Segundo o autor que lemos (Fernando Figueiredo, "Timor (1910-1955), in: "História dos Portugueses no Extremo Oriente", 4º volume: Macau e Timor no Períod0o Republicano", dir. A. H. de Oliveira Marques, Lisboa: Fundação Oriente, 2003, pp. 521-575), haveria alguns causas próximas para explicar a revolta, réplica de resto da iniciada em 1895, sob o governo de Celestino da Silva (desta vez liderada por Dom Boaventura da Costa Sottomayor, filho de Dom Duarte da Costa Sottomayor):
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
Guiné 61/74 - P26507: Timor Leste: passado e presente (30): Elementos para a compreensão da revolta de Manufai, ao tempo da República (1911/12)
Segundo o autor que lemos (Fernando Figueiredo, "Timor (1910-1955), in: "História dos Portugueses no Extremo Oriente", 4º volume: Macau e Timor no Períod0o Republicano", dir. A. H. de Oliveira Marques, Lisboa: Fundação Oriente, 2003, pp. 521-575), haveria alguns causas próximas para explicar a revolta, réplica de resto da iniciada em 1895, sob o governo de Celestino da Silva (desta vez liderada por Dom Boaventura da Costa Sottomayor, filho de Dom Duarte da Costa Sottomayor):
domingo, 15 de dezembro de 2024
Guiné 61/74 - P26268: Timor Leste: passado e presente (29): Uma viagem de mais de um mês de Lisboa a Díli, no N/M holandês Sibajac, em agosto/setembro de 1936 (Cacilda dos Santos Oliveira Liberato, "Quando Timor foi notícia: memórias", Braga, Pax, 1972)
N/M Sibajak > Navio de passageiros que fazia a carreira das Índias Orientais Holandesas (Roterdão - Batavia, hoje Jacarta). Teve uma longa vida (1928-1959) (durante a guerra foi convertido em navio de transporte de tropas). Com 154,4 metros de comprimento, o seu nº de passageiros (em 3 classes) era 527. Tripulação: 209. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia)
Capa do livro "Quando Timor foi Notícia: Memórias", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Tem um prefácio patrioteiro, propagandístico, algo despudorado e completamente datado, do escritor António de Seves Alves Martins:
"Estar, agora, Portugal vitoriosamente em armas, como vitoriosamente esteve em paz na segunda grande guerra, dá plena atualidade a este livro bem revelador da força moral de um povo que não abdica dos seus direitos porque também não se demite dos seus deveres" (pág. 12).
Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942) (*), irá casar depois com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, na "zona de proteção" de Liquiçá em 1943 (nome eufemístico dado pelos nipónico para o campo de concentração dos portugueses).
Com dois filhos pequenos, viu a morte à sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois (com alguns retoques, acrescente-se, de gente erudita do regime que se quis aproveitar do seu testemunho singelo de "mãe coragem").
Estranha-se que o livro só tenha sido publicado em 1972. O manuscrito vem datado de dezembro de 1971. A autora vivia em Portalegre.
Era casada em segundas núpcias com António Oliveira Liberato, cap inf ref, ex-comandante da PSP de Portalegre, oficial da Legião Portuguesa e responsável pela censura a nível distrital. Era autor de dois livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália Editora, s/d, c. 1946, 242 pp.) e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 336 pp.). (Também dois livros, de difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.)1. O que é que os portugueses dos anos 30 do século passado (para mais em plena década do triunfo político das teorias racistas, e do nazismo em particular) pensavam do "outro" que estava lá longe, no "além-mar" das Áfricas, das Ásias, das Oceanias ? Enfim, em terras tão distantes como Timor, a 20 mil quilómetros de Lisboa, e a mais de um mês de viagem por mar ? E sobretudo as portuguesas, ainda poucas, que acompanhavam os maridos, funcionários civis ou militares destacados para funções nas colónias.
Cacilda está de "abalada para o Extremo-Oriente, rumo ao longínquo Timor " (p. 13). Estamos em agosto de 1936. Não sabemos exatamente o dia. Mas terá sido na primeira quinzena.
O navio era holandês, e elegante", o N/M Sibajac (p. 15). E o dia "límpido, radioso", em Lisboa (p. 14). (Portugal não tinha um navio da marinha mercante que, nessa época, fizesse a ligação entre a metrópole e a sua colónia mais longínqua, nem havia movimento de carga e passageiros que o justificasse.)
Antes de entrar no Mediterrâneo, por Gibraltar, o navio faz uma primeira paragem, curta, ao largo, em Tânger, "o tempo suficente para levar o correio à cidade" (p. 14). Inevitável associar Tânger ao "drama do Infante Santo" (...) "desastre a toldar o brilho da epopeia gloriosa da nossa expansão pelas sete partidas do Mundo" (p. 15).
Mas há uma granada, disparada não se sabe donde, que vem rebentar "a reduzida distância da proa" do Sibajac. Confusão, se não mesmo pânico, a bordo. Cacilda vem lembrar, entretanto, que "estávamos em 1936" (...): "a guerra civil espanhola eclodira havia apenas um mês" (p. 16). Em boa verdade, a 17 de julho de 1936, dizem os historiadores.
A viagem até Timor vai demorar mais de um mês... Cacilda e o marido chegariam a Díli em 17 de setembro de 1936. O marido é um médio funcionário da administração colonial, Júlio Gouveia Leite, secretário de circunscrição, que irá encontrar a morte, na tragédia de Aileu, em 1 de outubro de 1942 (*). Era um homem com alguma cultura literária, acima da média, tendo inclusive sido cofundador, na colónia, de um jornal de vida efémera, em 1938, de que se publicaram três edições (**)
O que leva esta mulher da pequena burguesia lisboeta a perseguir "o sonho que há muito tempo acalentava" (p. 13), desde as precoces leituras da sua adolescência ? Acompanhava, desta feita, o marido que, por "rotineiro despacho ministerial", ia ocupar um lugar do Quadro Administrativo da Província" (o livro é publicado em 1972, pelo que em 1936 a terminologia era outra: Timor era uma colónia; a autora é traída por estes pequenos pormenores, o que sugere que terá tido ajuda de "copywriter" ou revisor de texto, o próprio marido, cap inf QR António Liberato ou o filho, Henrique, que era licenciado).
