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terça-feira, 12 de novembro de 2024

Guiné 61/74 – P26146: (Ex)citações (430): Habitações palacianas de Gabu (José Saúde)

 


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Tenho lido textos no nosso blogue – Luís Graça & Camaradas da Guiné - de camaradas que visam literalmente a antiga Nova Lamego, atual Gabu. Digo-o, sem o mínimo de uma dúvida que porventura me suscitava hesitações, pois eles são tão claros que não retiro uma vírgula aos escritos aqui lançados pelos seus signatários, que Gabu tem, naturalmente, a sua própria história existencial.

Quando lancei o livro – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 2973/1974 – MEMÓRIAS DE GABU” – ocorreu-me em procurar a razão de como tudo terá acontecido. Ou seja, a razão da sua existência e de que como tudo terá evoluído até ao presente.

É óbvio que pelo meio ficou a nossa presença aquando da guerra colonial, mas ficarão também imagens que jamais esqueceremos. Por isso, aqui vos deixo a história de Gabu e dos então peiriquitos que ousaram explorar os recantos da então Nova Lamego.

Habitações palacianas de Gabu

Denominada como Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a norte com o Senegal, a Leste e a Sul com as regiões de Tombali e a Oeste com Bafatá.

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Gabu é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona, mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

No plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 kms2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país.

Introduzo como credível uma nota de rodapé que após a independência do país Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial.

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

As temperaturas rondam, normalmente, os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados os mais frescos. Por outro lado, a economia assenta no comércio, agricultura e pecuária.

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário tribal transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes. 

Uma rua

Aliás, num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim como as memórias que nós combatentes incessantemente recordaremos.

Vamos, pois, ao encontro de conteúdos passados em pleno palco da guerrilha. 

A população em movimento 

    
Periquitos exploram o centro de Nova Lamego 

Passeio na “5.ª Avenida”

Suavizavam o ar com o odor de uma “penugem” que os então pe9riquitos, nome usado pela tropa mais velha para identificar os recém-chegados a solo guineense, lançavam para o infinito de um horizonte inimaginável e onde surgiam quadros pesarosos pintados pelo negro de uma incerteza. Porém, a incubação nos ovos chegava ao fim. Tínhamos avezinhas. Um esticão de asas, um apalpar no escuro, uma vertigem dos mais fracos, o vociferar dos conteúdos da guerra, o trocar opiniões sobre os estratagemas do inimigo, as emboscadas, as minas, os ataques noturnos aos quartéis, entre tantos outros motes aflorados, davam azo a uma conversa sempre indeterminada entre o grupo acabado de chegar ao Leste da Guiné.

Cenário: a “5.ª Avenida” de Nova Lamego, quais turistas a passearem-se pelas ruas chiques das grandes metrópoles americanas! Ao fundo da dita cuja (“5ª Avenida”), eis o grupo a abancar no bar da Pensão Mar e a refrescar-se com as aprazíveis sagres. Era o princípio de uma jornada por terras de além-mar. Outras fainas se seguiriam!

 A Guiné parecia apenas um sonho. Aliás, jamais me tinha ocorrido à ideia de que o meu futuro militar me reservasse, como virtual conjetura, conhecer um dia a realidade da guerrilha no terreno guineense e as suas famosas bolanhas.

Falava-se da Guiné como o diabo foge da cruz. A guerra naquela província do Ultramar era terrível. Traçavam-se cenários mórbidos. A rapaziada comentava e a mensagem passava de boca em boca. Mas o destino contemplou-me e eu, tal como grande parte dos rapazes desses tempos, não fugi a esse fim. Fui e voltei tal como parti, restando resquícios de histórias que contemporizam o meu calendário de vida.

Camaradas houve, e foram muitos, que já não usufruem, infelizmente, do prazer de partilhar momentos de convívio e narrar as suas histórias de vida. Uns, morreram em combate na densidade de um mato cerrado; outros, faleceram numa emboscada; outros, encontraram a morte em ataques aos quartéis; outros, fecharam definitivamente os olhos em famigerados rebentamentos de minas anticarro e antipessoal e, ainda, há aqueles que morreram em momentos de pura infelicidade. Desastres com viaturas militares ou armas de fogo, carimbaram o seu derradeiro fim.

