sexta-feira, 17 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P63: Tertúlia dos ex-combatentes (Luís Graça)

16 de Junho de 2005. Amigos e camaradas:

Vejam a nossa lista de contactos. É uma lista aberta. Podem propor novos nomes. Façam o favor de conferir e corrigir eventuais erros e omissões. Há dados incompletos.

Penso que devemos, por razões óbvias, limitar esta lista aos ex-combatentes da Guiné, que estiveram no TO (Teatro de Operações) da Guiné entre 1963 e 1974, num lado e noutro da barricada...

Seria giro encontrarmos gente do PAIGC que andou na mata... Talvez o J.C. Mussá Biaí nos possa ajudar. O estatuto dele não o mesmo que o nosso, era djubi do Xime, andava na escola em 1972... Mas pode e deve figurar na nossa lista de e-mails, se ele assim o desejar…

Porquê só a Guiné, e não tamabém Angola e Moçambique ? A malta da Guiné tem mais afinidades uns com os outros, porque quase toda a gente passou pelos mesmos sítios. Ou pelo menos há lugares que são conhecidos de todos... A Guiné é do tamanho do Alentejo. Foi um osso duro de roer, para todos os combatentes, os nossos e os do PAIGC. Infelizmente os caminhos da indepencência foram tortuosos. Hoje a Guioné-Bissau corre um sério risco de desaparecer como Estado, como Nação e como país independente... Cabe-nos também ajudar o povo guineense a encontrar os caminhos da esperança...

PS – Há um certo risco de publicarmos uma lista como esta na Net... Os nossos endereços podem vir parar a bases de dados comerciais e é bem possível que passem a receber mais lixo... As chamadas mensagens SPAM.. Algumas podem trazer vírus...

É preciso ter cuidado e não abrir tudo... Suspeitem inclusive de endereços de e-mail vossos conhecidos mas com subjects (assuntos) do tipo: Hi, hello, morto, Documento, Excel file, Obrigado...

A regra é: nunca abrir algo suspeito e eliminar a mensagem em caso de dúvida... E, é claro, reforçar a segurança informática... Isto é como as putas das bailarinas que mataram e feriram gravemente muitos camaradas nossos. E que continuam a matar e a ferir a população da Guiné, Angola, Moçambique, embora a situação da Guiné seja melhor do que a dos outros dois países.

Vejam ainda a este respeito as instruções de um operador como Clix:

Alertas Clix > Como se pode proteger dos vírus?


1. Não abra ficheiros anexos a emails de fonte desconhecida ou duvidosa.

2. Não abra ficheiros anexos a emails, excepto, se sabe do que se trata, mesmo que estes sejam enviados por amigos ou alguém que conhece. Alguns vírus podem replicar-se e propagar-se através do email. Mais vale ir pelo seguro do que arrepender-se mais tarde, por isso confirme com a pessoa que lhe enviou o email em caso de dúvida.

3. Não abra ficheiros anexos a emails se o título da mensagem é suspeito. Caso necessite de abrir os ficheiros, guarde-os sempre no seu disco rígido antes de os abrir.

4. Apague emails não solicitados. Não reencaminhe ou responda a qualquer um deles. Este tipo de email é considerado spam, ou seja, são mensagens não solicitadas e intrusivas que afectam a rede.

5. Não faça o download de ficheiros de desconhecidos.

6. Tenha ...

Para saber mais > Clix > Segurança > Mais...

Guiné 63/74 - P62: Op Noite das Facas Longas (Humberto Reis)

Mais de trinta anos depois, a verdade histórica é reposta, vindo ao de cima como o azeite. Diz o Ranger da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), com a coragem e a frontalidade que já lhe conhecíamos desde os idos tempos da guerra colonial:

"O cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas. O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino fui eu.

Sem mais comentários.
Um abraço.
Humberto".

Guiné 63/74 - P61: Antigos combatentes do PAIGC, procuram-se!

Vários camaradas têm escrito que as nossas estórias (em rigor não pretendemos fazer a História com H grande, mas apenas contar estórias...) estão necessariamente incompletas: de facto, falta-nos o ponto de vista do guerrilheiro do PAIGC, do combatente que, de kalash ou de costureirinha nas mãos, ou de RPG ao ombro, combateu contra os tugas, do outro lado do capim, do arame farpado, da picada, da bolanha ou do rio...

1. O tom (e o desafio) já tinha sido dado pelo Sousa de Castro que, em 23 de Março de 2005, mandou a seguinte mensagem ao webmaster do Portal Guine-Bissau.com

"Antes de mais, uma abraço para todos os Guineenses e o desejo de uma Páscoa Feliz. Estive na guerra colonial, de Janeiro de 1972 a Abril de 1974, na zona leste, mais precisamente no Xime, conhecem? Interesso-me pelo bem estar de todo povo da Guiné, peço-vos para que façam um esforço para conquistar a paz definitivamente. Bem hajam".


2. A resposta veio no dia a seguir (26 de Março de 2005):

Amigo Sousa: Muito agradecidos pela sua visita ao nosso site.

"Agradecemos as suas palavras e desejamos o melhor para você e a sua família e muita prosperidade para o estimado Portugal que, apesar dessa maldita guerra, segue latindo nos corações de todos os guineenses. Segue vivo através dos idiomas português e crioulo e segue crescendo como um laço entre todos os que temos o idioma luso por oficial.

"Aproveito a ocasião para informar-lhe que estamos empenhados na reconstrução da história daqueles anos. Se você decidir escrever as suas memórias sejam quais sejam as suas críticas, pensamentos... e por muito crus que eles sejam, nós estaríamos imensamente honrados de receber essas memórias. Se, por outra parte, você nunca pensou em escrevê-las talvez seja o momento. Seria o seu contributo ao nosso povo.

"Se, pelo contrário, o senhor conhece pessoas que tenham memórias desses anos, estaríamos muito agradecidos pela informação. Os nossos cumprimentos".