E logo Timor!... Familiares e amigos em vão a quiseram dissuadir: Timor, "que horror!", Timor, "a lendária antecâmara do Inferno, terra de degredados e de febres, de biliosas e perniciosas" (p. 14)... Advertências de "sabor resteliano" (sic) (outra referência de sabor erudito, alusiva ao "velho do Restelo", a personagem camoniana que personificava o pessimismo de alguns portugueses em relação à aventura marítima) que provocavam também dúvidas e receios no espírito desta jovem mulher, recém-casada e com já um filho pequeno.
Nada a demoveu. E lá vai ela decidida a "conhecer as fascinantes regiões das essências e especiarias, o exotismo dos usos e costumes das suas gentes" (p. 13).
"Demandados Gilbraltar e Marselha, lobrigadas das águas do estreito as cidades de Régio e Messina, atingiu-se Port-Said " (p. 16).
É "o primeiro contacto com terras do Oriente". E as primeiras descobertas do "exotismo", o caleidoscópio de "toas raças", tão caro ao viajante da época, vindo da Europa, e para mais ,"supremacista".... Travessia do canal do Suez em comboio (dez navios), Mar Vermelho,, "atmosfera de fornalha" (p.17).,,
Ao fim de sete dias de viagem "sob torreira inclemente", atingem Ceilão (hoje Sri Lanka), fundeando em Colombo, a capital da ilha (p. 18). Foi ocasião para alguns portugueses e "3 missionários holandeses" meterem-se a fazer uma curta exploração da cidade, em sete "rickshaws", puxadas por "coolies", cuja reputação nem sempre era a melhor, conforme aviso feito a bordo...
Calcilda e o companheiro ( e seguramente o filho) quase que perdem o navio, com as voltas que o seu "coolie" deu, alongando o passeio, mas afinal "bem intencionado", ao querer mostrar a zona mais "excêntrica" da cidade,... Tiveram de se meter numa "gazolina" (sic) para apanhar o navio já ao largo, a caminho de Malaca (p. 21).
A descrição pitoresca da viagem continua por mais três páginas: o N/M Sibajak acerca-se de Sabango (ou Sabang, na ilha de Sumatra, Indonésia), navega ao longo de ilhas e ilhotas de vegetação luxuriante, que a autora descreve como "lugar(es) paradisíaco(s)" (p. 22).
"De novo em marcha, escalámos sucessivamente, Belawan, Singapura e Batávia". Aqui terminava a viagem do navio holandês. "Três portos, três empórios, em que os navios abundavam e o tráfico era intenso" (p. 22).
Batávia era o nome então da atual "Djakarta" (sic), "uma cidade de marcado estilo colonial": "vasta e muito povoada, de ruas amplas e largos espaçosos" (...), "edifícios grandes e opulentos" (...), "avenidas alfaltadas" (...), "airosas moradias, cercadas de jardins tratados com esmero e bom gosto" (pp. 22/23).
O que chocou o olhar português e lisboeta da Calcilda ?... "O espetáculo vergonhoso de multidões de indígenas" (sic), que se banhavam e lavavam a roupa em cursos de água barrenta, avermelhada, correndo junto a algumas artérias da cidade...
Apanham outro barco, o Melchior Treub, seguindo viagem até Macassar, nas Celébes, para depois embarcarm no Reisgnears que os levará a Díli. Barcos mistos, de cabotagem, que "em digressão pachorrenta" os transportam por "aqueles mares coalhados de ilhas"...
"Entrei na baía de Díli. Ancorava-se ao largo. Pequena ponte de madeira servia de cais, onde os passageios eram conduzidos em botes e 'gazolinas'. Ali pisei a primeira vez terras de Timor, na manhã de 17 de setembro de 1936" (.p23).
E quais as primeiras impressões de Díli (cap. II, pp. 27-29) ?
"A Capital era, naquela época, um aglomerado sem importância" (...): "o traçado dos edifícios era simples, vulgar, a tender para a uniformidade"... Exceção para "a catedral, de construção recente", destacando-se da "trivialidade do conjunto" pelas suas "linhas modernas" e pela sua "torre, apontada ao céu" (...) e "dominando o modesto burgo" que se espreguiçava "indolente, sob a densa mata de coqueiros, palmeiras e 'gondões' (imbondeiros)"... (p. 27)
O movimento era "diminuto". O comércio local era apenas alimentado pelo "magro orçamento da Província" (sic). A "população não aborígena" (sic) (p. 27) resumia-se ao funcionalismo público, civil e militar, que comia à mesa do Estado... De fora só "meia dúzia de empregados do setor privado" e um ou outro, raro e próspero, "plantador".
E quem era esse funcionalismo ? De origens diversas: europeus, indianos. macaístas bem como um "elevado número de nativos"... (p.28).
"A colónia chinesa detinha o monopólio do comércio" (p. 28). Fora a firma portuguesa "Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho" e o "indiano Wadoomahl", "as lojas e quitandas" de Díli e do resto da ilha "pertenciam aos sorridentes filhos do Celeste Império" (p. 28).
Era no bazar do Wadoomahl que o "elemento feminino" (sic) da colónia gastava as economias com artigos importados de Macau e Índia... "Coisas de sonho" (p. 28): "tecidos, louças, objetos de laca e obras de cânfora e de sândalo, 'bijouteries' e outros artefactos de aparato e valor"
De 3 em 3 semanas, com a chegada do "vapor holandês da carreira", a loja do indiano tornava-se local obrigatório de visita e encontro das "senhoras da sociedade de Díli" (p. 28).
