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segunda-feira, 10 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24214: Manuscrito(s) (Luís Graça) (222): Circadiana, a vida




















Quinta de Candoz >  9 de Abril  de 2023 > Páscoa: a vida que sucede à morte.

Fotos (e texto): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 

Circadiana, a vida

por Luís Graça

Circadiana,  a vida!...
Depois do solstício do inverno, virá o solstício do verão
e aos dias suceder-se-ão as semanas, os meses, os anos.

Circadiana, a vida!...
Pior que o suplício do inferno
é o pavor do eterno retorno.
É a eternidade, dizem-te,
que nos move ou demove ou comove, 
a eternidade ou a sua cruel ilusão,
os seus sucedâneos terrenos, efémeros, 
a fama, a honra, a glória,
 a vaidade, o ouro, os diamantes,
o elixir da juventude, a beleza,
o amor até que a morte nos separe,
o poder, orgástico, de mandar matar e morrer
talvez a paternidade e o egoísmo genético.

Circadiana,  a vida!...
Afinal todos os anos é Natal
e todos os anos por aqui  passa(va) o compasso pascal.
Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou,
a vida triunfa sobre a morte.

Circadiana,  a vida!...
Todos os anos, com sorte…
Exceto quando deixaste a tua terra e foste para a guerra:
perdeste a noção do dia e da noite,
dos dias, das semanas, dos meses, e das estações,
que eram duas, a do tempo seco e a das chuvas.

Circadiana, a vida!...
Disseram-te que o velho general
esteve à beira da tua cama no hospital:
- É uma subida honra, para qualquer mortal,
a sua visita, meu general ! –
terás tu dito mas, por favor, e por pudor, não ponhas isso
no teu “curriculum vitae”.
Esquece a Guiné, camarada, meu herói,
e os pauzinhos que gravaste na parede da caserna,
na contagem decrescente para o fim da tua (co)missão.

Circadiana,  a vida!...
Quando eras jovem, tinhas um calendário perpétuo, 
na tua mesinha de cabeceira,
na secreta esperança de que os dias não tivessem 24 horas,
não tivessem noite, não tivessem fim.
Depois, deixaste de te fiar nas leis imutáveis da natureza
e, todos as manhãs, tomavas o lugar de Sísifo
e pegavas na tua pedra de granito,
montanha acima, montanha abaixo!

Circadiana, a vida!...
E, se Deus quiser, a primavera há de chegar, 
e c0m ela as cerejeiras em flor,
e os melros que vão pôr os seus ovos 
nos arbustos de alecrim no caminho para a leira cimeira,
e as andorinhas que irão reconstruir o seu ninho 
na varanda da casa de cima.

E trazem histórias de coragem,
as tuas andorinhas de torna-viagem,
vêm do norte de África, quiçá da Guiné,
e não precisam de passaporte,
nem de GPS, nem de código postal, nem de carimbo das alfândegas.
São heroínas, sobreviveram a mais um ano,
fogem da guerra, e das alterações climáticas,
sem o aval nem a ajuda do alto comissário para os refugiados,
ou a benção dos imãs 
e dos demais representantes de Deus na terra.

Circadiana,  a vida!...
E todos os anos fazes anos
e haverá sempre um bolo de aniversário
e uma vela para soprares.
E oxalá nunca te falte à mesa
quem te cante os parabéns a você.
Mas o que é que tu sopras, afinal,
meu pobre feliz aniversariante ?
Sopras a vida, sopras a vela da vida, de fio a pavio!

Circadiana,  a vida!...
Até as almas têm estados, dizem-te, circadianos,
estados de alma, bipolares,
ora de euforia ora de depressão,
socalco acima, socalco abaixo...
Afinal, tão certo como dois e dois serem quatro,
à noite sucede o dia, 
e não há lua sem sol, nem maré alta sem maré baixa!

... Nem a morte sem  a vida.
Mas chorarás sempre  os teus mortos, 
até que as tuas lágrimas te sequem.