O webmaster do Portal Guine-Bissau.com

3. O Castro pegou na ideia e vem desafiar-nos (16 de Junho de 2005):

"Caros amigos. Como podem verificar, também os nossos amigos da Guiné estão empenhados em reconstruir a história referente aos anos de guerra. Pode ser que também apareçam ex-combatentes do PAIGC interessados em nos contar histórias relacionadas com a guerrilha. O Luis Graça, numa das suas mensagens, referiu isto mesmo. Seria muito interessante!... Que é que acham? O Graça como é um expert em matéria de informática, pode dar andamento a este projecto. Grande abraço para todos incluindo também, todos os Guineenses. Sousa de Castro".

4. O Afonso de Sousa veio logo concordar:

"Como interessante seria se, ao contarmos esta ou aquela estória em que nos confrontámos com o IN (em situação de ataque ou de defesa), ouvissemos, sobre esses mesmos confrontos, o relato do nosso opositor. Seria quase inédito!

"Isso mais valorizaria este trabalho, estas memórias de guerra".

5. Já hoje (17 de Junho de 2005) eu, Luís Graça, tinha mandado a seguinte mensagem à malta da nossa tertúlia:

"Amigos e camaradas: Este repto do Castro, secundado pelo Afonso, é mesmo para levar a sério...Toca a descobrir os ex-combatentes do outro lado. O Marques Lopes já o fez: em 1998, quando voltou à Guiné, teve oportunidade de conhecer o Comandante Gazela e de falar com ele…Pessoalmente, também vou tentar localizar antigos combatentes do Sector L1 / Zona Leste da Guiné (Região do Xitole, para o PAIGC)... A tarefa não é fácil e o tempo está contra nós. Um abraço. Luís".

6. Acabo entretanto de receber ideias e sugestões do nosso operacional do Geba e de Barro, A. Marques Lopes:

"Estou completamente de acordo com esta ideia de os ex-combatentes do outro lado também nos dizerem da sua experiência, das sua vivências, das suas história dos confrontos que tivemos. Seria um elemento importantíssimo para a nossa própria compreensão daquilo em que andámos metidos (em que nos meteram).

"Não são nossos inimigos, já não são o IN...fomos actores de uma mesma tragédia (ou opera buffa?...). Eu, pessoalmente, estou muito interessado em ouvir o que me dizem os combatentes do PAIGC de Sinchã Jobel sobre aquelas operações de que vos dei relatório. A visão de quem fez os relatórios é uma, a deles pode ser diferente ou acrescentar mais alguma coisa. Isto em termos de pesquisa da verdade. Mas o principal é conseguir que aqueles que não estão contra agora se encontrem para delinearem mutuamente a explicação daquilo que os fez estar contra outrora.

"Já falei com o Comandante Gazela, mas em circunstâncias um bocado apressadas e não deu para muita conversa. Mas estou a pensar voltar à Guiné, talvez em Janeiro do próximo ano, e falar mais calmamente com o Gazela e com o Lúcio Soares, os homens de Sinchã Jobel.

"Tenho também outro projecto: um dia destes vou até ao bairro da Cova da Moura, nos arredores de Lisboa, onde sei já que há alguns elementos da CCAÇ3 e, eventualmente, outros elementos que foram do PAIGC durante a guerra (o bairro é problemático, como o é o do Cerco do Porto, por exemplo, mas não é tal e qual como a comunicação social faz levar a pensar... já lá estive uma vez, e sei que há bons e maus como em todo o lado).

"Para quem tem, além das recordações da guerra que não pode esquecer, um grande amor pela Guiné, como é o meu caso e o vosso, não tenho dúvidas que isso seria uma forma de fortalecer essa ligação com uma terra e um povo que não nos saiem do coração. Nunca mais esquecerei a forma amiga e a simpatia com que fui recebido em 1998, quando lá estive, e visitei várias tabancas por onde tinha andado também nos tempos da guerra, apesar daquilo que nela fiz (ou fizeram que eu fizesse). O povo da Guiné é um povo amigo, merecedor do nosso respeito e de todo o esforço, que estiver ao nosso alcance, claro, para que seja feliz e seja aceite por todos.
Abraços. Marques Lopes.

6. O Guimarães também acaba de opinar sobre o assunto. Espero que toda esta conversa seja frutífera. Venham lá os depoimentos e os documentos (fotos, etc.) dos nossos amigos, ex-combatentes do PAIGC.

"Esta ideia é genial e aconselhável - assim a guerra seria contada na íntegra. Não nos interessa as razões políticas em si e porque se desenrolou, mas sim a forma como se desenrolou...

"O povo da Guiné, sou testemunha disso, é encantador. Em Bambadinca, em 2001 um homem grande pedia-nos: "Voltem para cá". Por onde passei eu, e os meus companheiros de viagem, toda a gente nos abraçava...

"Vi nos CD da visita daqueles camaradas, em 2000 à Guiné, o comandante de Bambadinca; em 2001, quando lá estive, tinha mudado.... Mas ele mesmo o fez questão em nos facilitar a visita ao aquartelamento...

"Boa ideia essa, teremos contudo que encontrar esses ex-combatentes em Portugal. Pena que um deles regressou agora mesmo à Guiné: o Nino Vieira, que vivia em [Vila Nova de ]Gaia... Ele era comandante de sector e actuou muito na zona L1. Aliás ele mesmo confirmou isso ao Capitão Miliciano que comandou a CART 2716.

"Marques Lopes, quem me dera voltar lá já contigo, era óptimo. Procura ir em Novembro pois que ainda apanharás a luxuriante paisagem verdejante. Terei que lá voltar também, como e quando não sei ... Abraços. Guimarães".