Pontos de reunião, festas, receçóes e bailes, eram os clubes Benfica e Sporting, tão rivais entre si localmente como em Lisboa.
Em Díli, Cacilda, o marido e o filho pequeno ficaram numa moradia à beira-mar (p. 29). Mudaram-se pouco depois para Lahane, onde existia o bairro do funcionalismo, a 3 km da capital, com clima mais salubre.
Ao fim de 3 anos, com o filho Henrique de sete anos, foram para Bobonaro, sede da circunscrição de fronteira, que confinava com o Timor holandès. Voltam para Díli em abril de 1941, quando nasce o segundo filho, Rui Nuno.
Em agosto vão para Aileu (também conhecida na época como a "vila general Carmona", sendo Baucau a "vila Salazar"...), descrita pela autora como "uma pequena vila habitada por meia dúzia de europeus, outros tantos comerciamtes chineses, alguns mestiços, e nativos evoluídos " (sic) (p. 29). Um pequeno grupo de sipaios "assegurava a guarda à tranqueira, fornecia as ordenanças,as estafetas e outro pessoal paar serviço da Administração" (p. 29).
Dispersos pelas redondezas, alcandoradas no "cume das montanhas" (p. 30), em pequenos aglomerados viviam os "indígenas"... A "civilização" em Aileu resumia-se âs instalaçóes da secretaria da Administração, Central telefónica, moradia do secretário, e â saída, já na estrada para Maubisse, os edifícios do Presídio e da casa chamada dos Passageiros (p. 30)... Enfermaria, armazéns, capela, e algunas vivendas isoladas completavam o quadro de Aileu.
E será justamente em Aileu que a Cacilda ouvirá a notícia do início da II Guerra Mundial (1 de setembro de 1939) na Europa (p. 33) e depois no Pacífico, com a entrada de novos beligerantes, o Japão e os EUA, em 7 e 8 de dezembro de 1941, respetivamente (p. 35).
E seria ainda em Aileu que a Cacilda e a família apanhariam as duas invasões estrangeiras do territória, a dos Aliados e depois dos "matan-bubu" (olhos inchados, a alcunha dada aos japoneses pelos timorenses) (p. 48).
As suas memórias mais dolorosas (mas também heróicas) são justamente da longa, cínica e cruel ocupação japonesa (de 20 de fevereiro de 1942 a 5 de setembro de 1945). (***)
__________________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25809: Timor: passado e presente (16): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VII: As chacina de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942... E a coragem da jovem Julieta Lopes, de 17 anos, que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (Na guerra não se matam mulheres e crianças!).(**) Timor - Publicação eventual de carácter literário e científico. Díli, 1938-1939. Impresso na Imprensa Nacional de Timor. Publicação fundada por Júlio Gouveia Leite e João da Costa Freitas, e como editor João da Costa Freitas. Os colaboradores são Virgilio Castilho Duarte, Lorenço de O. Aguiar e Alberto Rodrigues Paizana. Registaram-se três exemplares. Fonte: Biblioteca Nacional de Lisboa.
In: Vicente Paulino e Lúcio Sousa - Contribuição para um roteiro da imprensa periódica de Timor-Leste (1900-2002). Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, nº 40, p. 166-183, jul./dez. 2023.
(***) Vd. poste de 5 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26234: Timor Leste: passado e presente (28): O concelho de Sardoal homenageou, em 15/9/1946, um dos seus filhos, Augusto Leal de Matos e Silva (1905-1944), chefe de posto administrativo de Laga, um dos heróis da resistència aos japoneses, morto da prisão de Díli
quinta-feira, 5 de dezembro de 2024
Guiné 61/74 - P26234: Timor Leste: passado e presente (28): O concelho de Sardoal homenageou, em 15/9/1946, um dos seus filhos, Augusto Leal de Matos e Silva (1905-1944), chefe de posto administrativo de Laga, um dos heróis da resistència aos japoneses, morto da prisão de Díli
Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Foto 16994 > O farol de Díli. O início da sua construção data de 1889, durante o governo de Rafael Jácome Lopes de Andrade [1888-1890]. Obras de reconstrução e melhoramento em 1932 e 1948-49, após a ocupação japonesa.
Fonte: O Sardoal - Boletim de Informação e Cultura da Câmara Municipal de Sardoal, bimestral, nº 53, ano 9, julho - agosto de 2008, pág. 27 (Trata-se das reprodução de um artigo do "Diário de Notícias", de 15 de setembro de 1946.)
- militares (oficiais, sargentos e praças) (n=10) (incluindo o ten inf Anónio Oliveira Liberato, que irá escrever dois livros sobre a ocupação japonesa);
- pessoal da administração (chefes de posto e outros) (n=10)
- deportados (=6) (incluindo o Manuel Viegas Carrascalão, 1901-1977, feitor da Granja Eduardo Marques, o patriarca do clã Carrascalão);
- 1 profissional de saúde (o médico de 2ª classe José dos Santos Carvalho),
- 1 missionário (padre Carlos Rocha Pereira);
- e o diretor da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho (Jaime Celestino Montalvão da Silva Carvalho)...
- Tenente Manuel de Jesus Pires (Porto, 1895-Díli,1944);
- Chefe de posto Augusto Leal de Matos e Silva;
- Chefe de posto José [Plínio dos Santos] Tinoco;
- Enfermeiro Serafim [Joaquim] Pinto;
- Radiotelegrafista Patrício Luz;
- Cabo de infantaria João Vieira.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Guiné 61/74 - P26100: (In)citações (267): Memorando sobre a Escola São Francisco de Assis, em Timor, entregue ao primeiro-ministro Xanana Gusmão através do embaixador Dionísio Babo Soares, representante do país nas Nações Unidas (João Crisóstomo)
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Creio que os dias de grande azáfama nas Nações Unidas devem ter passado ou pelo menos estarão agora reduzidos a programas menos prementes que lhe permitam já um pouco de merecido descanso. Por isso permito-me enviar o que segue, conforme acordado por Vossa Excelência depois do encontro com o Senhor Primeiro-Ministro Xanana Gusmão.