Circadiana, a vida, meu amor!...
A vida é pura repetição,
é o teu coração que bate forte, até à exaustão,
até a gente queimar a vela, de fio a pavio.

Circadiana,  a vida!
Carpe diem, meu amigo:
ora sabe a muito, ora sabe a pouco,
... a vida, sempre, armadilhada,
presa por um fio de tropeçar.

Última versão, Candoz, 9 de abril de 2023
___________

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24202: Manuscrito(s) (Luís Graça) (221): Boas e santas Páscoas, nós por cá... todos bem!

 

Quinta de Candoz > s/d > Visita do compasso pascal...


Joana Graça (2014) - Técnica mista, 30 x 40 cm. S/ título

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


A Páscoa em Candoz: 
no tempo em que ainda estávamos todos vivos, 
e felizes, e de boa saúde
 

À Nitas (que era a deusa do lar  
e a oficiante da liturgia de Candoz);

À Joana (que hoje faz anos, e que desde pequenina gostava 
de brincar com a fada Oriana em Candoz);

À Chita (que é a mãe da Joana,  a "alma gémea" da Nitas 
e a minha feiticeira  de Candoz);

Ao Gusto (que há 49 anos, em 6/4/1974, se casava com a sua "Nita"
 e que, por amor, se tornou o senhor "engenheiro" de Candoz, 
agora inconsolado e inconsolável com a perda 
daquela que era "mais de metade" do seu ser)

 

Quinta de Candoz > c. 1999 >Os manos e sócios, da esquerda para a direita: Chita (Alice), Nitas (Ana) (1947-2023), Zé e Rosa


Era  domingo de Páscoa na aldeia. 
Fazia frio mas o sol estava esplêndido. 
Era um daqueles dias 
em que a gente  se reconciliava  com a vida. 
Nem que fosse por uns breves instantes. 
Com a vida, mas não necessariamente 
com o mundo. 
Como o Eça e o seu príncipe Jacinto, 
em Tormes, ali ao lado, 
do outro lado do vale,
à volta de um copo de vinho verde, branco,
 de umas cebolinhas do talho 
com presunto ou salpicão.
(Não havia favas, em Candoz, 
havia as ervilhas de quebrar.)

A manhã, primaveril, trazia-te 
os sons, as cores e os cheiros do campo.
Um outro campo que não o mesmo 
da tua infância da Estremadura. 
Descobriste, tarde, esta parte 
do Portugal sacroprofano
que era mais pagão, celta, visigótico e românico 
do que fenício, romano, judeu, mouro ou gótico.

Um citadino, como tu, não sabia 
o que era isso de ouvir, 
logo pela manhã, 
os galos a cantar nos seus galinheiros. 
Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor. 
Ou observar os melros de bico amarelo 
pousados nas videiras 
que desabrochavam, em gamões.


Quinta de Candoz > s/d > O pôr do sol nos montes (aqui chamam montes aos pinhais, onde outroram cresciam carvalhos e castanheiros)


Um citadino como tu 
não tinha o privilégio de ouvir falar dos gaviões 
nem das suas frágeis presas. 
Nem sabia por que autoestradas andavam 
as toupeiras, os ouriços-caixeiros 
e as raposas deste país. 
Nem por que razão falavam alto e bom som 
aquelas gentes de além-Douro. 
Nem o seu gosto desmedido pelo fogo 
que ribombava como o trovão.

Nos campos de erva, de diferentes tonalidades de verde,
eram  visíveis as partes  cortadas para as ovelhas, 
entáo recolhidas nas cortes, 
à medida que os gamões das videiras 
cresciam a olhos vistos.

Na grande matança da Páscoa, 
o inocente que era sacrificado, 
era o cordeiro, o anho
o ex-libris da gastronomia da região. 
Já fumegabvam as chaminés 
enquanto ao longe se ouvia
o estralejar dos foguetes. 
O compasso pascal andava por aí, 
alvoraçado como a canalha
já vinha no Alto, já chegava ao Cruzeiro, 
com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e estradões
e exorcizando os medos ancestrais.

