T/T Carvalho Araújo a caminho da Guiné. A 26 de abril de 1970, avistámos à rè o T/T Vera Cruz (a caminho de Angola ou Moçambique, presumivelmente).
Foto (e legenda): © António Tavares (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Paulo Salgado, ex-alf mil op esp. CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72
Bombolom III (Paulo Salgado) (3) > O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)
O desembarque do navio Zaire [1] decorreu num ambiente de estranha confusão a que os militares não estavam habituados, não obstante alguma desorganização nestas circunstâncias, por falta de meios. Durante a viagem, sede, fome e miséria no bojo do Zaire foram uma constante. Depois, do barco até à praia, os soldados sentiram o miserando esforço dos indígenas para carregar às costas os militares. Sim, às costas.
Tenho tido oportunidade de aprofundar os meus conhecimentos, com várias leituras, sobre a primeira grande guerra em África [2]. Estava-se na primeira vintena de anos do século XX, carregada de episódios políticos, nacionais e internacionais, alguns deles relativos às posições assumidas por ingleses e alemães que, no fundo, pretendiam, juntamente com outras potências (França, Itália, Bélgica…), dominar o continente africano, com prejuízo para Portugal, afastando-o, por vezes com maneiras cordatas, diplomáticas, todavia frequentemente pela coação política. Recorde-se o vexame do Ultimato inglês [3], ainda no século XIX, que pensadores e escritores da época apelidaram de enorme afronta do aliado tradicional (por exemplo, Guerra Junqueiro).
Passo, então, a transcrever os seguintes excertos da obra indicada em rodapé (ver nota 2):
«…quando, já noite cerrada, cheguei ao local que o Quartel-general tinha destinado ao estacionamento do meu batalhão [na zona do Rovuma, perto de Porto Amélia - nota deste escriba], encontrei-me numa pequena clareira, raspada à pressa no seio da floresta, sem ar e sem luz, dando-me a impressão do poço Poe [4] aberto na solidão daquele mato…foi ali o nosso primeiro bivaque [5].»
Prossegue um pouco mais adiante a descrição pessoal deste ilustrado combatente à chegada ao Norte de Moçambique, em 1915:
«Parece que o Quartel-general ignorava a viagem que há um longo mês vínhamos fazendo em direcção a estas paragens».
Ao ler este precioso depoimento pessoal, de que transcrevi dois breves excertos, decerto escrito em circunstâncias adversas, não posso deixar de referir a viagem atribulada do Carvalho Araújo, nome do bravo marujo, que transportou para o Teatro de Operações da Guiné, na sua primeira viagem [6] após restauro e adaptação a transporte de tropas.
Após a IAO [7], e cumpridas as férias antes do embarque, ia a malta de barco. Ao longo de sete dias, a “carne para canhão” esteve sujeita às miserandas condições de habitação do navio. Sobretudo os soldados viajavam no bojo do barco, em condições deploráveis, enquanto os graduados tinham algo de mais positivo lá no alto.
Sou muito claro: só a necessidade e a obrigação de orientar as tropas nos faziam descer ao fundo, aos graduados, aos porões, onde se jogava às cartas e se vomitava imenso... Uma miséria no ano de 1970!
Igualmente, chegados a Brá – quem lá passou, sabe como era! – distribuíram-nos tendas esburacadas e colchões meio podres, e atacados pela mosquitada. Depois, já no mato, a sobreposição com os “velhinhos”, uma confusão dos diabos…
Como vedes, camaradas, as situações vividas em guerra na África estavam separadas por cerca de cinquenta anos e não houve grandes melhorias. Diferente e melhor na guerra colonial, pois que estavam garantidos na Guiné e, creio, nos restantes TO, o serviço postal militar (SPM), a distribuição, precária mas existente, de víveres e outros produtos, a electricidade fabricada por geradores, o apoio clínico, o apoio pastoral, o apoio dos “héli-canhões” ou dos “fiats”…
Até à próxima crónica do meu bombolom.
Paulo Salgado – 30.6.2018
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Notas do autor:
[1] Foram vários os navios utilizados no transporte de tropas para o norte de Moçambique e sul de Angola durante as operações havidas na Primeira Grande Guerra, por força do confronto entre Inglaterra e Alemanha, e na qual Portugal participou, dada a velha aliança com os ingleses. De acordo com o Capitão-de-Mar-e-Guerra, José António Rodrigues Pereira (Revista Militar, nºs 2551 e 2552), mencionam-se os seguintes navios envolvidos nesta guerra no norte de Moçambique, 1914-1916: Moçambique, Durhan Castle, Beira, Cazengo, Ambaca…
[2] Por exemplo a leitura do livro Epopeia Maldita – o Drama da Guerra de África, de A. Cértima, publicado em 1924, como já referira na crónica anterior do meu Bombolom.
