quarta-feira, 28 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18463: História de vida (44): O meu saudoso mano mais novo, Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014) (João Schwarz da Silva) - Parte I


Lisboa > São Sebastião da Pedreira (ou S. Martinho do Porto?) > 1950 > Em primeiro plano, o Carlos, ainda bebé de meses,  mais os irmãos Henrique (Iko) e João.  Foto do amigo de família, António Lopes. (*)

Foto: © António Lopes (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Portugal >  Lisboa >  s/d > Anos 50 > Clara Schwarz com os filhos, da esquerda para a direita, João, Carlos (1949-2014) (**) e Iko [Henrique] , também já falecido recentemente. (**)

Foto: © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



Guiné-Bissau > Bissau > Quelelé > Campo polivalente do Quelelé > 18 de março de 2014 > Homenagem da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento ao Pepito > Homenagem ao Pepito, Carlos Augusto Schwarz da Silva (Bissau, 1949-Lisboa, 2014), por parte dos funcionários e parceiros da AD, bem como dos seus muitos amigos e admiradores. É no bairro do Quelelé que fica a sede da AD e a casa do Pepito e da Isabel bem como de outros amigos próximos (por ex., o Nelson Gomes).. Na foto, da esquerda para a direita, a filha mais velha, Cristina ("Pepas), a outra filha,  Catarina, a  viúva, Isabel Levy Ribeiro e o Henrique Schwarz da Silva, o irmão mais velho do Pepito.


Guiné-Bissau > Bissau > Quelelé > Campo polivalente do Quelelé > 18 de março de 2014 > Homenagem da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento ao Pepito > Em primeiro plano, o irmão, Henrique Schwarz  da Silva, o Ika (que vivia em Lisboa, enquanto o irmão João vivia e vive em Paris). O Ika, infelizmente, também já nos deixou o ano passado,

Fotos da AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2014).[Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]  (***)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1 de Março de 2008 > Visita ao antigo aquartelamento e tabanca de Guileje, no âmbito do Seminário Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) > Pepito, um dos fundadores e então director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. Integrou a Tabanca Grande em finais de 2005. Era o único dos três irmãos que ficara a trabalhar em Bissau. Tinha apenas a nacionalidade guineense e vinha regularmente a Lisboa.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Luís Graça, com data de 5 do corrente, enviada ao João Schwarz da Silva, que vive em Paris, e administra e edita a página Des Gens Intéressants [, em francês, Pessoas Interessantes ou Notáveis].

Só agora li o seu depoimento sobre o Carlos, na página, que tem vindo a construir com tanta ternura, cumplicidade, labor, rigor e saudade... 

E confesso que me emocionei... Conheço mal o João, passei a conhecê-lo um pouco melhor... E gostei de ler o seu escrito, as suas (in)confidências sobre a vossa relação de uma vida, com todos os pequenos grandes problemas que há em todas as famílias do mundo...

Eu tive o privilégio de ser amigo (infelizmente, da 23ª hora...) do seu mano e da sua mãe, dois seres humanos de eleição, daqueles que precisamos de ter e manter no olimpo dos deuses, porque são mais do que homens, menos do que deuses... Quero eu dizer: precisamos dos seus exemplos, das suas histórias de vida, as suas memórias... 

Conhecemo-nos em 2006, como sabe, e a Guiné foi o nosso traço de união... Tornámo-nos bons amigos, nós e as nossas famílias.

O Carlos tem mais amigos e admiradores no nosso blogue da Tabanca Grande... E eu gostaria de poder partilhar com eles (e com um público mais vasto: o nosso blogue tem cerca de um milhão de visualizações de página por ano) a "petite histoire de vida" do Carlos, contada pelo mano João. 

Como podemos fazê-lo ? Através de um simples link para a sua página ? Ou da reprodução de alguns excertos, ao meu critério ?

O João logo me dirá o que é mais confortável para si e para a memória da família que eu prezo acima de tudo.

Uma boa noite, um "alfabravo" (ABraço) do Luís.