In hoc signo vinces
Com este sinal vencerás. 
Desde Constantino, o Imperador, 
que a cruz marcava a vida dos servos da gleba 
e depois os cabaneiros, os rendeiros e os camponeses,  
do nascer ao morrer. 

 Levava dois dias a percorrer a freguesia. 
A cruz, o Cristo pregado na cruz, 
o compasso, 
os homens da opa vermelha 
e o menino da sineta, 
de sobrepeliz branca como o anjo. 
Pouco mais de mil almas 
e algumas escassas centenas de fogos, 
dispersos, a visitar:
"Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!", 
proclamava o homem da opa vermelha, 
o mordomo da festa sacroprofana,
que fazia as vezes do padre.

Em frente o vale e a montanha. 
A linha do Douro.
O rio Douro ao fundo. 
Pacificado,
onde já não chegava o sável e a lampreia,
nem o barco rabelo com o néctar dos deuses.

Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever 
A cidade e as serras.
Havia ainda um mundo a desmoronar-se. 
E testemunhas vivas desse mundo. 
O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres 
que decidiram trocar o arado
e as juntas de bois
e a rega do milho
pela linha de montagem automóvel 
ou pelos chantiers da construção civil 
nos arredores de Paris
ou pelas as fábricas do Porto.


Quinta de Candoz > s/d > A preparação do anho... Ainda a Maria da Graça (1922-2014) (à esquerda) era viva... Veio do Sul em visita aos do Norte. A meio a Alice (Chita) e, à sua esquerda, a cunhada Maria (Mi).


Já havia a barragem do Carrapatelo, 
e as suas eclusas,
as antenas das telecomunicações 
e os moínhos eólicos no alto das serras. 
E o Mercedes de matrícula K.
E o alcatrão. 
E os telemóveis.
E as casas do granito 
arrancado às pedreiras de Alpendorada.
O progresso cobrava o seu preço,
a globalização também. 
Estradas e estradões tinham esventrado 
o cenário bucólico 
que outrora escondia a miséria dos casebres 
dos cabaneirosos mais pobres dos pobres. 

O Zé do Telhado já há muito que morrera, 
desterrado em Angola, 
mas ainda continuava vivo 
nos telhas vãs da memória
das gentes dos vales do Sousa e Tamega
Os netos dos antigos senhores, os fidalgos
proprietários agrícolas absentistas 
do Porto e da Foz do Douro, 
recuperavam as casas dos caseiros 
e faziam delas a sua casa de campo. 
Com piscina e court de ténis. 

O povoamento continuava disperso 
pelo verde e pelos socalcos. 
Os montes estavam carecas 
depois das últimas décadas de incêndios. 
Já há muito que regressara
o último soldado das colónias 
e se escrevera o último aerograma
a dar conta do fim do Império.
Os brasileiros tinham dado lugar 
aos franceses.
E o Porto ali tão perto. 
Cada vez mais perto 
com as autoestradas, as IP e as IC  do país motorizado.

Um mundo quase perfeito, visto da janela do teu quarto. 
Domingo de Páscoa, de manhã. 
Faltavm-lhe só, porventura, os camponeses, 
que morreram. 
E os que emigraram. 
E os que não voltaram. 
E os soldados que morreram, de morte matada,
nas guerras do passado.
E os que morreram, mal haviam nascido. 
Que as famílias eram numerosas 
mas a mortalidade infantil altíssima. 

Passavas os olhos 
pelas paredes da casa, de grosso granito. 
Já tinham albergado 
sete, oito ou mais gerações, 
que os seus registos só iam até 1820. 
Não era nada, se quando sabias  
que os australopitecos, teus antepassados, 
tinham evoluído há 5 milhões de anos, 
200 mil gerações atrás.