Convivi com situações que me deixavam apreensivo quando em causa esteve a razão do último adeus. Momentos fatídicos, mórbidos, de camaradas que ousaram abusar do facilitismo e se deixaram cair, inadvertidamente, em fatídicos fins proibidos. Exemplifico o infeliz que encontrou a morte a limpar a arma esquecendo, entretanto, que tinha deixado uma bala na câmara e outros em estúpidos acidentes com viaturas militares, todos, ou quase todos, temos histórias desta estirpe para contar.

Olho, atentamente, para duas fotos do meu álbum – Guiné - e revejo um passeio pela “avenida” principal de Nova Lamego, nos primeiros dias em que ali “ancorámos”. O clique foi justamente dado em frente a uma casa onde residiam duas irmãs cabo-verdianas que eram professoras primárias na escola local.

Vivendo momentos de uma juventude no seu auge, alguns furriéis e alferes, andavam doidos com as meninas que, por sinal, eram boas como o milho. Recordo que a malta andava mesmo vidrada com aquele duo de airosas donzelas mestiças. Parceiros? Não lhes conheci. Passemos à frente…

O grupo de turistas, todos janotas, embevecidos com a beleza natural que os rodeava e o cheiro a África a inalar as nossas narinas, eis o grupo de periquitos, à civil, sentados a uma mesa do bar da Pensão Mar. Um nome que nada tinha a ver com a realidade deparada. O mais indicado, na nossa conceção, seria substituir Mar por Bolanha. O mar, lá longe, nem vê-lo. A bolanha era, isso sim, o afrodisíaco mosaico constatado em terrenos circundantes, bem como em quase todo o território guineense. Mas aceitava-se a decisão do seu mentor.

África é sumptuosa no consumo de bebidas, principalmente cerveja. O calor afirma-se como um aditivo determinante pelo prazer de consulares gargantas ressarcidas. Num convívio saudável ficou uma tarde de passeio na apelidada “5ª Avenida”, o alforge recheado de cervejas bebidas e um conhecimento mais profícuo de uma urbe onde as bajudas passeavam os seus corpos embrulhados em pedaços de panos garridos que torneavam a preceito os seus joviais e esbeltos físicos. O militar – periquito – apreciava e… imaginava cenários quiçá inexequíveis de alcançar. Coisas de uma juventude irreverente.

Refastelados à volta de uma mesa o grupo de furriéis ressarciam-se com as cervejolas fresquinhas

Periquitos desbravavam o ambiente da “avenida”. Da esquerda para a direita: o Cardoso, Operações Especiais/Ranger, Eu, o Santos, Minas e Armadilhas, Freitas e o Rui, Operações Especiais/Ranger

Abraços camaradas e um até breve.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

20 de abril de 2024 > Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)

sábado, 20 de abril de 2024

Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)


Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > 
Na porta de armas,  o pessoal civil  por lá se aglomerava pós 25 de Abril



Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > O José Súde (à direita) com o furriel Santos, minas e armadilhas, no dia da nossa despedida do quartel

Fotos (e legendas): © José Saúde (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abril em Nova Lamego

por José Saúde


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

O 25 de Abril de 1974, dia em que se proclamou a Liberdade, permitiu o regresso dos camaradas, instalados em territórios africanos – Angola, Moçambique e Guiné - onde a guerrilha predominava, à Pátria mãe. Sentiu-se, então, que o fim do martírio de “miúdos” enviados para os palanques da guerra, havia terminado. Era um Abril a rejuvenescer à “sonância” de um cravo vermelho e a rapaziada, eufórica, a preparar-se para um retorno, a casa, antecipado.

Abril, e o seu cravo vermelho!

Somos filhos de longas madrugadas que se imortalizaram no tempo, mas onde a esperança da liberdade residiu permanentemente em nós. Somos também filhos de pessoas humildes, “que comeram o pão que o diabo amassou”, mas que nos educou, o quanto lhes foi possível, uma vez que os tempos da obscuridão ter-lhe-ão coartado a ânsia de mandar os seus descendentes para estudos médios ou superiores, visto que as possibilidades financeiras do clã familiar eram demasiado escassas, ou ainda filhos de um regime totalitário, Estado Novo, onde o poder sobre o mais incauto cidadão impunha ordens absolutas aquando o pessoal reclamava, apenas, um compreensível dia de trabalho que, nesses idos, eram tão-só sazonais.