[3] Como é sabido, o governo inglês exigiu a Portugal, em memorando, no ano de 1890, a retirada das forças portuguesas que, por direito, tinham ocupado o território compreendido entre Angola e Moçambique. O governo português e o rei foram muito atacados pelos republicanos. Entre outros intelectuais, Guerra Junqueiro vituperou a concessão do governo e do rei D. Carlos na sua obra, direi patriótica e panfletária, Finis Patriae, onde escreveu versos de revolta, de que ora se recorda «Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente// Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?» É de recordar, no entanto, que as diversas tomadas de posição por republicanos pouco interesse prático revelaram, como defendia Eça de Queirós.
[4] É uma referência do autor do livro citado (ver nota 2) ao conto ‘O Poço e o Pêndulo’, de Edgar Alan Poe, que fala, como sabeis, de um condenado que sente a sensação horrível de estar preso numa masmorra, num espaço claustrofóbico.
[5] Bivaque designa um acampamento rudimentar para passar a noite na natureza, vigiando. Trata-se de uma expressão muito utilizada nas campanhas militares, herdada da palavra francesa bivouac. Bivaque é também a designação de boné, utilizado por militares ou paramilitares.
[6] Este navio fazia a carreira dos Açores, transportando pessoas e gado dos Açores para o Continente; já meio consumido pelo uso e pelo tempo, foi, por necessidade, transformado em navio transportador de militares para a Guiné. Nele seguiu a CCAV 2721, onde este escrevinhador estava incluído, e duas companhias e uma secção de morteiros.
[7] No Arquivo do Centro de Documentação do 25 de Abril – Universidade de Coimbra, há um texto – que eu conheça, pois haverá outros – sobre a mobilização, a IAO – instrução de aperfeiçoamento militar, que, na Guiné passou a fazer-se, creio eu, a partir de 1972, e que refere o que passo a transcrever:
«O militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem. Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam-se de novo em parada no quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho-de-ferro mais próxima».
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[1] Foram vários os navios utilizados no transporte de tropas para o norte de Moçambique e sul de Angola durante as operações havidas na Primeira Grande Guerra, por força do confronto entre Inglaterra e Alemanha, e na qual Portugal participou, dada a velha aliança com os ingleses. De acordo com o Capitão-de-Mar-e-Guerra, José António Rodrigues Pereira (Revista Militar, nºs 2551 e 2552), mencionam-se os seguintes navios envolvidos nesta guerra no norte de Moçambique, 1914-1916: Moçambique, Durhan Castle, Beira, Cazengo, Ambaca…
[2] Por exemplo a leitura do livro Epopeia Maldita – o Drama da Guerra de África, de A. Cértima, publicado em 1924, como já referira na crónica anterior do meu Bombolom.
[3] Como é sabido, o governo inglês exigiu a Portugal, em memorando, no ano de 1890, a retirada das forças portuguesas que, por direito, tinham ocupado o território compreendido entre Angola e Moçambique. O governo português e o rei foram muito atacados pelos republicanos. Entre outros intelectuais, Guerra Junqueiro vituperou a concessão do governo e do rei D. Carlos na sua obra, direi patriótica e panfletária, Finis Patriae, onde escreveu versos de revolta, de que ora se recorda «Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente// Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?» É de recordar, no entanto, que as diversas tomadas de posição por republicanos pouco interesse prático revelaram, como defendia Eça de Queirós.
[4] É uma referência do autor do livro citado (ver nota 2) ao conto ‘O Poço e o Pêndulo’, de Edgar Alan Poe, que fala, como sabeis, de um condenado que sente a sensação horrível de estar preso numa masmorra, num espaço claustrofóbico.
[5] Bivaque designa um acampamento rudimentar para passar a noite na natureza, vigiando. Trata-se de uma expressão muito utilizada nas campanhas militares, herdada da palavra francesa bivouac. Bivaque é também a designação de boné, utilizado por militares ou paramilitares.
[6] Este navio fazia a carreira dos Açores, transportando pessoas e gado dos Açores para o Continente; já meio consumido pelo uso e pelo tempo, foi, por necessidade, transformado em navio transportador de militares para a Guiné. Nele seguiu a CCAV 2721, onde este escrevinhador estava incluído, e duas companhias e uma secção de morteiros.
[7] No Arquivo do Centro de Documentação do 25 de Abril – Universidade de Coimbra, há um texto – que eu conheça, pois haverá outros – sobre a mobilização, a IAO – instrução de aperfeiçoamento militar, que, na Guiné passou a fazer-se, creio eu, a partir de 1972, e que refere o que passo a transcrever:
«O militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem. Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam-se de novo em parada no quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho-de-ferro mais próxima».
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Nota do editor:
Último poste da série > 19 de junho de 2018 Guiné 61/74 - P18757: Bombolom III (Paulo Salgado) (2): As guerras - a primeira e a colonial
Último poste da série > 19 de junho de 2018 Guiné 61/74 - P18757: Bombolom III (Paulo Salgado) (2): As guerras - a primeira e a colonial