sexta-feira, 30 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18469: Notas de leitura (1053): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (28) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,

O conflito prolongado que foi a II Guerra Mundial teve inevitavelmente impactos nas transações e na vida económica da Guiné, envolvendo, claro está a metrópole. O que aqui se relata tem a ver fundamentalmente com as necessidades acrescidas do Senegal, tudo irá mudar com os desembarque dos aliados no Norte de África em 1943, porão em causa, as novas forças em Dakar, o entendimento entre os comerciantes da Guiné e os aliados do Eixo. Segundo o gerente de Bissau, a bonança veio rápida e o comércio prosseguiu de vento em popa, a metrópole a fornecer quantidades colossais de fazendas e outras mercadorias.

Não é a primeira, nem será a última vez, que o gerente de Bissau, tece densa filosofia política em torno da agricultura guineense. Mas desta vez deixa claro que o modo de trabalhar do indígena guineense é um sério entrave à prosperidade agrícola, tão sério entrave como os calamitosos e inconsequentes investimentos feitos em projetos agrícolas que deram com os burrinhos na água. Se estivermos atentos, foi uma constante histórica. O que justifica a observação de Amílcar Cabral que o colonialismo português na Guiné não ficou marcado pela posse efetiva da terra.

Um abraço do
Mário



Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (28) 

Beja Santos 

A África Ocidental francesa ganha acuidade durante a II Guerra Mundial. Veja-se este apontamento constante do relatório da agência de Bissau referente ao primeiro semestre de 1943:

“A vizinha colónia do Senegal, por motivos de guerra, viu-se quase abastecida da sua metrópole e sem possibilidades de ser abastecer daquilo que mais necessitava.

Durante largo período, foi-se bastando com os stocks que tinham quando a fazenda e recebendo auxílio de Marrocos, quanto a subsistências.

As necessidades próprias da guerra esgotaram depressa as existências e o Senegal recorreu à nossa Guiné. Principiaram as exportações daqui para lá com fornecimentos de batatas; cebolas; algumas latarias; massa de tomate, de que o Senegal faz colossal consumo; queijos; manteiga e vinhos do Porto.

A falta de alguns destes géneros, na nossa própria colónia, paralisou tais exportações.
Veio então a procura de tecidos em relativa quantidade para consumo indígena, mas em quantidades enormes de zuartes e caquis destinados às tropas em luta.

Fizeram-se grandes negócios e lucros e os comerciantes da Guiné, certos da continuação do negócio, importaram maiores quantidades daqueles tecidos.

Dá-se o desembarque anglo-americano e a posição do Senegal mudou.

Enquanto as autoridades que estavam, viam com bons olhos os fornecedores da nossa Guiné, as autoridades que vieram consideram as anteriores como entendidas com o inimigo. E não só suspenderam as compras, porque os ingleses e os americanos passaram a trazer os seus tecidos para venda e fornecimento às tropas, como também não pagaram os fornecimentos que já tinham recebido dos comerciantes da Guiné. Dois males para estes ou, antes, para os fornecedores da metrópole.
Nem se venderiam facilmente os stocks existentes na colónia, quantidades invendáveis relativamente ao consumo próprio nem se saberia quando seriam pagos os fornecimentos feitos anteriormente. Daí resultou uma parte grande do comércio da colónia não poder honrar os seus compromissos, deixando protestar grande quantidade de letras. Na altura em que se ultima este trabalho, há esperanças de que o actual governo do Senegal se resolva a pagar o que deve.

Já o governo da colónia começou a ter interferência, o governo do Senegal tem aqui um depósito de 6 mil contos para fazer face a tais pagamentos que, pelas informações que dispomos, andarão pelos 12 mil contos.

Resolvido este caso, será paga uma grande parte das dívidas em atraso. E como já se pensa em exportar o excesso de tecidos existentes na colónia, desde que tal suceda, ficará o assunto resolvido. Nesta barafunda toda, tem o banco ganho bom dinheiro, e graças à nossa prudência não há um único real que se possa considerar comprometido”.



Uma preciosidade: as primeiras três ordens de serviço da agência do BNU em Bissau, 1918


No relatório anual desse mesmo ano de 1943 dá-se como notável o movimento de protestos, 162 letras protestadas num montante próximo dos 13 milhões de escudos, houve contudo liquidações, ajustamento de contas e o saldo do ano era de 59 letras protestadas num montante de 5 milhões. A explicação decorre um tanto do que acima se escreveu sobre as exportações para o Senegal e o comércio com o Norte de África:

“A razão de ser estes protestos foi só uma, a evolução das coisas relativas à guerra, no Norte de África. Antes da evacuação total das tropas alemãs e italianas, a África Ocidental francesa não tinha facilmente outra fonte de abastecimentos senão a Guiné Portuguesa. O nosso comércio fez o que era natural, aproveitando a oportunidade para vender muito e caro. Foi o que se fez e, no final das contas, tirando aborrecimentos que já passaram, os que o fizeram muito ganharam. As autoridades consulares inglesas mostraram indecisão, no princípio, ou não compreenderam a tempo que as toneladas e mais toneladas de tecidos que vinham da metrópole para a Guiné eram para se escoar para o chão francês. Porém, quando viram começar aqui o escoamento, lembraram-se de que os caquis e zuartes que iam para Dakar seriam destinados às tropas inimigas. Foi então que recusaram certificados de navegação para a vinda de mais fazendas da metrópole para a Guiné e entraram a fazer pressão sobre os comerciantes para que não fossem mais fazendas para o Senegal. A Guiné é toda cercada por terra francesa e a guarda-fiscal não chega à fronteira. Passou o que pode passar em contrabando, e muito passou regularmente. Foram alguns para a lista negra e tiveram dificuldades momentâneas, mas estas, por assim dizer, já lá vão. Subitamente, dá-se o desembarque americano no continente negro. Surgem novas personalidades em Dakar e nova política. Os americanos trazem consigo materiais, mercadorias e fazendas a preços melhores que os do comércio português. A razão política faz hesitar os novos mandantes de Dakar na análise dos negócios dos seus antecessores com o comércio da Guiné. Para uns, ausência total de culpas por parte dos nossos vendedores que, a título nenhum, podiam ser considerados como entendidos com os inimigos dos aliados, para lhe venderem fazendas. Para outros, culpas carregadas tinham os comerciantes de Bissau”.