Os tempos eram outros! Tempos em que a liberdade, melhor, a falta dela em expressar sensibilidades pessoais tinham o condão de enviar os mais destemidos para “campos de férias”, mas onde as grades de uma prisão se apresentavam como inequívocas realidades. Pessoas sérias, honestas, uns “letrados” com então a 4ª classe, já era bom, outros analfabetos, mas cuja altivez dalguns passou pela prisão política. Seres humanos que se entregavam de alma e coração a uma profícua convicção que entendiam como justa e, sobretudo, para o bem do seu povo. Mas, do outro lado, lá estavam sempre atentos os fiéis agentes de um regime que não dava tréguas ao mais honesto plebeu.

Fomos crianças alegres, brincámos na rua, jogámos ao berlinde, à bola, algumas de trapos outras com bexigas de porco cujo enchimento era feito através do ar que vinha dos nossos pulmões, à pata, ao eixo, ao pau da lua, e de tantas outras brincadeiras que ainda hoje recordamos, crescemos a ouvir as barbaridades omnipotentes vindas de um Estado Novo, de agentes de uma PIDE que tudo ou quase tudo dominavam, conhecemos inegáveis sofrimentos de famílias marcados pelos constrangimentos das austeras estratégias de pessoas que envergavam fatos à príncipes de Gales com gravatas de seda pura, mas vimos um dia o desamarrar das âncoras do medo que nos prendiam a uma governação que fora substancialmente impiedosa. 

Porém, o 25 de Abril de 1974, a glorificada Revolução dos Cravos, abriu-nos as portas para a Liberdade e, fundamentalmente, para o conhecer novos mundos e novas realidades.

Perfilho, com toda a legitimidade, que essas lealdades de outrora nos trouxeram novéis conhecimentos, novas vidas, novos universos que harmonizaram em indesmentíveis empatias sociais. Aliás, somos de uma geração que teve a oportunidade em conhecer as remodelações dos lugares, ou, em síntese, reestruturações humanas, créditos estes que paulatinamente se transformariam ao cimo desta imensa esfera chamada Terra.

Assistimos à guerra colonial da qual fomos mais um dos muitos milhares de camaradas que por lá andaram, no nosso caso em solo guineense, sendo que a peleja começou em Angola, 1961, estendendo-se a Moçambique e Guiné, terminando o conflito em terras de além-mar com a queda do poder até então instalado sob o camando dos Capitães de Abril.~

Nós, jovens militares, fomos enviados para o palco de uma guerra na qual os camaradas no momento em que se deparavam com os conteúdos reais da guerrilha, lançavam exclamações de raiva, de revoltas incontidas e de impropérios “berros” que os transportavam para um tabuleiro, que não sendo o de xadrez, mas um outro em que se esculpia a simples frase: “matar para não morrer”!

 Sim, como sabeis camaradas, porque é inevitavelmente verídico, muitos companheiros perderam as vidas nas frentes de combate, outros nas "picadas", ou em emboscadas, outros no interior dos seus quartéis resultantes de ataques noturnos levados a cabo pelo IN, mas quando descansavam num sono, que não sendo profundo, o seu descansar permite-me, agora e sempre, parafrasear uma metáfora que se traduzia, naqueles tempos, num "descansar de armas". E tantos foram os camaradas mutilados e de muitos outros cuja patologia os remete para inesperadas circunstâncias de vidas de todo inesperadas.

Quando a revolução de Abril “rebentou” e se ouviu o som do clarinete a emanar a sonoridade do toque a reunir, este vosso camarada cumpria a missão militar na Guiné, precisamente em Nova Lamego, Gabu. Claro que todos rejubilámos com tamanha aventura. Seguiram-se momentos de intercambio com elementos do PAIGC, o conhecer de rostos com os quais antes havíamos combatido, trocaram-se “galhardetes” e eles, por fim, assenhorearam-se das nossas instalações.

Naturalmente que pelo meio de tanto alvoroço, a população, sempre expectante, não dava tréguas aos camaradas que assumiam o serviço da porta de armas. Reuniam-se em grupo e vá de reclamar quiçá benesses. Os seus semblantes indicavam acumuladas incertezas.

 Compreendia-se. A nossa missão chegara ao fim. Brevemente voltaríamos a casa. Ficava o nosso repto: “até sempre,  Nova Lamego”!

