quarta-feira, 28 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18464: Bibliografia de uma guerra (87): Walt, por Fernando Assis Pacheco (1937-1995), jornalista, tradutor, escritor e poeta (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Convém recordar que os primeiros anos após o 25 de Abril foram marcados seja por uma literatura irreverente, de um quase folguedo e bota-abaixo, seja por não pouca documentação de vingança, ajustes de contas e até assassinatos de caráter, como tudo era permitido, não faltaram insultos e calúnias, acreditava-se na impunidade.
É nessa paisagem que Walt precisa de ser redimensionado, arrancou com grande sucesso e hoje não se vislumbra, lamentavelmente, qualquer referência a este vistoso testemunho. Fernando Assis Pacheco socorreu-se de uma camuflagem óbvia, salta à vista desarmada que nenhum leitor confia tratar-se do Vietnam, acresce que o próprio escritor desvela o postiço da encenação, o desencontro dos nomes, toda aquela algazarra nem guerra mete é o início da viagem, ainda em terra, ali se condena a guerra, e mais bizarra que a missão que lhes está reservada é a bizarria das histórias que por ali se contam.

Um abraço do
Mário


Walt, niilismo e camuflagem na literatura da guerra colonial

Beja Santos

Foi um verdadeiro sucesso quando surgiu no final da década de 1970, Walt, por Fernando Assis Pacheco (1937-1995), jornalista, tradutor, escritor e poeta. Percebia-se à vista desarmada que não era a guerra do Vietnam a razão de ser daquela mirabolante noveleta, como ele próprio confessa:
“Este livro é uma prosa acerca dos malefícios da guerra entendidos no tempo do Inefável Marcial Caneta, quando se falava no Vietnam por coisas da causa. Causa que ninguém desposava; coisas que ficaram, alarves, para a gente conhecer enfim como puderam ser, e porquê. Não tenho por isso nenhum remoroso de estilo. Eu queria apenas dizer ‘Gare Marítima de Alcântara’, ‘Lisboa’, num ano qualquer entre 1961 e 1974.
Meto na prosa soldados, civis, incivis, chulos e putas, eu próprio estou lá, disfarçado de narrador-alferes, choro à bruta, gozo como um cabinda, narro, minto, finto o leitor, apetecia-me mandar o país Portugal ao tota, mas em segunda leitura sou um tipo baixo de moral e paro a meio palmo do traço proibido – ternuras!
O coração em brasa pelos indefesos, xandras incluídas, vem do tempo em que eu aprendia jornalismo. Atenção à Brenda, esse pedaço de coxa! E ao Joe Louis, afilhado inevitável! Bebi em todas as barras de zinco de Lisboa até encostá-los ao peito.
Viva o Português de 400 calhoadas ao minuto, que é por onde respiro”.

O barco que os aguarda chama-se Apocalypse. “Vejo claramente visto que já não é nova, a besta, mas para irmos aonde vamos qualquer traineira servia, qualquer caca inventada à pressão pelos altos poderes sereníssimos, desde que flutuasse. Atrás de mim, e de que partem vozes, o pelotão alinhado.”

As senhoras do Movimento Nacional Feminino são tratadas por Women of America: “Uma é alta, magra, ventas caiadas a batom, espalmada porém de mamas, a outra gorda e baixa, de um gordo e baixo de toucinho rançoso”. Andam a distribuir maços de cigarros sacados de uma bolsa de plástico. Inevitável, uma colisão com os gajos da PM, trava-se uma conversa hilariante, ali ao lado há uma alta vozearia que mete acusação de roubo de vários haveres, um chuleco arrepende-se. Aparece um major, não irá para a guerra do Vietnam, mas recapitula histórias do passado. Muitos a fazer pergunta: os senhores vão para o Vietnam? A resposta era sempre a mesma: Saigão. Conviria, para efeitos melhor entender esta prosa niilista, que joga com absurdos, nomes de militares do narrador-alferes transmutados em norte-americanos, dá conta de que tudo se passa à beira do cais, é o exato momento em que se avultam recordações, por exemplo daquilo que no passado se chamavam as meninas e as senhoras de mau porte, logo Brenda, assim desenhada: “Brenda de cabelo ruivo, ruivo pouco natural, atentas as tintas. O indicador direito castanho dos cigarrómetros. Mamas caídas, que se adivinhavam e eu depois tive tempo de analisar com a paixão do entomologista. Quarentas bem medidos, ou como ela metaforizou no minuto do chuveiro:
“Desculpa lá, pareço uma cafeteira toda rota”.
“Pareces nada”.
“Pareço. Precisava de dez pingos de solda para não dar barraca. Olha, deixa andar”.