Minha esposa Vilma associa-se a mim na certeza da nossa amizade e apreço pela sua atenção e os nossos respeitosos cumprimentos.
João Crisóstomo
(ii) Ex.mo Senhor Embaixador Dionísio Babo Soares
Mais uma vez o meu "Muito muito Obrigado" pela oportunidade e convite que nos permitiu encontramo-nos de novo no dia 23 de setembro, o que me permitiu ainda o encontrar-me com Sua Excelência o Senhor Primeiro-Ministro Xanana Gusmão (*), Embaixador Luís Guterres, Senhora Elisabeth Exposto e tantos outros que fizeram desta ocasião um dia extraordinário.
Como sabe, aproveitei a ocasião, e em boa hora o fiz, para pedir a sua Excelência o Senhor Primeiro-Ministro Xanana Gusmão o favor da sua ajuda para a escola S. Francisco de Assis (por coincidiência hoje, dia 4 de outubro, é o dia de S. Francisco de Assis na Igreja Católica).
Conforme instruções do senhor Primeiro-Ministro, junto uma sinopse do que julgo ser o que Sua Excelência tinha em mente nas instruções que me deu:
- A Escola S. Francisco de Assis é uma escola construida em 2017 nas montanhas de Liquiçá por iniciativa de alguns amigos de Timor Leste em Portugal e Estados Unidos, que para isso fundaram uma organização de solidariedade, a ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste ).
- Esta escola foi inaugurada a 19 de Março de 2018.
- A "Escola S. Francisco de Assis, Paz e Bem” está localizada no Município de Liquiçá, Suco de Leotalá, povoação de Boebau e lugar de Manati.
- A Escola S. Francisco de Assis está integrada na rede escolar do Ministério de Educação de Timor Leste com o número 36.
- O seu objectivo é providenciar às crianças de Manati /Boebau que por razões de distância e outras não têm acesso a escolas, os programas escolares instituídos pelo ministério de Educação de Timor Leste para os graus pré-escolar e ensino básico.
- A Escola preocupa-se em formar os seus alunos no quadro dos valores universais e da cultura timorense, com especial ênfase para o ensino da língua e cultura portuguesa com destaque para a música.
- Quando em plenbo funcionamento a escola tem capacidade para 180 alunos, contabilizados nos dois períodos matinal e vespertinos.
- Dadas as limitações e dificuldades ainda existentes a escola desde a sua inauguração tem funcionado e providenciado cada ano ensino apenas para 80 a 85 alunos.
Todos os encargos e despesas de construção, manutenção, ensino e outros relacionados têm até ao momento sido suportados essencialmente pelos membros da ASTIL e amigos.
A ASTIL tem neste momento 85 sócios. Deve-se a esta o seguinte :
(i) Construção da "Escola S. Francisco de Assis, Paz e Bem”, localizada no Município de Liquiçá, Suco de Leotalá, povoação de Boebau e lugar de Manati.
(ii) Construção de uma casa/residência, T3, para uso dos professores.
(iii) Construção de uma cozinha. (Esta porém como está é pequena demais e precisa de ser remodelada para maior eficiência.)
(iv) Um muro, que neste momento está ainda em vias de construção para proteção da escola e dos alunos
(v) Fornecimento de todo o equipamento escolar incluindo todo o mobiliário.
(vi) Fornecimento de formação gratuita , em média de 84 alunos, do ensino pré-escolar e ensino básico.
(vii) Os uniformes ( fardamento) e materiais escolares têm sido totalmente gratuitos.
À ASTIL se deve ainda :
(viii) A construção de uma casa /residência T3 para um antigo comandante de guerrilha em Ailok-Laram, já falecido em 2021, que tinha uma grande família, mas que vivia em grandes dificuldades.
(ix) O fornecimento de ajuda a crianças pobres através dum programa de apadrinhamento criado pela ASTIL. Neste momento 41 crianças são ajudadas por membros da ASTIL, famílias portuguesas ou de origem portuguesa a residir no estrangeiro, nomeadamente nos Estados Unidos.
(x) Ajuda a dois jovens universitários, um de Liquiçá , que se licenciou em Gestão na Indonésia, e uma jovem, também de Boebau, que, graças também à ajuda da UNPAZ, se licenciou em Relações internacionais. Esta jovem é agora uma das professoras nesta escola S. Francisco de Assis.
A presente situação desta escola, mesmo nas condições presentes, não é sustentável indeterminadamente. Temos feito vários contactos, nomeadamente com o Senhor Dr. Roger Soares, coordenador das escolas CAFE de Timor Leste.
A "Escola S. Francisco de Assis Paz e Bem “ para que possa continuar a funcionar precisa agora da ajuda das entidades oficiais de Timor Leste, especialmente na concessão de professores acreditados, para que possa funcionar e providenciar o ensino e ajuda a estas crianças.
O mentor e motor principal desta escola é o professor Rui Chamusco , cujos contactos são (...).
(**) Último poste da série > 26 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26082: (In)citações (267): Não às armas nucleares e às mudanças climáticas: carta do Papa Francisco e o testemunho dos Hibakusha (os sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki), cuja organização, a Nihon Hidankyo, acaba de receber o Nobel da Paz de 2024 (João Crisóstomo, Nova Iorque)
terça-feira, 29 de outubro de 2024
Guiné 61/74 - P26090: Timor Leste: Passado e presente (27): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo VI: um herói esquecido e injustiçado, o tenente António PIres
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2. Sobre esse doloroso período (fevereiro de 1942 / setembro de 1945) (em que morreram 90 portugueses e c. 40 mil timorenses), o médico José dos Santos Carvalho publicou, 30 anos depois, um livro de memórias, "Vida e morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (imagem da capa, a seguir) .