E eis-me, finalmente, no dia 4 de setembro de 1974 com o camarada Santos à porta das nossas instalações de malas feitas e prontos para o embarque num avião Noratlas que nos conduziria ao aeroporto de Bissalanca, seguindo-se uma viagem para o quartel do Cumeré, local onde permanecemos até ao regresso a Lisboa, Figo Maduro.

Momentos inesquecíveis que levarei comigo para a eternidade, tendo em linha de conta aquele Abril, e o seu cravo vermelho!

Abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

__________ 


Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

19 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25410: Os 50 anos do 25 de Abril (9): "Factum": c. 170 das melhores fotografias do Eduardo Gageiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até ao próximo dia 5 de maio

segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 – P25283: Efemérides (431): 51º Aniversário de instruendos que passaram pelo CIOE, em Penude, Lamego (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


13º Convívio de camaradas do 1º Curso/Turno de 1973, de Penudo/Lamego

Um tempo, sem tempo, que ainda ousa reunir camaradas de armas e seus familiares

Não obstante os agrestes e eventuais contratempos que porventura nos surgem pelo caminho, existe, porém, a certeza que quando o “comandante” Alberto Grácio toca o reunir as tropas, 1º Curso/Turno de 1973 de Operações Especiais/Ranger em Penude/Lamego, nós antigos militares e combatentes da antiga guerra colonial que se espalhou por Angola, Moçambique e Guiné, respondemos, com prontidão e, num tom fortemente unissonante, respondemos: SIM, presente!

Desta feita, o evento, o 13º, teve lugar em Palmela e por lá apareceram muitos camaradas, sendo que alguns deles se fizeram acompanhar por familiares. Foi, no fundo, trazer às nossas reminiscências o que fora a dureza de uma especialidade que nos acompanhou ao longo das nossas vivências militares, assim como o palco de guerra por onde andámos.

Ali falou-se de tudo um pouco. Dos bons e dos maus momentos pelos quais passámos. Éramos jovens e essa postura militar, sendo então obrigatória, foi-nos mais enriquecida pela passagem pelos Rangers, que nos deu novas “armas” para enfrentarmos as mais díspares situações que nos surgiram pela frente nos campos onde as batalhas naturalmente proliferavam.

Mas o mundo no qual hoje vivemos, a guerra, aquela em que os vossos avós e pais foram obrigados em participar, são agora guardados em baús onde essas memórias foram paulatinamente corroídas com o evoluir das épocas passadas, ainda que elas não sejam assim tão distantes no tempo. Todavia, existe uma nuvem negra que tenta escamotear a realidade pela qual infalivelmente passámos.

Atualmente o pouco que resta a este povo português, que parece esquecido do recente conflito armado em terras de além-mar, sejam relatos escritos em livros que avivam as memórias dos ainda interessados numa valorização dos seus conhecimentos pessoais.

Catarina Gomes, jornalista/escritora, trouxe a público um livro chamado “Pai, tiveste medo? Uma obra que cita, precisamente o camarada Gomes, já falecido, pertencente ao nosso Curso, 1º de 1973, que prestou serviço militar em Angola, como alferes. Paz à tua alma, camarada. Ah, houve um momento em que se fez silêncio pela tua inesperada partida. Ficou o simplório gesto dos companheiros com os quais partilhaste as dificuldades, físicas e mentais, no sopé da Serra das Meadas. Nós, os teus camaradas, já septuagenários, que, por ora, continuam a fazer peso à terra, prosseguirão essa divina missão em rever os presentes e, singelamente, recordar os ausentes, isto é, aqueles que um dia partiram para o infalível caminho rumo a outros nimbos, mas com outras dimensões, sendo estas deveras cruéis.

Amigos de sempre e para sempre, lembremo-nos que as vidas, sendo demasiado curtas, serão, contudo, elevadas com celebridade enquanto as nossas vozes solfejem o condão de estarmos vivos. Para trás ficaram memórias, de todo inesquecíveis, numa guerra que nos foram demasiado cruéis, quer em Angola, Moçambique ou Guiné, onde muitos destes camaradas presentes no evento por lá militaram.

Que venha o próximo Convívio, este a Norte!



Eu, Zé Saúde, com o meu companheiro por terras de Gabu, Guiné, Rui Álvares, onde comandamos, em simultâneo, o mesmo grupo de intervenção



Alberto Grácio, o “Comandante” em pleno campo de “batalha” e a preparar as “armas” para um “assalto à mão” a uma mesa recheada de “rações de combate”. Grácio, um antigo combatente na Guiné







Catarina Gomes, jornalista/escritora, esteve presente e deu a conhecer um dos seus livros:

Pai, tiveste medo?