Também se fazem previsões astrológicas, o narrador dá a sua data de nascimento, 1 de Fevereiro, nascido às seis da tarde, signo do Aquário.
A vidente responde:  
“É um signo muito especial, masculino e aéreo. O planeta dominante é Urano. Os nativos deste signo têm uma natureza tranquila, paciente, fiel e perseverante, geralmente são filósofos, refinados e ambiciosos”.
E depois vem a sentença:  
“Os nativos do signo do Aquário eliminam do caminho a maioria dos incidentes conflituosos, de sorte que o meu fraco préstimo se limita a desejar ao meu alferes dois anos de comissão muito frutuosos no Vietnam, como cumpre. Agradecia que o meu alferes pagasse antes em notas de dólar para eu ter trocos para outras consultas mais breves.

Prossegue o contingente de apresentações, as histórias de estúrdia, há para ali engatadores, aldrabões, chico-espertos, muitos copos, muita conversa ligeira, e volta-se a falar da Brenda, no fundo é uma das heroínas que fica em terra mas que aliviou muita tensão antes de se subir no Apocalypse para aquela inesquecível viagem: 
“A Brenda tem quarenta-zi, crava as pessoas, dá duas de conversa sem grande estilo, cheira mal do sovaco, usa uma roupa interior de cores idiotas, besunta o travesseiro com batom, não leu mais nada nos últimos cinco anos depois de uma porcaria de John O’Hara que saiu em filme, tem os dentes todos estragados dos chocolates, é um bocado estrábica, acorda de noite a falar do tempo, pinou-me um lenço com as iniciais do meu padrinho bordadas, pinou-me uma fita da boina para recordação”.

Aproxima-se o momento da partida, até parece que aquela orgia palavrosa vai ser metida na ordem, pois escreve-se:
“Soava ao meio-dia na torre de uma igreja deste fuso horário e ordens foram transmitidas à gare marítima para os oficiais terem os pelotões prontos daí a cinco horas. Partida às 17 prefixas, havendo feito de feição”.
Mas é puro engano, os relatos delirantes ganham outra dimensão, há para ali gente que anda na tropa a um horror de tempo, gente que confessa que sabe bem o que é que vai fazer até ao Vietnam, aquele pelotão tem gente de todos os estados norte-americanos, brancos, pretos e índios e outros descendentes de outras colorações, contam-se nas histórias naquela gare marítima com um vasqueiro monumental que aqueles três mil homens da expedição fizeram à passagem de uma carrinha da PM. Voltam a aparecer senhoras do Women of America, novo diálogo hilariante, a roçar o truculento, e nisto soa a sirene do Apocalypse, cada um pega na bagagem e sobe o portaló, nosso alferes recomenda que se suba com a espinha direita. "A viagem para Saigão vai começar e ficamos a saber qual é o nome do nosso alferes, é Walt".

Não mais, neste vastíssimo baú da literatura da guerra colonial, se voltou a escrever com tanta profusão este carrocel anarca, tão vistosa camuflagem para encenar o que lhes ia na alma, na Gare Marítima de Alcântara.

Resta dizer que Fernando Assis Pacheco foi fazer a sua guerra em Angola.
E disse.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18441: Bibliografia de uma guerra (86): “África, Quatro Ases e uma Dama”, por Fernando Farinha, Daniel Gouveia, Conde Falcão, Pedro Cunha e Maria Morais; Programa Fim do Império, Âncora Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...



Fernando Assis Pacheco, um jornalista, um escritor, um cidadão como poucos, irónico, sentimental, original, existiu não podia ser inventado. Que saudades!

Francisco Baptista