Quinta de Candoz > s/d > O fogo, depois do recolher do compasso pascal


No virar do milénio, 
na madrugada do século XXI, 
Cristo continuaria a ressuscitar 
todos os anos, pela Páscoa, 
no Entre-Douro e Minho da tua aldeia
E os cristãos poderiam ver abalada a sua fé,
mas  continuariam a reunir-se 
em casa uns dos outros 
para comer o agnus Dei com arroz de forno. 
E para celebrar o milagre da vida, 
a vitória da vida sobre a morte.

Há quinhentos anos que se deitavam foguetes 
nas vilas e aldeias do teu Portugal sacroprofano. 
Não sabias nada da história do fogo de artifício, 
sabias apenas que viera da velha China 
com as naus quinhentistas. 
Para celebrar a ressurreição de Cristo, 
ou mais prosaicamente para fazer a festa. 
Que era a vitória sobre o trabalho, 
tripaliu(m) que matava a gente. 
E para marcar o tempo, o fluir do tempo, 
o solstício do inverno e do verão, 
a inexorável usura do tempo.

E todos os anos pela Páscoa, 
tu, descendente de austrapolitecos, 
assistias da tua varanda de granito 
à alegria infantil
 dos camponeses durienses, mortos há muito, 
face à orgia de fogo que assinalava, 
em cada freguesia, 
o recolher do compasso pascal. 

Da tua janela vias o mundo 
ou uma parte dele, mesmo ínfíma:
Paredes de Viadores, Mesquinhata, 
Santa Leocádia, Grilo,
Porto Antigo, Paços de Gaiolo... 
Estes nomes, medievos, passariam a ser-te familiares. 
E as serras à volta do teu presépio: 
Montemuro, Aboboreira 
e, mais ao longe, Gralheira, Meadas, Marão, 
separadas pelo vale do Douro... 
Em 2004, os de Paços 
é que lançaram o fogo mais vistoso:
"Dois mil contos de réis!"!,  
diziam as gentes da terra, 
ainda incapazes de raciocinar em termos de euros, 
dos milhões de euros do novo Brasil da Europa. 
Capricharam, os de Paços de Gaiolo, 
mas também era verdade 
que eles tinhamo dobro dos fogos 
da tua adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.


Quinta de Candoz > s/d > Azevinho


Da janela do quarto da aldeia 
que tu também havias feito tua, 
só não podias ver o mar. 
E fazia-te falta o mar, confessavas.
O mar.
A maresia. 
O azul. 
O rugir do grande oceano Atlântico.
E o pôr do sol no mar. 
Na exacta e nítida linha do horizonte. 
E a silhueta do cabo Carvoeiro 
e das Ilhas das Berlengas.

Ah!, quanto falta nos fazia o mar, 
ó Sofia, deusa grega antiga.
Mas a hora não pensar nele, no mar. 
Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia. 
Naqueles domingos de Páscoa de Candoz , 
se te era legítimo ter um pensamento,
de admiração e agradecimento, 
ele ía direitinho para os antepassados 
que desbravaram Candoz 
e ergueram solcalcos e muros de pedra
em antigos montes de carvalho e castanheiro
sem esquecer os teus australopitecos 
que nunca terão chegado a estas terras  
de Candoz e de Fandinhães, 
parte do concelho, extinto em 1836, 
a que os antigos, pobres diabos, 
chamavam Bem Viver.

Da janela do teu quarto, 
com o Porto Antigo ao fundo,
na albufeira do Carrapatelo,
e enquanto aguardavas o compasso pascal, 
gritavas ao mundo dos vivos e dos mortos:
"Boas e Santas Páscoas. Nós por cá..., todos bem!"


Texto e créditos fotográficos: © Luís Graça (2023)

Texto poétixo de Luís Graça, originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > 13 Abril 2004 > Portugal sacroprofano - XIX: Boas e Santas Páscoas. Nós, por cá, todos bem!

Texto profundamente revisto e melhorado nesta data, 6/4/2023 (em que a minha querida Joana faz 45 anos, às dez e trinta da manhã; e a nossa Nitas deixou a Terra da Alegria há duas semanas:  faria hoje precisamente 49 anos de casada com o homem da sua vida, o Gusto, meu "mano", o "engenheiro" da Quinta de Candoz).
___________

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."