O gerente de Bissau explana detalhadamente toda esta delicada questão e passa para outra, não menos delicada: a posse da terra, se os proprietários as podem agricultar e com que tipo de concurso dos indígenas. O gerente pega no primeiro volume da Obra “Guiné Portuguesa", da autoria do ex-governador Carvalho Viegas, escrita em 1936, cita a páginas 554, sob trabalho indígena: “Fizemos já ressaltar a inaptidão do indígena desta colónia ao trabalho assalariado” e a seguir, na página 565, formula outra citação: “Já dissemos em outro lugar que o indígena desta colónia, na sua maioria, tão grande que representa a quase totalidade da população, é absolutamente refractário a prestar serviços a particulares. Voluntariamente, não o fará. De forma que à atividade particular, nesta colónia fica vedada qualquer produção em que só a mão-de-obra indígena oferece garantia, embora seja retribuída, como ordena a lei". E passa para outra citação, nas páginas 567 e 568, assim: “A Guiné oferece aspectos de funcionamento social indígena tão diferente do das restantes colónias que a fixação do seu regime de trabalho – embora inconvenientemente baseado na doutrina internacional cuja justeza apreciamos – deve ser especialmente regulamentada de harmonia com as condições do seu meio social nativo”. E o gerente tece a sua conclusão lapidar: “Não há mão-de-obra na Guiné que permita explorações agrícolas organizadas”. E dá as seguintes justificações:

“O livro que se transcreve foi escrito em 1936. No fim de 1943 a situação é positivamente a mesma e o governa da colónia não pode alegar que a ignora.

Assim, como pode o estado vir condenar o proprietário que não agriculte – como, aliás, ele quer agricultar – sem ter mão-de-obra e sem que esteja em o diploma 1220, da harmonia com as condições do meio social nativo?

Não pode. Justa e honestamente, não deve.

E porque nem o proprietário tem culpa das circunstâncias especiais do meio e porque o Estado as não pode remediar ainda, parece desumano – e é mesmo – que seja esse mesmo estado que ataque o proprietário por não fazer o que se sabe que de facto não pode fazer. Daí o não dever receber tratamento punitivo quem não merece a punição.

O trabalhador indígena tem hábitos tão inveterados que há dezenas, senão centenas de anos, não se modificaram.

Até no trabalho diário para si próprio aplica umas escassas horas num labor que, favoravelmente, poderemos considerar intensivo, aplicando as restantes no descanso ou na discussão da sua complicada política.

Trabalhando (?) de conta alheia, espanta-se a sua mentalidade a tal ponto que nem percebe qual a necessidade que os outros têm da utilização do seu braço.

Mas, se condições excepcionais o forçam a assalariar-se, imediatamente, automaticamente, considera o trabalho como um fardo que aligeira trabalhando o menos que poder e produzindo, portanto, sob o aspecto económico, pouco ou nada.

Sem receio nenhum de contestação, garantimos serem estas as condições locais que, em boa verdade, não convém a ninguém. Tentar atenuar este mal convertendo trabalho à jorna e o trabalho à tarefa é imprensa duvidosa pois não sabemos onde encontrar uma massa útil de indígenas que aceite tal sistema.

Mas, nesta colónia, sob o aspecto de produção de trabalho é tão grande que nem se pode compensar em certos casos a falta de labor do homem com o recurso ao trabalho do animal, visto que este trabalho praticamente, infelizmente, não existe na colónia.

São todas estas dificuldades, de momento insuperáveis, que agravam a um ponto extremo o regime das propriedades que o Estado exige que se agricultem e, de facto, não podem ser agricultadas por falta de mão-de-obra”.

E finaliza toda esta análise das terras para agricultar perguntando:

“Quantas propriedades há na Guiné que estão bem aproveitadas pelas culturas indígenas, feitas sim por indígenas mas com a primitiva e mesmo actual ajuda e incitamentos dos proprietários?
Muitas. Talvez mais do que hoje se possa supor, a tantos anos da acção dos primitivos colonos que, por uma curiosíssima faceta primitiva da Guiné, deixaram atrás de si, a vincular a sua acção, um grupo de mangueiras; uns agrupamentos de coleiras; umas sebes de caju e por vezes algumas citrinas; tudo em volta de uma elevação de barro formada pelo desmoronamento da casa de adobe de lama em que o colono viveu, lutou, e se não morreu, deixou morrer em si toda a esperança de encontrar frutos no seu trabalho. Aos, que, hoje, passamos por tantos lugares com aquelas características certas, salta, na ligeireza de despreocupação pensar na ideia de que ‘ali foi uma ponta".

E acaba o seu documento para Lisboa com uma expressão muito amarga:

“Veja-se quantos e quantos milhares de contos estão enterrados por essa Guiné fora, em iniciativas agrícolas e iniciativas oficiais, nas granjas agrícolas do Estado. Todas faliram! Trabalho em pura perda! E quanto se tem legislado sobre agricultura!”.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série 26 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18460: Notas de leitura (1052): “Guiné-Bolama, História e Memórias”, por Fernando Tabanez Ribeiro; Âncora Editora, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

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