2. Amável resposta do João Schwarz da Silva, com data de 6 do corrente:

Caro Luís,

Obrigado pelos comentários. Utilize como bem entender o conteúdo do meu site. Não tenho preferências nenhumas. Tudo que possa contribuir para manter a memória do Pipito será sempre bem-vindo.

Um grande abraço, João


3. Damos início à reprodução do texto do João Schwarz da Silva sobre o seu malogrado mano mais novo, membro da nossa Tabanca Grande, e que tem por título Carlos Schwarz (Pipito), que nos deixou há 4 anos atrás.

Revisão / Fixação de texto / Subtítulos / Fotos: LG (****)


O meu  saudoso mano mais novo, Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014)  (João Schwarz da Silva) - Parte I


O nascimento do Carlos Schwarz da Silva 
 em 1 de dezembro de 1949


Não me lembro bem que horas eram, mas sei que foi no dia 1 de Dezembro de 1949, à noite pois tanto o Ica como eu estávamos a dormir, quando o nosso pai Artur, nos acordou para anunciar com muita satisfação o nascimento do novo irmão. Tinha eu nessa altura 5 anos feitos e o meu irmão Ica (Henrique) 8.

Perguntei como se chamava, Carlos disse o meu pai que nos deixou voltar a dormir. Vivíamos nessa altura numa casa alugada na actual rua Marien N’Gouabi [, em Bissau,] que tinha a particularidade de ter uma enorme varanda que partilhávamos com os nossos vizinhos Osório e Isilda Flamengo, os pais do Fananeca que viria a ser grande amigo do Carlos.

Da varanda da casa podíamos ver do outro lado da rua, um descampado com um enorme poilão. À esquerda desse descampado havia uma casa que devia estar alugada a uma associação de músicos que se reuniam regularmente, penso eu, aos sábados para tocar musica. Para nós era uma atracção enorme pois eles conseguiam fazer uma barulheira incrível com trombetas e saxofones.

Depois do nascimento do Carlos, ficamos em Bissau mais uns meses pois entretanto a nossa avó Agatha tinha morrido em Lisboa em Agosto de 1950.

Clara, a nossa mãe, que adorava o pai Samuel, quando da morte de Ágata, não quis deixar o pai sozinho e pensou que seria uma boa ideia mandar-me a mim e ao Ica para Lisboa onde o avô Samuel se encarregaria da nossa educação. O Carlos ficou a viver em Bissau por ser pequeno demais e só voltamos a viver juntos depois da morte de Samuel que teve lugar em Junho de 1953.

No entanto nas férias do verão de 1951, os nossos pais vieram até Lisboa. Enquanto eu andava na escola primária ali mesmo, ao lado, na qual fiz a segunda e terceira classe, o Ica entrou para o Liceu Camões onde foi até ao 2° ano do liceu (terminou o primeiro ciclo).

Lembro-me particularmente do meu pai trazer latas de chocolate Cadbury-Mackintosh que tinha quilos de bombons que infelizmente tínhamos que partilhar com a numerosa primalhada que aparecia em casa do meu avô.

Em Lisboa vivíamos no 118, 1°,  na Av António Augusto Aguiar em frente ao que é hoje o Corte Inglês. Era um apartamento enorme com um corredor todo à volta e com tantos quartos que alguns estavam sempre fechados. Havia também uma sala dedicada à biblioteca do meu avô na qual se entrava em silêncio.


Lisboa, c. 1920 > Clara Schwarz (1915-2016), com os pais, Samuel e Ágata. 
Foto: cortesia de João Schwarz

A origem do 'nick-name', Pepito 
[ou Pipito]

Depois da morte de Samuel, em princípios de Outubro de 1953, regressamos a Bissau no navio Ana Mafalda que tinha algumas cabines de passageiros. A viagem durava sete dias e passamos pela Madeira e por Cabo Verde. A chegada a Bissau, como não havia ainda uma ponte cais, o navio ancorava no meio do rio e os passageiros iam para terra num barco a motor. O Ica tinha entretanto ido para Montreal no Canadá onde passou um ano em casa do tio Oles e da tia Sónia.