Marco de Cananveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 18 de abril de 2022 > O fotógrafo escondido por detrás da sua sombra. Visita do compasso pascal, que não se realizava há dois anos por causa da pandemia. 


Foto (e legenda): © Luís Graça  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Viva o compasso pascal

Viva  o compasso pascal
Desta linda freguesia,
Fizeram-nos muito mal
Estes dois anos de pandemia.


Faltam beijos e abraços,
Mas lá iremos ao normal,
Hoje damos mais uns passos,
Viva o compasso pascal!

É uma antiga tradição
Que nos enche de alegria,
E reforça a união
Desta linda freguesia.

Andámos todos com medo
E com máscara facial,
Duas Páscoas sem folguedo
Fizeram-nos muito mal.

Sem compasso nem foguetório,
Sem convívio nem folia,
Nem sequer houve peditório
Nestes dois anos de pandemia.

Saúde, paz e alegria para todos e todas,
Obrigado em nome dos cá da casa.


Quinta de Candoz, 18 de abril de 2022


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Nota do editor:

domingo, 4 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22066: Manuscrito(s) (Luís Graça (202): A Páscoa: este ano resta-nos a saudade... e as fotografias e os vídeos de antanho. E a Covid-19 que nos confina e nos espreita.

.Páscoa: o fascínio do fogo!

Vídeo: © Luís Graça (2009). Alojado no Blogue A Nossa Quinta de Candoz










Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2012 >"As nossas comidinhas: o anho assado com arroz de forno, o práto festivo por excelência, o prato que se serve à mesa na Páscoa... que aqui era sempre à segunda-feira por causa do compasso que tinha de dar a volta toda à freguesia, de povoamento disperso"...


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Páscoa antes da era Covid-19


Dantes, na era pré-Covid-19,
não havia Páscoa sem foguetes... nem compasso.
E muito menos sem o forno aceso,
e sem o sortilégio do fogo, 
que aquecia e alumiava e assava,
enfim, sem o arroz de anho assado no forno.

Não, não havia Páscoa,
sem as cerdeiras florirem,
e sem as videiras sorrirem,
e sem os abraços efusivos.
Não, não havia Pásccoa, sem os foguetes,
nem alegria na cara e no coração das gentes 
do Minho e do Douro Litoral...

Antes da pandemia, 
antes da era Covid-19,
com a crise ou sem ela,
e até mesmo depois da proibição 
do lançamento de foguetes de cana...

Ó vai ou racha, rapazes!,
que na Quaresma engordava-se o anho
para a grande matança da Páscoa...
Tudo isto, quando o Natal tinha o seu pinhão, 
e a Páscoa o seu tição,
e a salgadeira estava cheia do porquinho 
que era o governinho da casa.

Hoje tens a triste Páscoa do "take away", e das grandes superfícies,
e a autoestrada que te leva ao Norte,  vazia e  rigorosamente vigiada.
Em 2009, cada dúzia de foguetes custava a módica quantia de 30 euros.
Mas no domingo de Páscoa,
e por ocasião da visita do compasso,
o povo perdia a cabeça e armava-se em fino e em rico
para provar à Casa do Fidalgo quem tinha cagança...

Hoje o raio da Covid não olha a senhorios e rendeiros, 
os ricos e os pobres de antigamente,
e, aliada da morte, está à espreita mas não espera.

Quando o compasso chegava a uma casa,
o fogueteiro sinalizava a sua presença...
Os vizinhos, mais à frente, preparavam-se,
com grande excitação, para a cerimónia...
Todos, mal-enjorcados nos seus fatos domingueiros, 
os camponeses do Norte,
as mãos sem jeito erguidas ao céu 
quando era  preciso rezar a um deus maior.