7. O Castro foi mais longe e quis dar o exemplo. Acaba de mandar esta mensagem ao seu amigo desconhecido do Portal Guine-Bissau.com:

"Amigos e camaradas da Guiné-Bissau, desejo de todo coração que as vossas eleições sejam livres e transparentes e faço votos para que a vossa (nossa) terra progrida livremente. Um dia irei visitar vosso País. Abram o nosso Blogue-fora-nada e têm aí algum material relacionado com a guerra colonial. Aguardamos também histórias vossas sobre a guerra colonial; seria muito interessante compararmos as nossas e as vossas histórias. Grande abraço para todos. Bem hajam. Sousa de Castro".

8. Sigam o exemplo do Sousa de Castro e de mim próprio, mandando mensagens para o Livro de visitas do portal Guine-Bissau.com. Assunto: Antigos combatentes do PAIGC, procuram-se!

quinta-feira, 16 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P60: Cabral ka mori? (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bafatá > 2001: Busto do fundador do PAIGC, Engº. Amílcar Cabral (Bafatá, 1924 - Conacri, 1973). A velha cidade colonial de Bafatá está muita degradada. © David J. Guimarães.

1. "África, 30 anos depois" é um excelente documento, publicado pela revista semanal Visão, que acompanha a sua edição de 16 de Junho (240 pp, 14.9 euros). O pretexto é o de revisitar as ex-colónias portuguesas (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe), trinta anos depois da sua independência. A não perder.

2. No que diz respeito à Guiné-Bissau, há várias (excelentes) reportagens assinadas por Pedro Rosa Mendes: (i) Guiné-Bissau: Cabral morreu (pp. 146-153); (ii) Guiné-Bissau: 'um país de traições' (pp. 154-155); e (iii) Guiné-Bissau: Braima, o menino de Amílcar (pp. 156-159). A introduação e a cronografia é de Luís Almeida Martins e a fotografia de Luís Barra.

É um olhar extremamente lúcido, cruel e quiçá desesperado sobre a herança de Cabral. A conclusão (brutal) é que Cabral morreu, contrariamente ao slogan repetido até à exaustão, pela propaganda oficial e pelos ex-combatentes e militanets do PAIGC, de que Cabral ka mori (Cabral não morreu).

A conclusão do jornalista e escritor é que Cabral definitivamente. Morreu duas vezes: fisicamente (assassinado em 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, às mãos de jagunços do próprio PAIGC); e depois politica, ideologica e espiritualmente, ao longo destes trinta e tal anos de independência em que o próprio PAIGC e a elite guineense entraram num processo de autofagia. A sua cidade-natal e a sua casa estão votadas ao abandono.

Há, no entanto, algum branqueamento das razões profundas por que a Guiné-Bissau não conseguiu erigir-se em verdadeiro Estado moderno e sobretudo na Nação com que sonhou Amílcar Cabral. A nossa quota-parte de responsabilidade (histórica) é posta entre parêntesis. A nossa, de portugueses e de ocidentais.

De qualquer modo o propósito do balanço era outro: o que fizeram os africanos, e neste caso concreto, os guinéus, com o poder que conquistaram, duramente, heroicamente ? Há sempre o risco de etnocentrismo neste tipo de jornalismo de investigação, pese embora a superior qualidade da observação, da efabulação e da escrita de Pedro Rosa Mendes, o talentoso escritor de A Baía dos Tigres (Lisboa: D. Quixote, 1999), romance já traduzido em mais de duas dezenas de línguas.

Recorde-se que o livro de estreia do jovem Pedro Rosa Mendes, então com 31 anos, é uma mistura de livro de viagens e de ficção. Em 4 meses, o autor fez 10 mil quilómetros, viajando por terra, de Angola à Contracosta, e seguindo o mesmo percurso encetado há mais de um século por Roberto Ivens e Brito Capelo. O livro obteve o Prémio Pen Club 2000.

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Fonte: Visão.online.pt (16.06.2005)

Guiné 63/74 - P59: Esquecer a Guiné...por uma noite! (Luís Graça)


Excertos do Diário de um Tuga. L.G.

Bambadinca,13.2.1971

Esquecer a Guiné

Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe (1).
As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios africanos
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
Uma a um,
Às tantas da madrugada.
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
Chamei-lhe a Operação
Da Noite das Facas Longas.

Esquecer a Guiné... por uma noite!
A matilha de bulldogs (ou cães grandes) (2)
Gozando as delícias do sistema
No ar condicionado de Bissau.
O pobre do Pastilhas (3)
Que, à hora do lusco-fusco,
Se torna um animal acossado pelo medo,
Rondando os abrigos subterrâneos.
Os olhos de gazela morta
Dos putos
Que andam à cata de comida
Nos bidões do lixo da tropa.
A bela futa-fula (4)
Fugida do harém
Do cornudo comandante de milícias.
Os milhões de unidades de penicilina
Que um gajo paga
Em troca do corpo quente de uma bajuda (5)
Que fode com um batalhão inteiro.
Os páras (6)
Que matam à queima roupa,
E ainda se dão ao luxo
De contar os impates,
Fotografar
E armadilhar os cadáveres do IN.
A histeria do Major Eléctrico (7):
"Ah, se sto fosse uma fábrica,
Seus sacanas!...
Eu despedia-vos a todos,
Cambada de malandros!"...
(Referia-se ao meu grupo de nharros
Que abriam trincheiras
No perímetro do aquartelamento de Bambadinca.
De tronco nu.
Com cinquenta graus ao sol
E 100% de humidade!...
Para o filho da puta
Poder dormir descansado,
À noite, na cama,
Sem o pesadelo de um turra
A entrar-lhe pelo quarto adentro,
Armado de Kalashnikov!).

