quarta-feira, 11 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18835: Historiografia da presença portuguesa em África (124): Sobre as fortalezas da Guiné e da África Oriental, pelo Capitão Henrique C. S. Barahona; Typographia do Commércio, 1910 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Obra do acaso, encontrei esta “Carteira de um Africanista”, o que o Sr. Capitão Henrique Barahona diz sobre a fortaleza de Bissau é do maior interesse, resta dizer que em 1910 o Governador Carlos Pereira tomou a decisão histórica de mandar derrubar o muro, não foram afugentados os perigos, mas Bissau começou a crescer. Atenda-se à descrição do interior da fortaleza, ao caráter guerreiro da população em volta de Bissau e ao facto de que existia uma paliçada contígua ao forte de Pidjiquiti, nome por que era conhecido o arruinado forte Nazolini, um poderoso escravocrata e grande comerciante da Guiné.
Para que conste.

Um abraço do
Mário


Sobre as fortalezas da Guiné, pelo Capitão Henrique Barahona, 1910

Beja Santos

Dei com este documento no Arquivo Histórico do BNU, assina Henrique C. S. Barahona, Capitão de Engenharia e antigo Diretor das Obras Públicas do Ultramar. Vale a pena escutá-lo sobre o trabalho que desenvolveu na Guiné:
“No decurso da minha longa permanência em terras de África (1891-1907), onde o destino me chamou a colaborar com homens de valor, como António Ennes, Guilherme Capelo, Teixeira da Silva, Garcia Rosado, Ayres de Ornellas e Freire de Andrade, foram numerosos e diversos os trabalhos por mim dirigidos e fiscalizados na Guiné, em Angola e Moçambique.
Quando em 1891 fui servir na Guiné, encontrei a fortaleza de S. José de Bissau quase completamente arruinada. Durante a minha estada na Guiné (1891-1892) procedi a importantes trabalhos na fortaleza de S. José de Bissau, que restaurei em grande parte, pondo-a em condições de resistir às sortidas do gentil irrequieto que a rodeia.
Desde o período da descoberta da Guiné até fins do séc. XVII pode dizer-se que esta colónia poucos cuidados mereceu aos governantes de Portugal, sob o ponto de vista da sua defesa, já contra as tribos irrequietas que a povoam, já contra os piratas que então infestavam aquelas paragens.
Até 1776, época em que foi construída a fortaleza de Bissau, só rezam as crónicas de dois ou três fortes construídos na Guiné, e que foram: a Casa Forte de Cacheu, construída em 1589 a expensas de Manuel Lopes Cardoso e artilhada à custa do Capitão-Mor António de Barros Bezerra, e os Fortes de Guinala e Biguba, também construídos a expensas de particulares.
Todos estes fortes eram construídos de adobe e pouco duraram.

Foi em 1696 que se criou o presídio de Bissau (subordinado a Cacheu) para o qual seguiu artilharia do reino. A fortaleza de S. José foi construída em 1766 sob a protecção dos fogos de uma esquadra que fundeou no Porto de Bissau e que manteve em respeito os povos aborígenes, sem irrequietos e revoltos. A obra só se concluiu à custa de muitos sacrifícios de fazendas e vidas.
Os operários empregados na construção da fortaleza seguiram do reino, donde também foi a cantaria que em parte ainda hoje ali se vê.

A Fortaleza de S. José de Bissau tem quatro faces abaluartadas, dispostas segundo os lados de um quadrado, como se vê na gravura junta. As muralhas têm doze metros de elevação sobre o fosso que as circunda. Esse fosso tinha a escarpa e a contraescarpa revestida, mas quando ali cheguei achava-se quase entulhado com os escombros da muralha e os revestimentos do fosso tinham desaparecido. Honório Barreto assevera numa memória que escreveu sobre a Guiné que as pedras que guarneciam a contraescarpa e as lajes das plataformas de artilharia foram roubadas para se fazerem algumas casas de particulares.


A Fortaleza tinha alojamentos para o governador, oficialidade, sargentos e para duzentas praças, além da capela, paiol e armazéns. Em cada um dos baluartes, ao centro, havia gigantesco poilão que lhes dava farta sombra.