Já não importa se a Páscoa 
é no domingo depois da primeira Lua cheia do equinócio da primavera,
há dois anos que perdeste a conta aos dias e aos meses do calendário.
Tradição rica de significado socioantropológico,
hoje em vias de desaparecer,
a tua Páscoa nortenha que adotaste.
Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia!,
estamos vivos e bem de vida, dizia o da casa, 
abrindo as portas aos vizinhos, parentes e amigos.

Domingo da Ressureição, 
carne no prato, farinha na mão,
que na Santa Feira Santa  comia-se o sável do rio Douro.
Acabava-se o jejum e a abstinência, 
para os pobres que não tinham bula.
Eram, afinal, dias de festa, os últimos da Semana Santa,
dias  de comes e bebes e foguetório,
tudo misturado com a religiosidade pagã e cristã,
que formatou corpos e almas.
Folgai enquanto puderdes, que noutra hora chorais,
lembrava o padre Agostinho.

À noite, do terraço da varanda de Candoz,
assistia-se, de borla, na era pré-Covid,
ao espectáculo único da largada de fogo de artifício,
quando o compasso recolhia, cansado, à noite,
depois de andar por montes e vales,
o homem da cruz à frente, 
e a seu lado o puto, de sobrepeliz, a tocar a sineta.

Depois da visita do compasso,
e bem arrotado o arroz de anho assado no forno,
era o espetáculo talvez mais aguardado do ano,
a disputa em fogo de foguetório 
entre cada uma das freguesias circunvizinhas
ali em frente, naquele cenário de presépio.
Olhai, Paredes de Viadores, olhai, Passos de Gaiolo!
E já os de Mesquinhata se adiantavam e agigantavam,
mais os de Santa Leocádia, Grilo e Ribadouro...

Todos, afinal,  a competir pelas luzes da ribalta do céu,
e a mostrarem-se mais cristãos e mais valentes do que no ano anterior.
E com um sorriso matreiro, e uma pontinha de vaidade,
mostrados aos que se sentavam na plateia 
deste vale de lágrimas que sempre foi a terra.
Deus fizera o mundo e as quatro estações de Vivaldi,
e os solstícios do inverno e do verão,
e os equinócios da primavera e do outono,
só não mandara anjos para ajudar a plantar, regar e mondar o milho.

Havia palpites, críticas, comentários, exclamações...
sobre a quantidade e a qualidade do fogo de cada freguesia.
E no final Paços de Gaiolo era o  vencedor...
Alguém tinha que ser o vencedor,
garantia o padre Agostinho, 
que no céu, meus filhos,  a seleção sempre fora, 
desde os primórdios,  muita apertada,
e nem todos poderiam ficar à direita de Deus Pai.
 
Era a vida que, afinal, na Páscoa, triunfava sobre a morte, 
naquelas terras de camponeses do vale do Sousa e do Tâmega,
que alimentaram um milhão de portugueses durante séculos
e que ajudaram a dilatar a fé e o império, sem saber ler nem escrever,
e muito menos latim.

Na era da Covid-19, 
há dois anos que não há Páscoa, nem compasso, nem fogo, nem forno.
Nem abraços nem chicorações, só quando muito abracelos...
Uma tristeza, as casas fechadas, mortos os velhos, 
cheios de mazelas os menos velhos,
cada gente das várias famílias espalhada pelas diásporas.

No passado, ao almoço,  não podia faltar o arroz de forno,
que, em cada ano que passava, 
estava sempre melhor do que o do ano anterior.
Davam-se gabadelas às cozinheiras cuja arte a idade ia apurando.
Ou então era tudo devido simplesmente  à saudade 
destes sabores da infância e da tradição.
Agora até o raio da Covid, diziam, tirava o olfacto  e o sabor às cozinheiras...

Podia chover, que em abril águas mil,
mas a água não apagava o fogo da paixão da vida,
nem estragava o gosto pelo folgar dos corpos,
o forno aceso,  
o folar para os afilhados, sua benção, padrinho!,
o pão de ló dos Lenteirões, a aletria, 
os foguetes a estalar no ar, alto e longe,  
a caneca de porcelana, que luxo!, 
por onde se bebia o vinho verde tinto,
os parentes e os amigos, alguns vindo de longe, da terra dos mouros,
o vinho verde novo que jorrava da pipa e  alegrava os corações,
a canalha numa correria para apanhar as canas dos foguetes...