Esquecer a Guiné... por uma noite!
O Escriturário que toca acordeão
E faz tatuagens
Em troca de umas bazucas(8).
O terror das crianças balantas (9),
Nascidas no mato (10),
Ao ouvirem pela primeira vez
O roncar das GMC (11).
O soro correndo nas veias exangues,
Aos borbotões,
Enquanto a gente aguarda a evacuação Y
E o helicóptero
Com um anjo salvador, lá dentro,
Que tem um rosto de mulher (12).
A Jocasta que vem reclamar os seus filhos,
Os feridos, não os mortos.
O médico que manda receitar Valium 10
Para os cacimbados (13)
E aspirina
Para os pretos.
As lâminas de aço dos rockets (14),
Esventrando os corpos.
O braço decepado, com a tatuagem
Em que ainda se podia ler
... Amor de mãe.
O nosso cabo, casado e pai de filhos,
Que há meses enfia no bucho,
Ao mato-bicho,
Uma bazuca e uma banana
Com a secreta esperança de,
Um dias destes,
Ainda poder ser evacuado a tempo,
Para Lisboa
Com uma hepatite qualquer
(A, B, C ou Z, tanto faz).
E quanto mais amarelo melhor,
Desde que apanhes uma doença,
Transmissível,
Infecto-contagiosa,
Irreversível,
Horrível,
Daquelas que vêm no cardápio
Dos serviços de saúde militar.
Que o hospital militar
De doenças infecto-contagiosas,
Em Lisboa,
E coisa boa,
É a melhor estância de férias do mundo!,
Garante o safado
Do nosso cabo enfermeiro Faleiro,
Num postal ilustrado da capital do Império.
Foi a nossa primeira baixa oficial,
Se não me engano.
Um herói, pouco ortodoxo,
Vítima da hepatite!

Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.
Mas aos catorze anos
Tu já sabias desta guerra;
Aos dezasseis, que não havia escapatória;
E, aos dezoito,
Que já estavas apanhado na rede
Como um cão...
Tudo somado vais fazer
Trinta e três meses (!)
De vida militar
(Vinte e dois na Guiné!),
Se é que chegas são e salvo
Ao próximo mês de Março
De mil novecentos
E setenta e um.
E que até lá chega finalmente,
O teu salvador,
O teu periquito (15),
O desgraçado que te vem render.

Esquece a Guiné, meu tuga.
A guerra.
A aprendizagem da morte.
A inocência
Que se perde para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem,
Ao nosso lado.
E a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
Os restos dos cadáveres humanos.
Descansa em paz,
Ieró Jaló,
Soldado atirador nº 812117869,
Da 3ª secção do 1º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
(Mais tarde CCAÇ 12).
Descansa em paz, djubi,
Debaixo do poilão da tua tabanca,
No chão fula....
Belíssimo poilão
De uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Oito de Setembro
De mil novecentos
E sessenta e nove.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha.
Organizado.
No assalto a um aquartelamento do IN.
Estupidamente.
Morto por um dilagrama.
Por um dos nossos.
Um dilagrama nosso
Que explodiu na tua cara.
Nunca soube a tua idade.
Mas eu levei-te a enterrar
Na tua aldeia.
Com honras militares,
Tiros de salva,
Discursos patrioterios
E a bandeira verde-rubra
Dos tugas
Por cima do teu caixão.
Chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
O Malan Mané,
Que também ficou gravemente ferido.
Tu, que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Eras apenas um soldado-atirador
De 2ª classe.
Não eras turra, eras uma nharro.
Mas, para mim, eras apenas um homem.
O que primeiro que vi morrer a meu lado.
De morte matada.
Nunca mais chorei por mais ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jaló.
De raiva.

Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses (16) batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte...

O capim.
O capim alto.
A seara da savana arbustiva.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue
Na mata.
Os panfletos de acção psicológica
Que não chegaram ao seu destinatário.
Espalhados pelo pânico de uma emboscada.
Um velho recorte de jornal,
Encontrado num acampamento do IN,
Com a fotografia de Che Guevara
Na Guiné em 1965.
A propaganda revolucionária.
Multiplicar as Guinés e os Vietnames.
Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador (17),
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão (18)
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro.

Esquecer a Guiné... por umas horas!
O jogo da roleta russa de ir e voltar,
De Bambandica ao Xime.
Numa lata de uma autometralhadora Daimler.
Só tu e o condutor.
Desenfiados.
Mais o Tchombé,
A mascote da companhia, o puto.
Sem escolta nem picagem.
Sem conhecimento de ninguém.
Só para ires beber uma cerveja.
Só para matares o tédio.
Só para desafiares o medo.
Ou para exorcizares os teus fantasmas.
Por pura estupidez.
Ou por simples bravata.

Esquecer a Guiné...
O Básico (19)
Que tem alucinações
E vê elefantes à noite
Junto ao arame farpado.
A história que te contaram,
Do tipo de Guileje (20)
Que deu em doido,
A pescar peixes dentro de uma tina.
O proxeneta do Vermelhinha (21)
Que comprou uma bajuda
E pô-la a render.
As alfaces que crescem, viçosas,
No antigo cemitério (22) de Bambadinca.
O furriel felupe (23), caçador de cabeças.
O Uloma, coma s trinta e tal cabeças,
Conservadas em frascos de álcool.
O negócio que o nosso barbeiro e fotógrafo fez
Com a horrível foto de uma cabeça,
Cortada à catana.
A cabeça de um pobre camponês
Que lavrava a sua lala.
No sítio errado, à hora errada.
A derradeira salada de atum, cebola e tomate
E o derradeiro copo de vinho verde
Que se partilha com um camarada e um amigo.
Um homem que vai morrer.
À hor marcada.
Dentro de três ou quatro horas.
Em vinte e seis de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Qualquer um de nós,
Que está aqui à volta da mesa,
Pode vir a morrer
Na próxima hora.
Na próxima operação.
Por que há sempre uma hora
Para morrer.
De um tiro no coração,
De um roquetada,
De uma mina antipessoal,
Da explosão de uma granada de morteiro...
O jovem capitão de artilharia,
Vinte e quatro anos,
Acabado de sair da Academia Militar,
Que se recusa a sair com os seus homens
Para a Ponta do Inglês (24),
[Depois do desastre
De 26 de Novembro de 1970] (25).
O filho da puta do segundo comandante
Que lhe manda dizer, alto e som:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
Nem que seja a reboque de uma GMC!"...