Recorde-se, entretanto, que dos 28 louvores atribuídos formalmente, pelo Governador aquando da cessação das suas funções, com datas de 10 de outubro e 21 de novembro de 1945, apenas se contempla um profissional de saúde (o médico de 2ª classe José dos Santos Carvalho). Os restantes são militares (oficiais, sargentos e praças) (n=10), pessoal da administração (chefes de posto e outros) (n=10), deportados (=6), além de 1 missionário e o diretor da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho...
Há um silêncio incómodo em relação à figura do tenente Manuel de Jesus Pires, administrador de Bacau.
Mais tarde, já em junho de 1947, no relatório que fez para o Governo sobre os "acontecimentos de Timor", o antigo Governador (alvo de suspeições de "colaboracionismo", de que acabou por ser ilibado) alargou a lista dos portugueses e inclui uma mão cheia de timorenses, vivos e mortos, merecedores do reconhecimento da Pátria portuguesa: são mais de 60 os liurais, chefes de suco, "moradores" (milícias), e outros "indígenas" expressamente citados.
Recorde-se apenas, "en passant", que a sua história inspirou uma recente série televisisa, cujo guião teve por base o livro Timor na II Guerra Mundial: o diário do Tenente Pires (editado pelo ISCTE, da autoria do historiador António Monteiro Cardoso, entretanto falecido em 2016).
(...) Estando já no prelo o presente livro, um acaso providencial fez-me deparar numa das ruas de Lisboa com o sr. Joaquim Luís Carraquico que eu conhecera em Díli exercendo a profissão de industrial de padaria.
A sua amabilidade permitiu-me obter o esclarecimento de circunstâncias de acontecimentos de que eu tinha imperfeita noção e a notícia de outras que eu desconhecia e que é forçoso transmitir ao leitor para sua mais completa elucidação.
No dia 14 de novembro de 1942 encontrava-se o sr. Carraquico em Baucau onde residia após a evacuação de Díli ordenada pelo Governador.
Constando-lhe o assassinato de europeus em Manatuto por uma coluna [negra], que se dirigia a Baucau, afastou-se desta vila e seguiu para o interior na direcção de Quelicai.
Reuniram-se os foragidos de Baucau, e outras terras, cerca de 300 europeus e timorenses, nas faldas do monte Mate-Bían, no suco de Lai-Súru-Lau, sendo naturalmente guiados pelo tenente Pires e dedicadamente auxiliados por timorenses que lhes traziam alimentos e permanentemente os informavam dos movimentos dos japoneses.
Assim, chegou ao seu conhecimento que, após o assassinato do administrador de Manatuto [dr. João Mendes de Almeida, em 13 de novembro de 1942],e do secretário [Augusto Pereira] Padinha, haviam os japoneses passado em Vemasse, a caminho de Baucau, e, aquando ou depois da sua passagem, se tinha dado o assassinato do deportado sr. António Dias que vivia numa casa que possuía à beira da estrada de Manatuto a Baucau, num suco de Vemasse.
No dia seguinte ao da chegada dos japoneses a Baucau, uma coluna atingira Lautém onde então foram assassinados [em 17 de novembro de 1942] o administrador Manuel [Arroio E.] de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros], e dois deportados, os srs. António Teixeira e Mário Gonçalves [no dia seguinte].
Pressurosamente se apresentaram no local do embarque todos os foragidos, porém só foram autorizados a embarcar os constantes duma lista elaborada pelo tenente Pires, entre os quais todas as mulheres e crianças.
O sargento Martins, de metralhadora em punho, impediu, então a salvação de muitos dos homens, os quais teriam de ficar em Timor "para manter a soberania portuguesa naquela área e para auxiliarem as forças australianas que haveriam de vir a desembarcar na ilha".
Assim, o sr. Carraquico, o dr. [José Aníbal Torres] Correia Teles [médico] , o condutor de obras públicas, [Orlando] Vale do Rio Paiva, e vários outros, assistiram à partida das suas famílias e eles ficaram para ali, abandonados, fracionados em pequenos grupos para evitar as colunas negras que os perseguiam, mas amigável e caridosamente ajudados pelos timorenses da região.
Em breve os foragidos se sentiram cercados pelos japoneses que se instalaram em Ossú, Viqueque, Báguia e Quelicai, lançando colunas negras pelo interior.
Impôs-se-lhes, assim, a retirada para a zona litoral de Luca e Barique onde ainda não dominavam os nipónicos e havia locais propícios à ancoragem de embarcações que os viessem salvar, transportando-os para a Austrália.
Como a tropa japonesa patrulhasse incessantemente a estrada de Viqueque a Ossú, os foragidos só conseguiram atravessá-la divididos em pequenos grupos, altas horas da noite e guiados por dedicados amigos timorenses.
O grupo a que pertencia o sr. Carraquico foi acampar em Nátar-Bora, na região de Luca, e outros grupos ficaram por ali perto. Dois missionários [Padre António Manuel Serra e padre Júlio Augusto Ferreira], o secretário [de circunscrição José Luís] Howell de Mendonça e o chefe de posto Eugénio de Oliveira, juntaram-se ao deportado sr. Américo de Sousa [surrador, de profissão] e foram acolher-se à protecção de um chefe de um suco [2] ao qual pertencia a companheira do sr. Sousa e que também vinha com eles.
Em Nátar-Bora, o dr. Correia Teles que estava muito doente e extremamente debilitado, afastou-se momentaneamente dos seus companheiros e suicidou-se descalçando a bota alta e premindo o gatilho da caçadeira que trazia, com o dedo grande do pé, depois de ter apoiado os canos da espingarda contra o maxilar inferior.
Em janeiro de 1943 receberam os foragidos uma comunicação do dr. Cal Brandão (que se encontrava com militares australianos para os lados de Fátu-Berliu) , de que no dia 9 viria um navio à praia de Quirás, junto à foz da ribeira Sáhe, ao sul da povoação da Soibada, para evacuar para a Austrália os australianos e, também, os portugueses que por ali andavam.