De regresso a Bissau em 1953, fui para a escola primária que nessa altura estava mesmo atrás do tribunal e lá fiz a quarta classe. Numa carta que escrevi ao Ica em Fevereiro de 1954 queixava-me de não ter ninguém com quem brincar pois o Pepito só queria andar de triciclo. Lembro-me que nessa altura tínhamos uma empregada doméstica, a Vitoria (Toia), que levava o Carlos a passear até à ponte cais do Pidgiguiti. Passando um dia em frente do tribunal, tentei explicar ao Carlos que era ali que o nosso pai trabalhava

As únicas revistas de banda desenhada para jovens que se podiam comprar em Bissau eram o Mundo de Aventuras e o Cavaleiro Andante que apresentavam heróis como o Sitting Bull, o Beau Geste ou o capitão Hadock. Numa das múltiplas histórias contadas no Cavaleiro Andante aparecia um herói que se chamava Agapito. Não sei porque razão pensei em atribuir ao Carlos o nome de Agapito, o facto é que ele não conseguia dizer Agapito e dizia em vez Pipito. Ficou-lhe o nome para a vida inteira, pelo menos na Guiné.

Continuamos a viver na mesma casa com o Fananeca ao lado. O Pipito durante esse tempo mostrou-se sempre extremamente irrequieto, passando a vida a aparecer debaixo das cadeiras ou surgindo debaixo da mesa, a tal ponto que usávamos a expressão “lagartixa eléctrica” para nos referirmos a ele.

Frequência do liceu Honório Barreto 
e férias em Varela


Entrei para o primeiro ano do liceu, na altura colégio-liceu Honório Barreto, no Outono de 1954. Situado na praça do Império à direita do palácio do governador, era um liceu muito pequeno com um número muito reduzido de alunos, que mais tarde foi convertido em museu. Fiz neste edifício o primeiro ciclo.

Durante a minha estadia na Guiné, de Outubro 1953 ao verão de 1962, íamos todos os anos pelos menos na altura do Natal e na Páscoa até Varela, onde ficávamos hospedados no hotel do Sr. Pireza. Nos primeiros tempos a ida de Bissau para Varela era uma verdadeira expedição que levava quase 8 horas com a travessia de dois rios (e duas jangadas) e com múltiplos percalços no percurso (pontes de madeira sem traves, vacas a passear, jiboias a atravessar a estrada) passando por Mansoa, Bissorã, Barro, Ingoré, Sedengal, São Domingos , Susana e finalmente Varela.

Em Varela, o Pipito quando não íamos à praia, passava o tempo a jogar pingue-pongue com os amigos, e a brincar com o chimpanzé do Sr. Pireza que passeava em liberdade pelo restaurante no terraço a pique sobre o mar.

Ao fim de um certo tempo o meu pai decidiu mandar fazer uma casa que hoje é uma ruína.

A diferença de idades entre o Pipito e os irmãos mais velhos (8 anos e 5 anos) levou a que ele fosse sempre tratado pelos irmãos com uma certa condescendência. Aproveitávamos o facto de sermos mais velhos para lhe dar ordens, às vezes com atitudes muito despóticas. Uma vez em Bissau consegui levar o Pipito a tal extremidade de desespero que ele me atirou uma faca de cozinha que veio a voar até se espetar na porta que eu tive tempo de fechar.

Em Lisboa no apartamento da rua Augusto Gil, alugado pelos meus pais (Setembro 1961) em preparação da nossa vinda para a universidade, lembro-me de duas histórias que levavam o Pipito ao auge da revolta contra o despotismo. Uma delas fazia alusão ao facto de a certa altura o Pipito ter engordado mais do que seria de esperar. Deveria ter ele 11 ou 12 anos. O meu irmão Ica começava o gozo com um anúncio radiofónico da extracção da lotaria Santa Casa da Misericórdia. O Ica ia dando os números sorteados e eu respondia, 10 contos, 20 contos etc., e o Pipito começava a espumar. O anúncio dos números sorteados continuava até que finalmente saía o primeiro prémio. Nessa altura o locutor da Santa Casa gritava que nem um possesso “Saiu a Gorda” e o Pipito entrava em transe pois o Ica e eu começávamos a dançar à volta dele uivando “A Gorda”, “A Gorda”.