Meu Deus,
Que pedaço de inferno foi este
Que me coube em vida, na terra ?
__________

Notas (L.G. / Lisboa. 25 de Abril de 2005):

(1) Sinchã Jobel, Zona de intervenção do Comandante-Chefe, a norte do Rio Geba, sob controlo da guerrilha (ou IN, abreviatura de inimigo)
(2) Designação depreciativa do pessoal militar afecto ao Comandante-Chefe, em Bissau.
(3) Referência à figura do enfermeiro militar.
(4) Uma das etnias da Guiné, aparentada com os fulas. Em geral, as mulheres futa-fulas eram de uma grande beleza.
(5) Rapariga, mulher solteira (por oposição a mulher grande, casada).
(6) Diminuitivo de tropas paraquedistas
(7) Alcunha de um célebre major, segundo comandante do Batalhão sedeado em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70) (se a memória me não falha).
(8) Garrafa de cerveja de litro. A sua forma cónica na parte superior sugeria uma granada de RPG (bazuca).
(9) Uma das principais etnias da Guiné de onde eram recrutados muitos dos combatentes do PAIGC.
(10) Em linguagem de caserna, mato significava território fora do controlo das NT (nossas tropas). Também possou a quer dizer "muito", "bué"...
(11) Viaturas de transporte militar, de fabrico norte-americano (General Motors Company), de grande potência e de elevado consumo de combustível.
(12) Enfermeira paraquedista.
(13) Vítimas do stresse de guerra. Também conhecidos por "cacimbados" "apanhados do clima". O termo stresse ainda não fazia parte, na época, do nosso vocabulário (e muito menos a expressão stresse pós-traumático de guerra).
(14) Granadas-foguetes. Os RPG (rocket-propelled grenades), de fabrico russo ou chinês, eram uma das armas mais timídas pelas NT, em situações de combate como as emboscadas.
(15) Alusão à farda, novinha em folha, dos novatos que nos vinham render (A generalidade dos quadros da CCAÇ 12 eram de origem metropolitana e de rendição individual).
(16) Fogo de artilharia lançado a partir dos aquartelamentos das NT (ou unidades de quadrícula). Em geral os obuses eram de calibre 105 mm (de 140 mm, os de maior alcance).
(17) O picador tinha a difícil tarefa de detectar minas (antipessoais ou anticarro) nos trilhos e nos caminhos utilizados pelas NT. Não havia detectores de minas com sensores electrónicos. Apenas um pau com um prego de ferro aguçado na extremidade. Os picadores, tal como os guias, pertenciam, em geral, às milícias africanas. A sua taxa de mortalidade era altíssima.
(18) Muito (manga) dinheiro (patacão).
(19) Soldado afecto apenas às actividades de apoio logístico (por ex., cozinha, faxina), por oposição ao operacional (soldado-atirador).
(20) Tristemente famoso aquartelamento no sul, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, que acabaria por ser evacuado e abandonado pelas NT, tal como Gadamael, em meados de 1973. Já no meu tempo estes dois nomes eram míticos, a par de Madina do Boé, entretanto abandonada.
(21) Soldado que era especialista em jogar à vermelhinha (jogo de azar, com três cartas).
(22) Alusão a uma vala comum do cemitério do posto administrativo de Bambadinca onde terá havido muitas execuções sumárias, de balantas, beafadas e outros, no início da guerra (1963/64, segundo relatos dos mais velhos dos meus insuspeitos soldados fulas).
(23) Felupe, uma das muitas etnias da Guiné, da zona de Constava-se, no meu tempo, que os felupes ainda praticavam a necrofagia, uma forma de canibalismo ritual. Este tristemente famoso furriel (Uloma, de seu nome, se a memória me não falha) pertencia à 1ª Companhia de Comandos Africanos.
(24) Local sito na confluência dos Rios Geba e Corubal, na região do Xime.
(25) Referência ao Capitão da CART 2714 (unidade de quadrícula do Xime, envolvida na trágica Op Abencerragem Candente).


Post scriptum

Amigos e camaradas:

Já tinha publicado isto em 25 de Abril último… Mas agora republico-o, com alterações. Há dados novos, como por exemplo, a chegada do nosso camarada A. Marques Lopes… Como vêem, a famigerada Sinchã Jobel do Alferes Lopes (CART 1690, Geba, 1967) era terra de ninguém no nosso tempo... Três anos depois de ele ter passado uma noite, perdido, na toca do lobo (Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967).

Alguns de vocês vão-se reconhecer neste texto, escrito já quase no final da minha/nossa comissão, em Fevereiro de 1971... O Humberto Reis e o Tony Levezinho vão, decerto, rever-se nesta espécie de poema e reconhecer tipos e lugares... A começar pela Op Noite das Facas Longas cuja missão era abater todos os cães de Bambadinca até o desgraçado do nosso animal de estimação (esqueci-me do nome do bicho)... Embora eu não tenha dado um tiro, confesso que ia no jipe com os executantes do massacre... Os malditos cães, esfomeados, não nos deixavam dormir... Como vêem, o stresse físico e psíquico era muito e desta vez deu-nos para isto...

Mas podia ter acontecido um outro Wiriamu (o massacre perpretado pelas NT, em Moçambique, em 1973, contra a população da aldeia de Wiriamu), é assim muitas vezes que acontecem estas coisas no teatro de operações...

Felizmente que sempre fomos militares correctos e ponderados (refiro-me aos quadros e soldados das CCAÇ 12, no período de 1969/71). Tirando este gesto de crueldade para com os pobres dos animais, julgo que nenhum de nós tem a consciência pesada, como tuga, como homem, como militar...