Assim, na tarde do dia aprazado encontraram-se em Kirás algumas dezenas de portugueses com o dr. Cal Brandão e a tropa australiana comandada pelo major [Bernard] Callinan. Pelo dr. Cal Brandão foi então referido que o comandante australiano havia proibido o embarque ao aspirante [administrativo José] Armelim Mendonça, assim, como a toda a sua família, não lhes permitindo, sequer, a deslocação a Kirás! [3]
Por grande infelicidade, as duas primeiras baleeiras que chegaram à praia e eram as destinadas ao transporte dos portugueses, voltaram-se devido ao mar bravo, pelo que somente puderam embarcar muito poucos, juntamente com os militares australianos.
Lembra-se o sr. Carraquico de terem conseguido embarcar:
- a esposa e filhas do tenente reformado Sequeira;
- os cabos Rente [ chefe do posto do Remexio] e Robalo;
- os enfermeiros Alfredo Borges e Marcelo Nunes;
- o aspirante administrativo Artur Oliveira;
- e os deportados Arsénio José Filipe, José Maria e Rodrigo Rodrigues.
Ficou em Timor uma secção australiana (16 militares), que, segundo o dr. Cal Brandão, se foi esconder nas montanhas de Fátu-Berliu com a incumbência de observar o movimento das tropas inimigas e dar informação pela TSF para a Austrália.
A situação dos portugueses foragidos era agora mais que nunca desesperada, pois as colunas negras continuamente os perseguiam. Forçados a esconder-se nos matagais pantanosos da planície de Barique onde os mosquitos que transmitem o paludismo constituem legião mortífera, estavam condenados a privarem-se de alimentos provenientes de plantas cultivadas pois esta zona é completamente despovoada devido aos timorenses evitarem nela residir por ser doentia.
Seguiram-se tempos dos mais desgraçados e miseráveis para aqueles infelizes que, minados pela fome e doença e sugados pelos mosquitos erravam pela floresta do litoral de Barique, colhendo frutos e raízes silvestres e apanhando a furto uma espiga em horta de há muito abandonada e, sempre, sob o terror das colunas negras que tanto os incomodavam.
Fracionados em pequenos grupos para mais facilmente poderem subsistir viam, pouco a pouco, cair em mortos de inanição ou de doença ou apanhados pelas colunas negras vários companheiros.
O enfermeiro Alcino Madeira, um seu irmão e o cunhado, tenente reformado Sequeira, resolveram afastar-se da costa sul e procurar abrigo entre timorenses seus amigos na terra da família Madeira, a Ermera. Puseram-se a caminho, mas todos cairam assassinados, não se sabendo, porém, onde nem como.
Também o cabo Acácio de Oliveira, o deportado sr. Severino Faria Coelho, o deportado sr. Manuel Simões Miranda e um enteado deste último, garoto de cerca de oito anos, se afastaram do grupo em que andavam para procurarem comida. Apanhados por uma coluna negra, todos foram assassinados com exceção do sr. Miranda que conseguiu escapar-se na ocasião mas que sucumbiu, depois, à fome.
O enfermeiro Fernando [José Maria] Senanes, ferido numa perna por uma bala disparada por uma coluna negra atacante, foi apanhado e assassinado à catana, sendo-lhe decepadas as mãos para se exporem como troféu no alto de uma azagaia! [na região de Luca, antes de 28 de fevereiro de 1943].
O velho sr. Delfim, que era nos tempos de paz o encarregado das oficinas dos Serviços de Obras Públicas em Díli, já não podia andar e, por isso ficara numa povoação timorense, ao cuidado de um chefe de suco, onde durante algum tempo foi muito bem tratado. Morreu intoxicado, porém, por lhe terem dado numa refeição mandioca brava, talvez no intuito de se apoderarem das patacas mexicanas que ele guardava numa faixa que lhe envolvia o abdómen e cujo volume se distinguia perfeitamente sob a camisa.
Em meados de fevereiro veio um submarino americano à praia da «alfândega» de Barique [4] para evacuar para a Austrália todos os militares dessa nacionalidade e os timorenses de Ossuroa que os tinham auxiliado.
Neste mesmo navio embarcou também o tenente Pires; que só o fez depois de muito lho pedirem os seus companheiros e com o fim de instar na Austrália por socorro urgente aos portugueses.
Conta o dr. Cal Brandão que os australianos deixaram aos portugueses de Timor dois aparelhos transmissores e recetores de TSF e uma cifra para que pudessem continuar a comunicar com a estação de Port Darwin ficando a cargo do sargento-telegrafista da Armada, Luís de Sousa, adido à Missão Geográfica, no tempo de paz.
No grupo a que pertencia o sr. Carraquico andavam o cabo reformado Alexandre [B. Gomes] (por alcunha o «cabo Macau») e o enfermeiro Manuel Turquel dos Santos, os quais sofriam de enormes úlceras, nas pernas, instaladas em ferimentos devidos aos espinhos do mato que lhes rasgaram a carne durante as precipitadas correrias.
Num dado dia, foi o grupo atacado por uma coluna negra chefiada por japoneses e todos se puseram em fuga, sendo forçados a atravessarem uma ribeira de águas quase paradas mas funda.
Deste mesmo grupo fazia também parte o soldado Mendes [ou António Mendes, cabo de infantaria ?] que andava transtornado mentalmente, parece que por ter explodido uma bomba muito perto de si. Veio a morrer, de fome e paludismo, pouco depois.
O sr. [Orlando] Vale do Rio Paiva, condutor de obras públicas, foi atingido por uma intoxicação geral que se manifestava por bolhas que se rompiam e ulceravam e em breve faleceu.
