Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) > Nota de 50 escudos (pesos), verso. O banco emissor era o BNU - Banco Nacional Ultramarino.
Nesta altura, um soldado, no mato, podia gastar entre 1/3 e 1/5 do seu pré...
Foto: © Sousa de Castro (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*)
(i) nasceu em Penafiel, em 1950, de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje);
(ii) foi criado pela avó materna;
(iii) reside na Lixa, Felgueiras;
(iv) é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;
(v) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado;
(vi) completou o 12.º ano de escolaridade;
(vii) foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);
(viii) tem
página no Facebook; é avô e está a animar o
projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;
(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.
Hoje, 24 de março, ele e um grupo de avós e netos vão começar a replantar, às 10h00, a bela serra do Marão, criando assim o "Bosque dos Avós".
Sinopse:
(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.
(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);
(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;
(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,
(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;
(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;
(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;
(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";
(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";
(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...
(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;
(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.
(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;
(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.
(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);
(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, s pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo...
(xviii) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste);
(xix) como responsável pelos reebastecimentos, a sua preocupção é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco.
2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 37 e 38[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
37º Capítulo > JÁ NÃO TENS DINHEIRO NO BANCO
Lembrava-me vagamente de ter sido acusado, por alguns colegas, de ter os artigos da cantina de graça, pelas funções que ocupava. Se assim fosse, nunca o diria, ou até, se calhar, gabava-me de lixar o exército. O caso é que, a partir daquele dia passei a ser o cantineiro. Afinal, confiavam em mim.
Falo nisto porque toda a gente dizia que no meu lugar, no fim da tropa, estaria rico.
Devido ao lugar onde nasci, tive sempre alguém que me acusou de ladrão. Na minha companhia, havia soldados naturais da minha própria aldeia e sei que tinham um pouco de inveja de mim. Sendo filho de quem era, e morando onde morava, o meu lugar devia ser andar no mato, como eles.
Provei que muitas vezes é nos pântanos mais nauseabundos que nascem belas flores. Orgulho-me de tudo que fiz na minha vida militar, mesmo as idiotices que tenho cometido. Vem isto a propósito do dinheiro que sempre foi a causa de muitos males e das informações que íamos recebendo de casa.
E comecei a ler cartas de colegas cujo dinheiro que mandavam para a Metrópole desaparecia.
O meu tio já me tinha escrito a dizer que a minha avó andava a emprestar o meu às minhas tias. Era chato mas a minha avó tinha-me criado e mantido 12 anos até eu ganhar o 1º salário, por isso, o dinheiro era mais dela do que meu.
Agora vocês experimentem ler uma carta dum pai para o filho, nesta situação.
O filho está num local rodeado de arame farpado com uma G3 na mão e granadas à cintura. Acabou de chegar duma missão, com as coxas e os pés em ferida, provocadas pelas micoses que o torturam.
Vá lá. Leiam-lhe as cartas. Ele não sabe ler e está à espera que lhe deem boas notícias depois daquela perigosa e longa operação. A água do cantil tinha acabado logo de manhã. A ração de combate foi diminuta. Até o leite achocolatado extra que levara se evaporara. Mas, em vez de comer ou beber, quando regressou ao quartel, o que deseja saber primeiro são notícias, pois ouvira, quando andava no mato, o barulho da avioneta.
O Zé Leal já lhe tinha separado o correio, uma única carta. Ele rasga o sobrescrito e passa-te a missiva para a mão. Depois das habituais saudações lês.
“Já não tens dinheiro no banco, a tua mulher porta-se mal”
Nunca alguém soube deste episódio. Continuei a ler e a escrever muitas cartas repletas de dramas. Esta nem foi das piores. Acompanhei durante algum tempo a vida civil deste amigo que, infelizmente, foi muito curta. (Faleceu no inicio dos anos 80.) Não infiro que este facto contribuísse para isso mas sei que sofreu muito.