E os cães a ladrar. 
Mas até os cães morreram.
Tal como o padre Agostinho.
E as velhas casas de granito se cobriram de musgo
e as janelas de teias de aranha.

O compasso era tradição minhota e duriense, diziam-te.
Tenderá a acabar, há muito profetizavam os sociólogos da desgraça.
A sua origem remontaria à época dos jacobinos, mata-frades,
à desarmotização dos bens de mão-morta que não poupou os passais,
provocando a pobreza do cura da aldeia
que, sendo filho de Deus, também tinha de comer e beber.
O compasso pascal seria a  forma expedita
de compensar a perda de rendimentos do pároco.
As esmolas que as famílias punham no saco do compasso, no final da visita,
revertiam originalmente para o pé-de-meia do padre...

Ah!, mas até os padres morriam, 
em tempo de peste e  de Covid, lia-se  na gazeta de Lisboa.
E o teu vizinho da porta da frente, que vivia na Paris dos portugueses,
coitado, também lá se foi, telefonou-te, chorosa, a viúva.
E mais o fulano e o sicrano. E mais este e aqueloutro.

Já nada é como dantes,
desde que o mundo que tu conhecias começou a soçobrar.

A visita pascal era um pretexto também para a afirmação social,
o exibicionismo dos vizinhos e parentes mais ricos,
alguns que haviam retornado de França, se não ricos, remediados, 
e que eram capazes de gastar uns bons contos de réis em foguetório...

Já não havia contos de réis, é verdade, 
nem lendas e narrativas de  brasileiros 
que fizeram fortuna no Novo Mundo.

Este ano da desgraça de 2021 resta-nos a saudade... 
e as fotografias e os vídeos de antanho.
E a Covid-19 que nos confina e nos espreita.
Mas também a esperança de que, no fim,
vamos triunfar sobre esta maldita pandemia, 
como trinfámos sobre a peste negra, a varíola, a cólera, a pneumónica...

Lourinhã, 4 de abril de 2021.

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de março de  2021 > Guiné 61/74 - P22047: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): O pôr-do-sol no Atlântico, no tempo do não-tempo do confinamento (Luís Graça)

domingo, 12 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20851: Efemérides (322): O meu domingo de Páscoa de 1968 (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG)

Ressurreição de Cristo - Rafael


1. Em mensagem de hoje, dia 12 de Abril de 2020, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), lembra o seu dia de Páscoa de 1968.


O Domingo de Páscoa de 1968

Já estava na tropa desde Outubro de 67 quando no dia 10 daquele mês assentei praça na EPC em Santarém, de má memória, onde chumbei no CSM e mais 200 camaradas – sim chumbámos 201 em 360 - tendo passado para o Contingente Geral e no início do ano de 68 sido transferido para o RTM no Porto onde tirei a especialidade de Operador de Mensagens bem como a Escola de Cabos.

Mal acabada a especialidade, fui transferido para o BT na Graça em Lisboa, mas rapidamente colocado a prestar serviço na Delegação do STM – Serviço de Telecomunicações Militares – no Quartel General da 2.ª Região Militar, em Tomar.

Estava desarranchado, dormia num quarto com mais dois camaradas em três divãs separados, em casa do Cabo RD Almeida, como também ali dormiam noutros quartos mais camaradas de armas. Aquilo não era bem um quartel, mas principalmente de manhã, apesar de não haver toque de alvorada, todos nos movimentávamos bem e depressa.

Comia no Restaurante Diamante Verde, na Rua dos Arcos, por trás do Quartel General. Acho que o desarranchamento eram 500$. Do quarto pagava 120$ e do Restaurante pagava 500$. Mas como “matava” alguns serviços de camaradas que se podiam safar e pagar, a coisa compunha-se.