O sr. Soares que no tempo de paz estava empregado na plantação do sr. Sebastião da Costa, no posto da Hera, fazia parte de um grupo de foragidos que foi atacado por uma coluna negra. Enervado, em vez de fugir, enfrentou a turba, de pistola em punho. Lançaram, então, contra ele uma granada de mão que o vitimou.
O Pe. Francisco Madeira andava num grupo de que fazia parte, além de outros, o deportado sr. Jacinto Estreia, e recebeu de um amigo timorense o presente de um cacho de bananas num momento em que se encontrava com desesperada fome. A abundante e não habitual refeição provocou-lhe, porém, uma indigestão que o vitimou.
Lembra-se, ainda, o sr. Carraquico de três portugueses europeus que morreram à fome, «só com pele e osso», na costa sul. Foram eles, o sr. Venceslau Pereira (escrivão do tribunal de Díli) , o deportado sr. Mário Vitorino Enguiça e outro deportado conhecido pelo apelido de «Silvinha» , o qual nos seus últimos tempos ficou cego devido às privações.
Em princípios de julho [de 1943] o tenente Pires voltou da Austrália num submarino americano dando a notícia de que em breve viria um navio evacuar os portugueses foragidos. Pela TSF combinaram estes com os autralianos que o local do embarque fosse a já referida «alfândega» de Barique [4] e o dia escolhido, o de 3 de agosto.
Com efeito, pelas 5 horas da tarde desse dia [3 de agosto de 1943] , ancoraram duas «vedetas» australianas onde embarcaram as seguintes pessoas de que o sr. Carraquico se recorda:
(i) Deportados:
- dr. Carlos Cal Brandão,
- Joaquim Carraquico,
- Jacinto Estrela,
- Domingos Paiva,
- Paulo Soares,
- Hilário Gonçalves,
- Álvaro Damas,
- Francisco Horta,
- José Luís de Abreu,
- Bernardino Dias,
- Hermenegildo Granadeiro,
- António Pereira (e esposa),
- Pedro de Jesus (e família),
- Francisco Albuquerque (e esposa)
(ii) Sargentos:
- Lourenço Martins,
- José Arranhado,
- Luís de Sousa
(iii) Cabos:
- José Pires (chefe do posto de Lacluta) e família,
- Ilídio dos Santos
- José Rebelo
(iv) Outros:
- Eduardo Gamboa (Chefe de posto),
- António Sebastião da Costa,
- Henrique Pereira,
- Fernando Pereira,
- Joaquim Campos (Funcionário das Obras Públicas),
- Abel Cidrais (Funcionário das Obras Públicas),
- 0 Sr. Sousa (natural da Índia Portuguesa),
- duas filhas do falecido sr. Manuel Simões Miranda,
- dois chineses,
- vários timorenses dos dois sexos
Em Timor ficou um grupo de voluntários, em missão, de observação, de que faziam parte os seguintes portugueses:
- Tenente Manuel de Jeus Pires,
- Chefe de posto Augusto Leal de Matos e Silva [natural de Sardoal e homenageado pela sua terra em 1946],
- Chefe de posto José [Plínio dos Santos] Tinoco [morto na cadeia de Díli, em 8 de abril de 1944] ,
- Enfermeiro Serafim [Joaquim] Pinto [morto na cadeia de Díli, antes de 29 de abril de 1944] ,
- Radiotelegrafista Patrício Luz ,
- Soldado [ou cabo de infantaria ?] João Vieira.
Dos portugueses que conseguiram passar para a Austrália, aí faleceram os seguintes:
- Coronel Jorge Castilho [5],
- Sargento Gastão Ornelas de Vasconcelos,
- Joaquim Campos,
- António Sebastião da Costa,
- Sr. Cachaço (empregado do sr. Sebastião da Costa),
- Sr. Santos (olheiro das Obras Públicas),
- Um menino timorense.
Teve o sr. Carraquico conhecimento de alguns pormenores de assassinatos de portugueses, os quais amavelmente me referiu. Pelo cabo Rente, que era o chefe do posto do Remexio, soube dos assassinatos dos deportados srs. Ramos Graça e Fernando Martins.
O cadáver do primeiro foi encontrado retalhado à catana japonesa de tal modo que estava irreconhecível. Os japoneses haviam-no abandonado numa ravina não longe da casa em que o sr. Ramos Graça habitava.
Quanto ao sr. Fernando Martins (que era coxo por ter um joelho anquilosado e com a perna fletida) , havia-se juntado a uma guerrilha australiana que actuava na área do Remexio. Passando o grupo por um acampamento japonês instalado num local situado entre o Remexio e Díli, notaram que as sentinelas estavam a dormir, o que aproveitaram para se aproximarem e lançarem uma granada de mão para o meio do acampamento.
Então, os japoneses perseguiram-nos e alcançaram o sr. Martins ao qual prenderam com uma corda pelo pescoço a um cavalo e assim o arrastaram até Díli e o abandonaram na praia, onde o sargento Vicente, chefe da polícia, somente pôde reconhecer o cadáver pelo aleijão do joelho.
Soube também o sr. Carraquico como foi assassinado o alferes reformado Alípio Ferreira que vivia em Cribas com a sua esposa timorense, um filho adulto e uma filha muito gentil e elegante. Quando por sua casa passou a coluna do tenente Ramalho que havia combatido os rebeldes de Maubisse, o alferes Ferreira, profundo amigo dos timorenses, pediu ao comandante que lhe deixasse ficar à sua protecção um rapazinho timorense que ele tinha recolhido por já não ter pai nem mãe.
Após o assassinato de europeus em Manatuto, o alferes Ferreira refugiou-se numa palhota bem escondida no mato, protegido pelo sigilo dos seus amigos timorenses. Porém, era necessário sair dela e ir a uma certa distância para trazer a água essencial para a vida da família e disso era encarregado o garotito de Maubisse.