Nunca mais li uma carta sem primeiro a ler só para mim.
38º
Capítulo > MAR DE ROSAS
Nem acredito que disse aquilo, quando fui trabalhar na cantina. Aqui vai o meu pedido de desculpas a todos os ex Serrotes de Fulacunda por no dia 13 de Janeiro ter escrito que eram uma cambada de 140 (Enharras) (estúpidos, parvos, camelos, em crioulo).
O nome Os Serrotes, como não podia deixar de ser, deu-se devido ao culto da personalidade do comandante. Capitão Serrote.
Comprei um rádio para melhor passar o tempo na cantina, que permanecia seis horas aberta e, embora só existisse uma emissora, dava muita música que muitos colegas passaram a vir escutar comigo, principalmente os discos pedidos. Foi muito divertido o 1º que me foi dedicado pela minha prima. Mar de Rosas dos The Fever. Em que rico Mar de Rosas vivíamos, prima Mila.
Este aparte serve um pouco para desanuviar. Não andarei longe da verdade se disser que foi ali, como cantineiro, que aprendi a viver como hoje vivo. Bem em metade do mês, e mal na outra metade. Que se lixe viver o mês todo mais ou menos.
Ter bebidas frescas foi a minha primeira prioridade. Os frigoríficos a petróleo não eram muito fiáveis. Pelo que li agora, quando recebíamos o pré (Ordenado), o consumo triplicava. Teria que ter, durante alguns dias, uma média de 250 embalagens de bebidas frescas diariamente.Com dois frigoríficos pequenos como eram aqueles, foi complicado.
Uma coisa lhes garanto: para os camaradas que estavam em serviço, ou que vinham de operações, as bebidas frescas nunca falharam. Leio aqui que, infelizmente, para outros tal não foi possível. O meu pior serviço era para os que queriam bazucas; ocupavam muito espaço, eram difíceis de refrescar e, por isso, havia sempre poucas. A bazuca era uma das nossas boas armas de guerra. Na gíria, referíamo-nos também a “bazuca”, designando uma cerveja de litro, devido à configuração da garrafa.
Infelizmente, o dinheiro acabava depressa e o consumo diminuía drasticamente.
Uma coisa é certa e estranha. No dia anterior houvera festa nas tabancas.
“Meu bem ontem houve aqui festa nas tabancas, pois iniciou-se o ano Muçulmano, portanto para aqueles que em vez de Deus, adoram Alá foi o primeiro dia do ano, isto porque a religião deles não é igual à nossa eles são muçulmanos e nós cristãos”
Escrevi mesmo isto? De facto está aqui bem explícito, o que só demonstra a minha ignorância, então.
Talvez não seja tanto assim, pois em muitos aspectos, acho que me reduzi intelectualmente. Por exemplo, só recentemente voltei a escrever e se não fosse o computador corrigir os meus erros, daria mais que há 45 anos atrás e nem um inútil acordo ortográfico me ajuda.
Que coincidência! No aerograma seguinte falo de Camões e de poesia lírica. Que lindo texto escrevi no dia 17/1/73. Vou reler mais um parágrafo.
“ Alma minha gentil que te partis-te… Estes pequenos versos que compõe o soneto que te envio, referem-se à sua amada, que morreu afogada quando ele vinha da Índia, e sofreu um naufrágio, tendo salvo as folhas dos Lusíadas”. “Eu sei que nem qualquer pessoa gosta de poesia. Eu gosto”
Voltando ao início e como a reforma não chega para um mês, tal como os nossos salários na Guiné, vivo metade do mês bem e a outra metade mal-
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Nota do editor:
Último poste da série > 24 de março de 2018 >
Guiné 61/74 - P18454: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 35 e 36: "Capturaram um turra, trouxeram-no aqui para o quartel. O tipo tem mesmo cara de bandido, se eu pudesse dava-lhe uma rajada de G3 que ele nunca mais nos voltava a atacar.”