quinta-feira, 29 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18466: História de vida (45): O meu saudoso mano mais novo, Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014) (João Schwarz da Silva) - Parte II


Alcobaça > São Martinho do Porto > 13 de Agosto de 2011 > Convívio da Tabanca de São Martinho do Porto > Os facebook..eiros Isabel, Pepito e Alice...

Foto (e legenda):© Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados [ Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O anfitrião do encontro e régulo da Tabanca, Pepito,  diretor executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, de férias em Portugal. Sempre otimista (mesmo em relação ao futuro do seu país, onde nada funcionava até então, a nível da administração pública...), falou-me com grande entusiasmo do novo projecto em que a AD estava envolvida, "Cacheu, caminho de escravos"...

Foto (e legenda): © Luis Graça (2012). Todos os direitos reservados. [ Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do texto do João Schwarz da Silva sobre o seu malogrado mano mais novo, membro da nossa Tabanca Grande, que nos deixou há 4 anos atrás. e que tem por título Carlos Schwarz (Pipito), 

Revisão / Fixação de texto / Subtítulos / Fotos: LG (*)


O meu saudoso mano mais novo, Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014) (João Schwarz da Silva) - Parte II



Entrada para o Instituto Superior de Agronomia, 
em Lisboa, em 1966

No período 1961-1967, passei pelo Técnico e pela faculdade de Ciências mas o que mais me divertia era o processo de contestação em vigor. Os dias de luto estudante seguiam-se a outros dias de manifestações e a corridas a fugir da polícia de choque. O Pipito entrou para Agronomia em 1966 e antes só o víamos nas férias em São Martinho.

No verão de 1967, depois de ter sido convocado a apresentar-me no quartel onde me esperava uma carreira de paraquedista militar na Guiné, desapareci calmamente para o Canadá,  tendo assim deixado Portugal, como país de vida, para sempre.

Em fins de 1973 fomos passar uns dias a Ayamonte (Espanha) onde os meus pais dispunham de uma apartamento emprestado na Isla Canela. O Carlos, a Isabel e a pequena Pepas [,Cristina,] lá apareceram. Lembro-me de passeios na praia apesar do frio natalício.

Mais tarde e ainda como residente no Canadá, respondendo a um anóncio da UIT [, União Internacional de Telecomunicações,] fiz um pedido para trabalhar na Guiné como perito em radiodifusão. Passei seis meses em Bissau em 1976, em condições de sonho, pois tinha um carro posto à disposição pelas Nações Unidas, vivia em casa do Pipito, tinha um local de trabalho no edifício dos correios onde estava situada a rádio e vivia um período de renascimento da Guiné onde tudo parecia possível.

Grande admirador dos filmes do Charlot

Foi um época extraordinária com a Guiné a atravessar um período revolucionário onde tudo ou quase tudo resultava do contributo de cada um. As barreiras sociais caíram, éramos todos camaradas. Assim quando era preciso descarregar um barco apelava-se à presença de voluntários. Nessa altura as lojas pouco ou nada vendiam e, quando chegava uma remessa de um bem qualquer, ele desaparecia imediatamente dos Armazéns do Povo. Foi assim que um dia vi alguém sair dos Armazéns do Povo tendo, à cabeça, dezenas de rolos de papel higiénico, ou seja todo o stock do que estava disponível.

No cinema da UDIB,  e graças a acordos com outros países revolucionários, havia festivais de cinema nomeadamente argelino, com a projecção de filmes tais como “Chronique des années de braise” e “Le vent des Aurès”.

A propósito de cinema, o Pipito grande admirador de Charlie Chaplin,  tinha uma colecção de filmes do Charlot muito completa. Na casa onde ele vivia, na Rua Vitorino Costa, assisti a numerosas sessões de projecção de filmes do Charlot com o projector instalado em cima do muro exterior da casa e com o ecrã na varanda da casa. Os miúdos que viviam ali ao pé, vinham aos montes assistir às sessões de cinema a tal ponto que começaram a aparecer miúdos que aproveitavam a sessão de cinema para vender mancarra. Lembro-me que o filme mais apreciado pela miudagem era o Charlot Policia que fazia as delicias de todos.

As ilusões revolucionárias perdidas...
mas não a necessidade de continuar a lutar
por uma sociedade mais justa

Ao jantar em casa do Pipito tínhamos muitas vezes discussões de natureza politica. Ele nessa altura continuava a ser um marxista-leninista convicto, guiado que era pela necessidade de resolver com iniciativa, trabalho e abnegação os problemas sociais e económicos do país. Lembro-me nomeadamente de discussões épicas sobre o papel de Mao na China e sobre os resultados a que se tinha chegado neste país. As vezes eu tinha a audácia de mencionar os “ilustres feitos” do camarada Enver Hodja, da Albânia revolucionária, mas o Pipito não admitia que se pudesse pôr em causa a utopia na qual ele acreditava. Eu tentava proclamar que o marxismo-leninismo era obsoleto, e o Carlos afirmava que eu era um adversário e inimigo do proletariado e da revolução.

