segunda-feira, 9 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18828: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 61 e 62: "tenho muito amor para te dar e não é um sacana dum capitão que o vai impedir"


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Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);


(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;
(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xxiv) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xxv) vê, pela primeira vez. enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; mada um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 71 e 62

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


61º Capítulo > A DISCIPLINA EM TEMPO DE GUERRA


Se em mais de dois meses pouco divulguei, pois não tenho dados para tal e só de memória não quero escrever com o receio de errar, já no dia 31 de Outubro quase podia copiar integralmente um aerograma.

“Desejo informar-te da maneira como actualmente estamos a ser dirigidos. Já te tinha dito que o meu capitão era um homem horrível de aturar mas agora atingiu o cúmulo no que diz respeito à disciplina. Admito que não podemos andar à balda, mas depois que divulguei a merda do texto que mandei para o jornal, estamos fodidos, se a culpa é minha, quando os meus colegas souberam, vão cair-me em cima. Repara!

Somos obrigados a andar mais bem uniformizados do que se estivéssemos aí na Metrópole. Proibiu-nos de andar de calções e eles são do próprio exército, portanto fazem parte do equipamento. O cabelo tem de estar curtinho como na recruta e temos de fazer a barba todos os dias. Os sapatos ou botas tem de estar devidamente engraxados e como aqui só há caminhos de terra torna-se difícil. Passamos a ter formatura diária debaixo dum sol horrível e até passou a fazer revista às camas e às nossas coisas privadas. Nota que nem em Bissau são tão severos quanto mais aqui no mato cercados de arame farpado onde nunca vem ninguém.

Conclusão: dão-nos uma fome horrível, pois deixamos de receber abastecimentos como recebíamos, e querem que andemos todos muito bonitinhos.

Não devia mas quero frisar e digo isto, para como em muitas outras coisas mais tarde recordar, que o capitão que é detestado praticamente por todos, ordenou que a partir de agora que a formação também tem de participar nas operações de combate.

Como já te disse as operações são sempre bastante perigosas e agora, cozinheiros, mecânicos, condutores, e todos os especialistas passam a integrar os pelotões de combate. Acho que só vamos três ou quatro de cada vez.


Afirmou na parada durante a formatura que se alguém recusa-se lhe dava um tiro.

Abro aqui um parêntesis para, mais uma vez, informar os meus leitores que cedo me apercebi que, eventualmente, teria cometido um erro, divulgando o artigo do jornal. Precisamente numa reunião em que eu, como cabo condutor, lhe solicitava que assinasse o requerimento para mudar a minha carta de condução, de militar para civil, um direito que as forças armadas facultavam a todos os condutores, ele não só não o recusou, como me informou que eu iria participar na próxima operação de combate. Fiquei certo de que o caldo estava entornado.

Este tipo na verdade merecia que alguém lhe aquecesse o pelo, mas o que nós queremos é ir embora e já que o suportamos quase há dezassete meses também suportamos o resto do tempo.
Andamos aqui oprimidos por causa dele mas pode ser que a mão divina o castigue pela maneira como nos trata, podes crer que se os “turras” nos atacassem e ele lerpa-se seria um dia de festa para os Serrotes de Fulacunda.

Eu sei que não te devia dizer isto e lamento fazê-lo mas quero que fique escrito na tua correspondência se ela chegar até ti e neste aerograma envio-te algo sobre um indivíduo que fez da nossa comissão já por si dolorosa, uma comissão infernal. O capitão Serrote.

Desculpa os incómodos que te dou, vou tentar no futuro não ser tão dramático, tenho muito amor para te dar e não é um sacana dum capitão que o vai impedir.

Um beijo com a esperança que o futuro seja radioso para nós”.

Este aerograma de onde extraio o que acabo de dizer chegou normalmente.

No dia seguinte, era dia de São Martinho e eu, sendo natural de Penafiel e até porque era domingo, escrevi uma carta a falar do vinho novo e das castanhas assadas que as minhas tias e a minha avó normalmente vendiam na feira. Falei também que era a favor das reivindicações feministas. Também digo nessa carta que 90% das mulheres portuguesas eram quase escravas dos maridos.