A povoação de Bissau ficava apertada entre o forte e uma cortina que liga o baluarte da Onça ao Fortim do Pidjiquiti, nome pelo qual em 1891 era conhecido o antigo Forte Nazolini, do qual, aliás, só existia a face que olha para a campanha. Este resto estava em tal estado de ruína que os merlões das canhoneiras eram formados com sacos de terra.
A Fortaleza de S. José de Bissau, quando ali cheguei, também inspirava pouca confiança aos seus defensores. Basta dizer que o parapeito estava quase todo derruído, acima do terrapleno de circulação. Deste modo, os pretos rebeldes podiam alvejar as reduzidas tropas da guarnição que fomos encontrar exaustas por sucessivos alarmes.
A densa vegetação que circundava a praça permitia que o inimigo se pudesse aproximar sem ser visto.

O artilhamento da praça era simplesmente mesquinho, para não dizer outra coisa. Basta citar o facto de termos ido encontrar ali peças de artilharia assestadas no parapeito sobre reparos construídos por grossas lajes postas de cutelo!
Tanto o Fortim do Pidjiquiti como o Forte de S. José foram convenientemente reparados durante o tempo que estive na Guiné e o artilhamento foi muito melhorado o que não obstou a que poucos anos depois já ali se vissem as peças de artilharia amarradas com cordas aos respectivos reparos!
Não pretendo dar uma ideia do carácter belicoso dos povos da Guiné, mas seja-nos lícito, numa revista como esta, chamar a atenção para um facto curioso que se dá com a forma de combate daqueles selvagens.

Todos os oficiais que se defrontam com eles ficam surpresos, vendo-os adoptar uma táctica que muito se assemelha à nossa ordem dispersa.
Poderia supor-se que é imitação do que vêem fazer aos nossos soldados; mas a verdade é bem diferente. Há muitos anos que os povos da Guiné adoptam aquele modo de fazer a guerra. Ainda no nosso exército não se usava a ordem dispersa e já aqueles gentios a empregavam nos seus combates.
Com efeito, na memória do Governador Honório Barreto, publicada em 1843, lê-se o seguinte modo de combater dos povos da Guiné:
‘Quando são atacados retiram-se ao mato e no sítio mais fechado dele se fazem fortes procurando atrair o inimigo para lhe cortar a retaguarda, o que chamam fazer saco, e como são pretos e andam nus, evitam o ser vistos e matam a seu salvo os atacantes. Nunca dão tiro sem ter pontaria certa, e muitas vezes há queima-roupa. Brigam dispersos e nunca se reúnem mais de três ou quatro. O maior troféu para eles é cortar as cabeças dos inimigos e conservar as caveiras como reminiscência gloriosa.’

Guerreiro Balanta

A esta curiosa táctica, que pode chamar-se em ordem dispersa, devem de certos indígenas da Guiné o não terem sido até hoje exterminados pelas numerosas guerras que contra eles temos sustentado. A última guerra de Bissau, em que as nossas forças acamparam durante dois dias no alto da Antim devia ter sido excessivamente mortífera para os Papéis de Bissau se estes atacassem em mangas, como fazem os Vátuas.

Propus em 1891 que a muralha que liga o baluarte da Onça ao Fortim de Pidjiquiti fosse derrubada, permitindo assim a expansão da vila. Antes porém seria preciso reforçar a defesa da povoação com obras avançadas e com uma estrada militar que colocasse Bissau ao abrigo de um golpe de mão do gentio.
Não nos consta que estes trabalhos tenham, sequer, sido iniciados.

Não merecem descrição, nem especial referência nesta revista os trabalhos a que procedi para melhorar a defesa de Cacheu, Buba, Farim e Geba, pois o sistema defensivo destas povoações limita-se apenas a paliçadas.”
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18809: Historiografia da presença portuguesa em África (122): L’affaire Salagna, Guiné, I Guerra Mundial: Primeiro estavam os negócios, depois o patriotismo (Mário Beja Santos)

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