O Humberto e o Tony vão de certo reconhecer o Vemelhinha, o Fotógrafo, o Básico, o Pastilhas, o Cabo Faleiro, o Escriturário do acordeão e das tatuagens, o Iero Jaló (o nosso primeiro morto, se bem que eu não refira o apontador do dilagrama que o matou e que era um dos nossos...), o jovem Capitão do Xime, o 2º comandante (esse mesmo de outras merdas grossas, como a do macaréu, em que morreram três camaradas no Geba, referidas pelo Sousa de Castro e pelo Luís Carvalhido…).. Mas havia outras figuras que ainda hoje figuram no meu museu dos horrores e da comédia humana: o Major Eléctrico, o Furriel Felupe Uloma, e outras personagens trágico-cómicas que eu refiro no texto...

De qualquer modo, façam como eu: esqueçam a Guiné...por uma noite!

quarta-feira, 15 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P58: Homenagem a três homens excepcionais que partiram (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968):

Caros amigos:

Permitam-me que deixe aqui, perante vós, a minha homenagem, consideração e admiração, bem como a saudade, sentidas por três homens excepcionais que partiram: Vasco Gonçalves, Eugénio de Andrade e Álvaro Cunhal.

Conheci os três em circunstâncias diferentes, mas guardo de todos a melhor recordação. Tive o privilégio de conhecer Eugénio de Andrade quando tive, mais de uma vez, de me deslocar a sua casa para com ele tratar de livros (fui um dos fundadores da editora portuense Campo das Letras); foi um homem de grande simpatia e amabilidade e um poeta dos maiores.

Conheci Vasco Gonçalves nos idos tempos da revolução, dei o seu nome ao meu filho, que nasceu em Junho de 1975, e ele deu-me a honra de o receber em sua casa; foi um revolucionário convicto, um homem sincero e honesto com um coração bom onde todos cabiam.

Conheci Álvaro Cunhal em certas situações durante o período revolucionário; uma inteligência excepcional, de uma objectividade e coerência como poucos, um revolucionário convicto e amigo do povo português.

Três perdas grandes, que quero lembrar, no dia em que o último foi a enterrar. A memória deles ficará, com toda a certeza, ligada àquilo que somos, ao país que queremos construir.

Grande abraço.
Marques Lopes

Guiné 63/74 - P57: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga. L.G.


Bambadinca. 1 de Dezembro de 1969

Registam-se agora as temperaturas mais baixas do ano nestas paragens tropicais. Eu próprio não imaginaria que iria tiritar de frio nesta terra, emboscado, à noite, com os meus homens, sob um temperatura de 15º.

À noite, os africanos acendem fogueiras à porta ou no interior das suas pobres tabancas de colmo. A chuva dá lugar ao cacimbo. É o início da estação seca.

Entretanto, os negros islamizados (fulas, futa-fulas, mandingas, beafadas...) acabaram de celebrar o Ramadã. Um mês de jejum e oração culmina na grande festa colectiva em que o batque é a expressão viva do ritmo interior, da alegria física e do sentido lúdico do homem africano. Reconheço que não foi um mês fácil para os meus soldados.

Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970

O Cherno Rachid é a autoridade máxima do Islão na Guiné. De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo.

0 ascendente que ele tem sobre a população islamizada da Guiné, confere uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão).

Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação.

Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!

Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.

Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!

Post scriptum

Lisboa, 16 de Junho de 2005

Amigos e camaradas:

Nunca fui a Aldeia Formosa (aliás, Quebo, para os guinéus). No nosso tempo não dava para fazer ecoturismo, como vocês muito bem sabem... Mesmo assim cheguei a conhecer o famoso Cherno Rachid, de acordo com os papéis que desenterrei do baú…

Falei pelo telefone com o José Carlos Mussá Biai… Tem estado fora, a fazer trabalho de campo. Ele trabalha em cartografia, no Instituto Geográfico Português. Teve irmãos na tropa em Farim. Vai mandar-nos documentação para a nossa página. Já falou com o seu professor do Xime, o Carvalhido da Ponte. Mas nunca mais teve notícias dos outros professores que vieram a seguir, o furriel Osório da CCAÇ 12 (que estava no Xime em 1973) e da esposa. Alguém tem notícias desta malta ?

O José Carlos, o djubi do Xime (como lhe chama carinhosamente o Sousa de Castro), e que é mandinga pelo lado do pai, diz-me que cherno em fula quer dizer tio… Eu tinha ideia que cherno era o termo usado para designar um chefe religioso muçulmano… Mas a verdade é que há nomes próprios, fulas, que começam por Cherno: nós próprios, na CCAÇ 12 (1969/71), tínhamos dois soldados de nome Cherno Baldé…

Em conclusão, o Cherno Rachid, de Quebo (que já deve ter morrido, pela ordem natural das coisas,não me tendo constado que tivesse tido problemas com as novas autoridades saídas da independência, apesar de não gozar das simpatias do PAIGC), não era mais do que o Tio Rachid...

Guiné 63/74 - P56: Notícias da CCAÇ 12 (Xime, 1973/74)

1. Pergunta o Luís Carvalhido (CCS/BART 3873, Bambadinca, 1972/74):

9 de Junho de 2005:

" (...) uma vez que temos aqui gente da CCAÇ 12, será que alguém se lembra do Furriel Alfredo Guerreiro e do Furriel Domingos? O baixinho e o lavrador respectivamente? Um Vianense e outro (como se chama um natural de Leiria?) Leiriense?

Um dia conto um episódio que passei com o Domingos, quando descemos o Geba de zebro, numa operação de busca, que passou pelo Mato Cão, até que fomos apanhados pelo macaréu. [Este episódio já foi evocado pelo Sousa de Castro, em 22 de Abril de 2005].