Não o devia ter dito à minha namorada. Não percebeu a ideia e ainda hoje uma parte significativa da população portuguesa se mantém sem o perceber. Ou se é 8 ou 80. Ou subjugas ou és subjugado e não me venham cá com as merdas da igualdade de direitos. Ou manda ele ou manda ela. Muito raramente um casal avança lado a lado. Um ou outro vai na frente.


62º Capítulo > A OPERAÇAO E OS PÁSSAROS


Em caso de combate, teria de me deslocar para o abrigo dos “Lagartos” onde pertencia a uma equipa de Dilagramas. Não sabia dispará-los. A minha função era transportá-los e fornecê-los ao especialista nessa arma. Era uma G3, cujo carregador tinha balas de salva, (pelo menos foi isso que mencionei no dia em que fiz a tal operação que descrevi como um passeio pelo mato).

Não escrevi o que a seguir vou dizer, mas é das poucas coisas em que a minha memória de certeza absoluta não me trai: Junto à saída da porta de armas, o senhor capitão Serrote disse-me estas palavras que jamais esquecerei:
–  O nosso cabo teve azar. Logo na primeira vez vai para um lugar dos mais perigosos que existem aqui à volta.

Também sei qual foi a minha resposta:
– Não sou mais que os meus camaradas, meu capitão.

“Vou contar-te um passeio que dei hoje pelo mato. Pela primeira vez saí do quartel no sentido contrário ao do rio. Fui com muitos colegas meus e como eles iam para longe saímos daqui era meia-noite. Inicialmente foi chato, porque estava tão escuro, mas tão escuro que para não nos perdermos tínhamos de ir agarrados uns aos outros. Eu ia mais ou menos no meio da coluna e andávamos muito devagar porque iam batedores à frente a abrir caminho por entre a floresta. Não sei quantos km andamos mas quando paramos estava a amanhecer e era muito linda a paisagem. Pude ver de perto uma bolanha que iríamos atravessar. O capim não estava muito alto dava-me um pouco acima da cintura e ao contrário do que eu pensava não tinha agua. Para a atravessarmos tínhamos de ir a uma distância considerável uns dos outros. Quando estávamos sensivelmente a meio vi um enorme bando de pássaros que quase tapavam o sol foi uma imagem maravilhosa mas que me podia ser fatal. Enquanto olhava para os pássaros os meus colegas desapareceram. De repente vejo uma mão entre o capim a mandar-me deitar ao chão. Os meus colegas da dianteira tinham avistado dois inimigos na orla da bolanha e eu como um autêntico nabo a olhar para os pássaros mesmo na linha de tiro.

Olha querida estou aqui no quartel são e salvo e não quero falar mais nisto. Amanhã se me apetecer conto-te o resto”.



Não tenho mais nenhuma referência a esta operação em que fiquei a olhar para a paisagem e, embora me recorde de muitos detalhes, prefiro não os recordar. Aproveito somente para agradecer ao soldado que me avisou para me baixar e a um outro que repartiu comigo a sua água quando a minha acabou. Confesso que não me lembro quais foram.

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1 comentário:

José Botelho Colaço disse...

Claudino ter um comandante como que retratas deve ser um martírio, já basta o azar de ir parar à guerra. Reverso da medalha eu e a C. caç 557 pelo contrário de tudo o que nos mimoseou na guerra da Guiné a melhor foi ter como comandante o Capitão João Luís da Costa Martins Ares que transformou a companhia em uma família amiga que dura e perdura enquanto aqueles que se vão da lei da morte libertando, continua a ser o grande amigo embora coronel reformado e continua a ser o nosso capitão, todos os adjectivos de qualificação pecariam por defeito, as boas acções deste homem para com os seus subordinados davam para escrever um livro ou fazer parte do guines. Um abraço.