC, em Fátima, qual quê? Senti é que as minhas pernas pensaram por mim.
Bom Natal, camaradas. E não tenham medo que o pior já passou.
Carlos Vinhal
CART 2732
Leça da Palmeira