Ora, num dado dia, deu-se a fatal coincidência de este ter encontrado no seu caminho uma coluna negra em que vinham timorenses da sua terra, que logo o reconheceram. Inocentemente, indicou-lhes o abrigo do seu protetor que logo foi assassinado juntamente com o filho [Alberto Ferreira], escapando incólumes a esposa e a filha.
Sobre os assassinatos de portugueses na circunscrição de Lautém após a chegada de japoneses, referiu-me o sr. Carraquico ter-Ihe constado, dias depois, que em Lautém haviam sido mortos o administrador Manuel [Arroio E. ]de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros] e os deportados Mário Gonçalves e António Teixeira e, em Iliómar, o chefe do posto, cabo [João ] Brás e o deportado Raul Dias Monteiro.
Acrescentou, então, que eu poderia ser devidamente esclarecido sobre esses bárbaros acontecimentos pelo sr. César de Castro [serralheiro ] que eu conhecera deportado em Timor e agora reside na Cova da Piedade. Com a melhor vontade se prontificou o sr. Castro a rememorar a tragédia de que foi figurante e da qual é o único europeu sobrevivente.
Aproveitando as qualidades do sr. César de Castro, hábil serralheiro, o Estado havia-o contratado [6 ] para exercer as funções de encarregado da fábrica de serração de madeira instalada em Loré (na área do posto de Iliómar e na costa sul) , junto à principal e mais rica floresta de Timor . Raras vezes ele se poderia deslocar a Lautém pois que, além do percurso a cavalo demorar cerca de dois dias, ele era o único responsável por todos os serviços da fábrica, competindo-lhe a direcção, administração, contabilidade, etc.
Porém, em novembro de 1942, apresentou-se em Loré o deportado sr. José Filipe, recomendado pelo administrador Barros para trabalhar junto do sr. Castro, o que permitiu a este deixá-lo a vigiar os trabalhos na fábrica e seguir para Lautem para apresentar contas ao administrador, receber os salários, etc, e tratar de assuntos da sua vida particular.
Chegado à vila na manhã do dia 15 foi instalar-se em casa do deportado Luís Maria Félix que exercia as funções de olheiro da circunscrição. Por este seu amigo foi então informado de que não havia comunicações telefónicas para oeste de Lautem, nada se sabendo pois do que se passava no resto de Timor [7].
Apresentou-se, em seguida, na secretaria da circunscrição tendo-o o administrador convidado para almoçar em sua casa, o que não pôde aceitar por estar comprometido a ir tomar a refeição com um comerciante chinês, juntamente com o sr. Luís Félix.
À tarde, quando os dois amigos conversavam na varanda da residência do sr. Félix, ouviram um tiro, sendo em breve informados por timorenses que passavam espavoridos que os japoneses haviam chegado e morto a tiro o sr. Mário Gonçalves [deportado] . Imediatamente a família do sr. Félix (companheira timorense e dois filhos) se pôs em fuga para os arredores e logo apareceram militares japoneses que se instalaram na casa, destinando um quarto para os dois europeus e dando-lhes ordem de não se afastarem do local.
Assim se passaram oito dias em que eles se mantiveram isolados, eles próprios cozinhando a sua comida. Passado este tempo, os japoneses avisaram-nos que seguiriam para Baucau no dia seguinte.
Assim, o sr. Félix conseguiu disso avisar a família que logo voltou do mato e com os europeus foi metida numa camioneta. Em Baucau embarcaram numa lancha de desembarque que os levou a Díli.
Seguiram depois para a zona de concentração de Liquiçá onde o sr. Félix veio a morrer de beribéri [em 10 de junho de 1945] e o sr. Castro se manteve até ao fim da guerra.
Segundo timorenses contaram à companheira do sr. Félix, o deportado Mário Gonçalves havia, por acaso, saído a cavalo para os arredores da vila quando a tropa japonesa que chegava o encontrou. Mandaram-no desmontar e meteram-no numa camioneta, levando-o para Lautém onde o encerraram na casa de um comerciante chinês. Tendo ele pedido licença para ir tomar banho à praia, esta foi-lhe concedida, o que não obstou ser abatido a tiro no trajeto!
Das circunstâncias em que se deram as mortes do administrador Barros e da esposa e do deportado António Teixeira [8] nada soube o sr. Castro, nem na ocasião nem depois.
Segundo na época dos acontecimentos constou ao sr. Carraquico, o administrador foi assassinado após a chegada dos japoneses à vila, seguindo-se-lhe na mesma sorte a sua esposa, mas por ela o ter insistentemente requerido aos algozes de seu marido, pois queria morrer com ele.
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Notas do autor (complementadas pelo editor):
(1) Segundo o dr. Cal Brandão (Funo, Porto, 1946, p. 115), tratava-se do capitão Brothers, inglês, chefe de um grupo da Inteligência Militar Australiana, que se havia instalado junto da habitação do liurai D. Paulo, de Ossuroa, na área do posto administrativo de Ossú.
(2) Segundo um louvor conferido pelo Governador, tratava-se do chefe do suco de Umuai de Baixo, área do posto de Viqueque, Miguel da Costa Soares. ["Conservou escondidos em sua casa, com grave risco de vida, os padres Serra e Ferreira, o secretário Mendonça e o aspirante Eigénio de Oliveira durante dois meses, mostrabdo-se sempre leal e dedicado português. Tendo-lhe sido confiado dinheiro (180 libras) pelo secretário Mendonça, no fim da guerra entregiu integralmente a quantia que havia recebido"... Fonte: antigo Governador Ferreira de Carvalho, "Relatório dos Acontecimentos de Timor", Lisboa, junho de 1947] ,
(4) O local era assim designado pelos timorenses por ai existirem uns barracões onde aguardavam transporte para Dili, os géneros que embarcações lá vinham carregar.
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(*) 22 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26068: Timor Leste: Passado e presente (26): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo V: a situação sanitária em 1945: "valeu-nos a fé em Deus e a confiança nos governos d Colónia e da Nação"