Penso que mais tarde perdeu as ilusões revolucionárias sem no entanto perder o fundamental, ou seja,  a necessidade de lutar para uma sociedade justa, sem prepotências, sem abusos, sem uma dominação financeira. Acreditava no esforço próprio, na liberdade, na necessidade de evoluir experimentando e na disciplina individual e colectiva. Era um radical determinado mas praticava uma radicalidade sem prepotência.

Anos mais tarde, ainda eu estava no Canadá, penso que devia ter sido em 1980, voltei no Natal à Guiné e fomos todos com os meus pais acampar em Varela. O Pipito levou o material de campismo, os mantimentos, o frigorífico e o gerador eléctrico pois em Varela já não havia hotel e luz eléctrica muito menos. Passámos um fim do ano formidável e até houve fogo de artificio.

Em 1981 apareceu uma oportunidade de trabalho nas Nações Unidas em Genebra. Candidatei-me sem muitas esperanças e, em 1982, deixei o Canadá para sempre. Passei nove anos em Genebra. O Carlos aparecia de vez em quando, pois ia a Genebra tratar de vários assuntos com o Conselho Ecuménico das Igrejas que financiava as múltiplas iniciativas do Carlos na Guiné.


As férias em São Martinho do Porto...
e as suas últimas horas de vida na casa da nossa mãe 

Quando íamos de férias a Portugal, passávamos uma parte do verão em São Martinho do Porto sempre na mesma casa que pouco a pouco se foi tornando muito pequena, pois as crianças iam crescendo. A casa tinha sido oferecida aos meus pais pelo meu avô [, Samuel,] quando os meus pais se casaram. A barafunda quando lá estávamos todos era gigantesca a tal ponto que,  depois da morte do nosso pai, em 1983, decidi mandar construir uma casa ao lado da casa dos meus pais.

A partir dai a nossa relação sofreu uma distanciação que nunca aceitei. O Carlos por razões que era difícil explicar, era capaz de pôr um termo a uma relação de um dia para o outro. Ainda durante a vida do nosso pai,  o Carlos deixou de lhe falar durante uns tempos, muito simplesmente o Carlos não aceitava, nem a brincar, que se pudesse criticar, mesmo a sorrir, o comportamento dele. Eu cometi o erro de lhe falar da “valise en carton” [, "mala de cartão",] que ele levava quando ia a Paris. Não gostou da piada e a partir dai nunca mais teve uma conversa aberta comigo.

Em 2014, horas antes da morte do Carlos, ainda ele estava em casa da minha mãe, fui vê-lo deitado na cama. Todos sabíamos que a partida do Carlos estava para breve. Falei-lhe nas cassetes dos cursos de direito do nosso pai na escola de Direito de Bissau, que eu tinha descoberto. No fim perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Sorriu com tristeza e baixou a cabeça de cansaço ou de dor. Repousa hoje no cemitério de Bissau na mesma campa que os meus pais e o meu irmão Henrique [, o Ica].

6 dez 2017 14:28

Texto: © Joao Schwarz da Silva (2017). Todos os direitos reservados
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Nota do editor:


2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Foi uma tragédia imensa, para esta família, de quem éramos chegados, pela amizade... Primeiro foi a morte do Pepito, com 63 anos, depois da mamã Clara, com 101, em 2016, e mais recentemente o Henrique, o Ica ou Iko... com quem, de resto, pouco ou nada privei.

Sobre o alegado "mau feitio" do Pepito, quero deixar aqui expresso que comigo e com ele, nunca houve o mais pequeno "beliscão" nas nossas relações de 9 anos...

Um grande abraço para o João.

Luís Graça

Anónimo disse...

Caro amigo Luis,

Nao se pode tomar muito a letra estas confidencias do irmao mais velho falando do mais novo, sao coisas normais entre irmaos. Recordo-me que, tambem eu, nunca gostei de ouvir os conselhos e muito menos das apreciacoes do meu irmao mais velho que, na minha optica, mesmo bem intencionado, acabava sempre por beliscar o meu amor proprio. Os irmaos mais velhos gostam, muitas vezes, de substituir os pais na educacao dos mais novos o que provoca sempre conflitos.

Um abraco amigo,

Cherno AB


Um abraco