Todos estes serviços de “matança” eram “coordenados” pelo Sargento, chefe do Posto do STM.
O STM era nas águas furtadas do QG onde, para além do Centro de Mensagens (a minha especialidade), existiam a Central de Teleimpressores com contacto com o Batalhão de Telegrafistas em Lisboa e com o QG do Campo Militar de Santa Margarida, bem como com os outros Quartéis Generais do País e, claro, o Posto de Rádio, em grafia, que comunicava com as mesmas entidades.

Existia ali ainda um aparelho do tempo da 2.ª Grande Guerra, um fac-simile da altura, marca Siemens, que todos os dias era posto à prova com uma transmissão de exploração para o BT e a devida resposta. Aquilo era mesmo antigo. A técnica era baseada num cilindro onde se acoplava o documento a transmitir e ia rodando, depois de se fazer a ligação telefónica para transmitir o documento. Usava um tinteiro e um sistema com um aparo que ia impressionando o papel conforme a imagem do documento. Claro que por vezes borrava-se a pintura… mas aquilo tinha que ser posto à prova todos os dias como mandavam as normas.

No 1.º andar, para além dos Gabinetes do Brigadeiro Comandante da Região Militar e do Coronel Chefe do Estado-Maior e outras repartições, havia o Centro de Cripto onde, nós quando recebíamos alguma mensagem classificada, íamos ao postigo daquele Centro entregar a mesma por protocolo e eles, depois de fazerem a passagem a cifra, vinham ao postigo do nosso Posto entregá-la para ser encaminhada e transmitida para o ou os destinatários. Era assim o dia a dia.

No Rés do Chão, para além dos serviços do quartel General e as instalações da PM, havia a Central Telefónica do QG, com uma Central Civil e outra Militar que eram operadas por telefonistas do STM. Era dali que de vez em quando, sem grandes abusos, conseguíamos fazer uma ou outra chamada para casa, para dar notícias, ou para algum dos nossos vizinhos que tivesse telefone porque naquela altura esses aparelhos eram raros.

Era assim a vida dentro daquelas quatro paredes. Falta dizer que no Rés-do-Chão, virado para uma pequena parada interna, havia a Cantina muito frequentada por todo o pessoal do QG, do STM e da PM que ali estava instalada.

A comida no Restaurante não podia ser muita nem nós podíamos ser exigentes dado o preço que se pagava. Mas comia-se sempre uma boa sopa, um prato de peixe ou de carne, pouco abundante para se manter a linha, um jarrinho de vinho e algumas vezes uma peça de fruta.

Ora, no Domingo de Páscoa de 1968, estava de serviço e lá fui almoçar. A senhora D. Rosa avisou-me que havia rancho melhorado. De facto, veio uma canjinha de galinha apetitosa e depois arroz com frango corado no forno. O arroz estava muito bom, mas o frango ou a galinha vinha aleijado. Só havia patas e pescoços… pelo que perguntei se ela tinha ido comprar o frango ao Entroncamento que nessa altura estava na sua grande época dos fenómenos. Ainda bem que fiz aquela pergunta pelo que a senhora sempre me arranjou uns bocados de carne para ajudar a empurrar o arroz.

Coisas da tropa, neste caso passadas fora do Quartel, mas mesmo ali ao lado.

Boa Páscoa para todos os amigos e, já agora cuidem-se e não façam aventuras porque a Pandemia está bem viva, anda por aí cheia de força, a fazer a vida negra a uma população indefesa. Por isso temos que nos resguardar em casa, nada de visitas, nada de cumprimentos mesmo que ocasionais, porque todo o cuidado é pouco. Mas temos que ter esperança e esperar melhores dias porque depois da tempestade vem sempre a bonança. Esperamos que desta vez também seja assim. Mas, entretanto, toca a recolher em casa.

Um abraço colectivo para todos os amigos.

Carlos Pinheiro
12.04.2020
Domingo de Páscoa caseiro…
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Nota do editor

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