2. Responde o Humberto Reis (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71):

14 de Junho de 2005:

Luís Carvalhido: No tempo em que estive na CCAÇ 12, até Março de 1971, não existia lá nenhum furriel miliciano com esses nomes, Alfredo Guerreiro ou Domingos. Havia da zona de Leiria, mais propriamente dos Pousos, um Fur Mil Arlindo Teixeira Roda, que agora vive em Setúbal, onde é, ou foi, professor numa das escolas secundárias. É o que posso ajudar, em relação a esse tempo.

3. Nova pergunta do Luís Carvalhido:

15 de Junho de 2005:

Caro Humberto Reis: Estiveste lá no tempo daquele capitão que andava sempre com um pingalim e a quem, creio, chamavam de Salta-me a Tampa? Penso que se chamava Bordalo e esteve a liderar o processo pós-25 de Abril no BC 9 em Viana do Castelo.

Quanto ao Furriel Guerreiro, era um homem muito baixinho de quem os africanos (lembras-te do Suleimane Baldé, aquele fula magrinho, todo gingão ?) diziam que em combate nunca se aninhava porque as balas passavam por cima.

Quanto ao Domingos, apenas me lembro que comandou uma operação de má memória (fomos apanhados pelo Macaréu) e na qual eu participei. Lembra-me que lhe passei o rádio para ele falar com o major de operações, que estava muito preocupado em saber se tínhamos metido o motor do zebro dentro de bordo e que nem sequer perguntou se tínhamos alguma baixa. A resposta do Domingos (se calhar ele já nem se lembra dela, eu nunca mais a esqueci) não a vou publicitar porque faria corar o mais desavergonhado de todos nós.

4. Resposta do Humberto Reis:

Luís Carvalhido, Bom Dia!

O capitão da CCAÇ 12, no meu tempo, Maio de 69 a Março 71, era o Carlos Alberto Machado de Brito, que em Janeiro de 71 foi promovido a major.

Esses dois furriéis, Guerreiro e Domingos, já não são do meu tempo.

Os únicos capitães que conheci antes e depois do 25 de Abril foram o Delgado da Fonseca que era o comandante da companhia de instrução de Rangers no CIOE de Lamego, em Outubro de 68 e, mais tarde, o Vasco Lourenço, nas Caldas, enquanto dei lá uma recruta ao CSM, de Janeiro a Março de 69, e que não acabei pois fui mobilizado pelo RI 2 e apresentei-me em Santa Margarida. Em 24 de Maio marchei para Lisboa onde embarquei num Cruzeiro de Luxo a bordo do Niassa para uma férias em regime de TI + (quer dizer Tudo Incluído + Porrada) num destino paradisíaco conhecido como Guiné.

Enfim, Recordar É Viver!

Um abraço.
Humberto Reis

segunda-feira, 13 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P55: Notícias do Cacheu (1)

1. Tertúlia de ex-combatentes da Guiné, que até agora só inclui malta de 1967 a 1974... Mas a guerra começou bem antes: Janeiro de 1963, oficialmente. De qualquer modo, actualizem, por favor, a vossa base de dados:


Afonso M.F. Sousa (Maceda, Ovar)

- Ex-furriel miliciano, de transmissões, da CART 2412 (Agosto de 1968 / Maio de 1970);
- Esteve em Bigene, Binta, Guidage e Barro.

Um pelotão da CCAÇ 3 (onde também esteve, em 1968, o nosso camarada A. Marques Lopes) reforçou a CART 2412, quando esta se instalou em Guidage. Esse pelotão era comandado pelo Alferes Gonçalves.

Esta CART 2412 integrava-se no COP3 (comando do Major Correia de Campos, em Bigene).

O COP 3 constituia uma quadrícula militar de vários agrupamentos a norte do rio Cacheu, entre Barro, a Oeste, e Guidage (Farim), a Nordeste. Comportava unidades do Exército e da Marinha, estas estabelecidas na base fluvial de Ganturé (Fuzileiros navais, sob o comando de Alpoim Calvão), junto ao Rio Cacheu, cujo ancoradouro dá saída para Bigene (2,8 Km, para Norte).

O COP 3 tinha por missão fundamental a eliminação ou amputação dos corredores entre a faixa fronteiriça do Senegal e as densas (e quase impenetráveis) matas do Óio, em cujo coração se situava a base do PAIGC, de Morés.

Afonso M. F. Sousa

2. Correspondência entre o Afonso M.F. Soua e o A. Marques Lopes:

8 de Junho de 2005:

Caríssimo Coronel A Marques Lopes: Foi por uma lista na Net que localizei o Alferes Gonçalves. Como se referia à CCAÇ 3, contactei-o telefonicamente, para lhe perguntar se conhecia Guidage.

Surpreendentemente a resposta dele foi esta: acompanhei a vossa companhia (CART 2412) no trajecto Binta-Guidage, quando vocês se deslocaram para lá pela primeira vez. Comandava um pelotão da CCAÇ3 que ficou em Guidage como reforço da vossa CART.

Eu (talvez pelos 37 anos que decorreram ?!) não estou a ver a cara dele, mas o facto é que ele e eu estivemos na mesma coluna, rumo a Guidage (1968). Ainda fomos surpreendidos a pouco mais do meio do trajecto, no sítio do Cufeu, por tiros sentidos na floresta de uma e da outra banda do caminho.

Ele sabe da história da perda do nosso comandante (o Capitão Miliciano António Dias Lopes), logo nos primeiros dias, naquela terra de fronteira com o Senegal. Logo no início aterrou lá de surpresa o Spínola. Depois da rápida formatura na exígua parada, saíram-lhe estas palavras dirigidas ao capitão: "O senhor é indigno de estar à frente destes militares...o senhor prepare-se e vai já comigo para Bissau"

Viria a ser castigado com despromoção (tenente) e eventualmente com outras consequências que não conheci. Isto resultou do envio, por um soldado, de um aerograma para o General Spínola, queixando-se que estavam a passar fome, visto que o capitão se esquecera de solicitar o reabastecimento. O que valia eram as minúsculas galinhas que comprávamos na tabanca.