Mais tarde e não sei porque razão se não a de colocar o Pipito em transe, uma nova história foi inventada. Dizia o Ica num tom muito solene “O general saiu a dar o seu passeio matinal, selem o minhoca” . Nessa altura eu obrigava o Pipito a agachar-se para que o general pudesse montar a cavalo. O Ica exibia uma chibata fictícia para acelerar o processo e o Pipito perdia totalmente as estribeiras.

Talvez tenha sido por este motivos que o Pipito durante toda a vida deu provas de irritação quando confrontado com o abuso de poder. Manifestava uma aversão total em relação à arrogância de uns, ao despotismo de outros e à imbecilidade de muitos.  Neste último caso reagia contra, com um humor acérrimo herdado do pai,  o que penso deve ter contribuído para um certo número de inimizades.

No verão vínhamos quase sempre a Portugal e passávamos as férias em São Martinho do Porto, com toda a primalhada. No verão de 1958, fomos todos, em dois carros, até Bruxelas para ver a Exposição Universal. Quatro anos mais tarde fomos a Marrocos de carro,  passando por Algeciras, Ceuta Tetuão e Tânger.

(Continua)

___________

Nota do editor - Leituras adicionais: vd. página de João Schwarz:

(i) Sobre o avô materno Samuel Schwarz (Zgierz, Polónia, 1880 - Lisboa, 1953) > Des Gents Intéressants > Samuel Schwarz (em francês);

(ii) Sobre o avô paterno Artor Augusto da Silva (Nova Sintra, Ilha da Brava, Cabo Verde, 1912 . Bissau, 1983) > Des Gents Intéressants > Artur Augusto Silva

(iii) Vd. também, no nosso blogue, o texto autobiográfico do Pepito > 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

(***) 27 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12904: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (35): Grande e sentida homenagem ao Pepito (1949-2014), no bairro do Quelelé, em Bissau, onde fica a sede da ONDG e a casa de família

(****) Último poste da série > 4 de dezembro de 2015 >  Guiné 63/74 - P15445: História de vida (43): Anda(va) meio mundo a enganar o outro... Ou o conto do vigário em que caiu a minha pobre mãe quando eu estava em Galomaro e lhe apareceu à porta de casa um falso camarada meu... (Juvenal Amado, autor de "A tropa vai fazer de ti um homem", Lisboa, Chiado, Editora, 2015, 308 pp.)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João:

Aqui vai a primeira parte do texto sobre o mano. Passaram 4 anos e a saudade continua imensa. Falta-nos tanta falta o Pepito / Pipito a vocês, família, e a nós, amigos.

E a propósito ficam aqui duas notas e um...convite:

(i) é uma belíssima e terna evocação do mano Carlos: parabéns!;

(ii) sempre tratámos o Carlos pelo diminuitivo "Pepito" e não "Pipito" (como seria mais correto); tomo a liberdade de continuar a usar o nick-name "Pepito", descritor que tem, no nosso blogue, mais de 220 referências:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Pepito

Quanto ao convite, singelo, é o seguinte:

Gostava que o João se sentasse à sombra do poilão da Tabanca Grande, no lugar nº 768... Não é um lugar físico, é penas simbólico... Somos já 767, entre vivos e mortos, os amigos e camaradas da Guiné, formalmente registados na nossa comunidade virtual... Como sabe, exercemos aqui o direito e o dever de memória... A Guiné é o nosso traço de união. O João é um construtor de pontes tal como o Carlos. E, se aceitar o nosso convite, passamos a tratar-nos por tu, à boa maneira romana, dá mais jeito...

Só gostaria de ter,eventualmente, uma foto sua, atual, e duas linhas de autoapresentação...

Um abraço do amigo Luís Graça