Por acaso ainda me lembro que, após o destroçar, de forma menos formal o General Spínola me perguntou:
- Meu militar, precisa alguma coisa para transmissões ?
Ao que eu lhe respondi:
- Precisamos de substituir a antena, meu General.
Passados uns dias essa antena lá apareceu.

2. Resposta do A. Marques Lopes, na mesmam data:

Amigo Afonso Sousa: Já deve ser a não sei quantas vezes que digo isto, mas vou voltar a repetir: é mesmo muito pequenino este nosso mundo (e há-de ser mais pequeno cada vez que um de nós morrer).

Através do contacto que me deste, falei com o Alferes Gonçalves e conheci-lhe logo a voz: é mesmo esse que esteve comigo em Barro. Contou-me que o General Spinola, em certa altura, decidiu que os metropolitanos deveriam estar dois anos na CCAÇ 3, como nas outras companhias. Foi o que sucedeu com ele, que tinha vindo da metrópole directamente para lá.

Diz que vem frequentemente ao Porto e combinámos já um encontro. Falou-me de outros que eu também lá conheci e que tinham feito um encontro no dia 28 de Maio passado!!... Cheguei à conclusão que tenho de ver os programas de chacha da televisão: é que deram notícia num deles, em rodapé, da realização desse encontro.

Falou-me [também] do furriel Folha, que eu bem conheci, e que mora em Matosinhos, afinal perto de mim. Vou-me encontrar com ele na segunda-feira próxima. E o Folha disse-me que há vários soldados da CCAÇ 3 que estão em Portugal! Fantástico!!! Obrigado, grande amigo, por me encontrares esta ponta que já tinha perdido!

Quanto a Barro, é como dizes: há todos esses edifícios, mas uns destruídos e outros abandonados. Só de um deles saíu um indivíduo vestido à ocidental e que se juntou a mim e ao meu acompanhante, quando lá estive em 1998. Era um funcionário governamental. Deu-me ideia que esse foi aproveitado, creio que era o da secretaria, os outros não só não tinham sido aproveitados como a população de Barro continuava nas suas moranças, deles afastada.

Infelizmente, caro amigo, constatei com pesar que a população de Barro vivia muito pior do que quando lá estava a CCAÇ 3. Retrocesso, portanto. Se calhar, fizeram manga de ronco quando o Ansumane Mané se rebelou... E agora? Estarão diferentes? Continuo a pensar que não, infelizmente.

Quanto ao Cacuto , a conversa era simples:
- Cacuto, com qual vais dormir esta noite?... Então e as outras, como é que é?...

Tu e os outros camaradas acabem com o coronel. Óscar Kilo? Não faz sentido.
Um abraço. A. Marques Lopes

4. Nova mensagem do Afonso Sousa, a quem agradeço por nos trazer mais um amigo e camarada para a nossa tertúlia, o ex- Alferes Miliciano Gonçalves, da CCAÇ 3 (telefone nº 259 326 426, telemóvel > 914 200 318):

9 de Junho de 2005:

Caro amigo António M. Lopes: O Alferes Gonçalves não tem ligação por e-mail, mas ficou de me ligar para nos fornecer o endereço de e-mail de um sobrinho, que nos servirá transitoriamente.

Podemos servir-nos da sua frescura de memória para recolhermos alguns relatos e testemunhos da sua permanência naquelas paragens difíceis de Guidage (tabanca isolada, no risco de fronteira com o Senegal).

Guiné 63/74 - P54: Cacuto Seidi, chefe da tabanca de Barro (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), hoje coronel (DFA) na situação de reforma:

O Cacuto Seidi era o chefe da tabanca de Barro em 1968. Era um espectáculo vê-lo andar de bicicleta só com uma perna... houve um dia em que foi mordido por uma cobra de palmeira e tiveram que lhe cortar a perna.

Muitas vezes fui até à sua porta para falar com ele. Por duas razões: a primeira é que suspeitávamos que ele estava feito com o PAIGC e eu tentava colher alguma informação de interesse, mas ele tinha esperto no cabeça e nunca se descoseu, até porque sabia que eu suspeitava dele; a segunda é que era quem tinha influência sobre as bajudas, além de que tinha cinco mulheres, e essas conversas foram sempre muito úteis... e proveitosas.

Em 1998 fui a Barro. Assim que me viu abriu a boca e disse admirado:
-Alfero Lopes!- Ao fim de 30 anos lembrou-se logo de mim, apesar de estarmos os dois mais velhos, de tal modo que quem me acompanhava ficou com a boca aberta de espanto. É que foi, de facto, muito tempo de convívio e de conversa.

Perguntei-lhe pelo Braima, um caçador da tabanca de Barro, muito conhecedor de toda aquela zona e que foi o meu guia em 1968, porque conhecia todos os trilhos e buracos quer na mata quer no tarrafe das margens do Cacheu. O Cacuto ficou atrapalhado e respondeu:
- O Braima mataram.
- Ah! - disse-lhe eu - mas tu continuas a ser o chefe da tabanca! Então, eu tinha razão... -. Acabou por se rir, é claro.

Barro não é nada do que era. A pista da Dornier não existe, está de tal modo cheia de mato alto que ninguém diria que alguma vez houve ali uma pista. As instalações da companhia estão completamente destruídas e também cobertas de mato. A única lembrança de alguma actividade militar era uma granada de morteiro detonada, do PAIGC com certeza. Foi tanta a miséria que vi que deixei ao Cacuto 20 CFA (moeda actual da Guiné-Bissau) para ele distribuir pelas famílias da tabanca.

A. Marques Lopes