Os convivas



Uma outra parte da sala



Catarina Gomes a partir o bolo do nosso 13º Convívio 

Abraços camaradas e um até breve.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

26 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25214: Efemérides (430): O "making of" do livro de Spínola, "Portugal e o Futuro", publicado há 50 anos (revelações do biógrafo, Luís Nuno Rodrigues)

 

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 – P25159: (Ex)citações (427): Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974" (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974"

Os tempos de vida, os nossos, lá vão caminhando por uma estrada cada vez mais apertada. Ambicionamos, e sempre, um presente ajustado às nossas capacidades físicas e intelectuais, assim como um amanhã onde suplicamos um bem-estar para a nossa presença neste planeta chamado Terra.

A idade não perdoa. Sim, é verdade que tempo voa. Ainda assim, lá vamos remexendo em histórias que nos enviam, em particular, para a nossa estadia forçada na guerra colonial da Guiné, ou aquando um dia partimos de Lisboa rumo ao conflito guineense, mas com a curiosidade a suscitar dúvidas em relação à futurologia que nos esperaria. Neste contexto, deixo-vos camaradas imagens por todos certamente relembradas. 

      Angola, Moçambique e Guiné, hoje países independentes, foram outrora palcos de guerrilha que marcaram uma juventude que vivia em plenos anos de autêntica exaltação. Nesses tempos, os clamores evocados pelos jovens desembocavam numa encruzilhada de cavaqueiras cujo destino se fixava amiudadamente com a guerra do Ultramar.

      A tropa assumia-se, para todos nós, como um beco sem saída. A necessidade premente ao recurso de seres humanos que engrossavam as fileiras do exército, impunham colaterais apuramentos dos mancebos. Não olhassem ao aspeto físico da criatura e nem tão-pouco a pequenos defeitos congénitos que o rapaz, com 20 anos, apresentava. O apuramento da rapaziada era transversal. Os livres foram chãos que já tinham dado uvas.

      Aportei em solo guineense cerca das 14 horas locais no dia 2 de agosto de 1973.  Ao descer do avião deparei-me, de imediato, com um bafo deveras incomodativo. Faltava-me o ar e o suor escorria-me pelo rosto abaixo. A minha respiração parecia ávida dos ares lusitanos. O cheiro a África era-me uma realidade completamente desconhecida. O clima parecia de todo adverso. Confesso que o calor sempre me fascinou, todavia, este apresentava-se com contornos adversos e literalmente sufocante, assim sendo o meu ego de pronto interiorizou o que lhe ia na alma: “eis-me num território agreste onde a guerra se apresentava como uma irreversível realidade”.

      Os primeiros contactos com os nativos transmitiam odores natos de gentes que se predispunham a contemplar aqueles tímidos jovens que chegavam. Na pista do aeroporto de Bissalanca, e com o Boeing 727 que nos transportara a preparar-se para efetuar a viagem de regresso a Lisboa, deparei-me com uma verdade diametralmente diferente daquela que dantes havia idealizado.

Lembro de sobrevoar o deserto do Saara e olhar as dunas lá do alto, os oásis e as pequenas aldeias isoladas num extenso areal. Tudo observado a uma distância que minusculamente não contemporizava uma visão autêntica com o espaço visualizado. Ficava a imaginação de um jovem que cruzava fronteiras aéreas a caminho da guerra.

      Todas as histórias têm um vínculo que nos transporta a vidas dispersas ao cimo deste imenso globo universal chamado Terra. Nesta obra relato factos verídicos por mim vividos enquanto prestei serviço militar obrigatório, sendo o fim uma comissão numa fase em que a luta atormentava o mais incauto comum dos mortais. Felizmente tive, aliás, tivemos a sorte que nos instantes finais do conflito nos deparássemos com dois tempos diametralmente oposto: a guerra e a paz.

      A guerrilha na Guiné tinha contornos buliçosos. As condições do terreno, o clima e a forma como o PAIGC atuava, formava um tridente que não dava tréguas ao mais astuto militar da metrópole. É verdade que o exército português jamais se apresentou como uma arma maleável para o IN (inimigo). Comprovámos, sempre, que as nossas capacidades de reação foram evidentes nos campos de batalhas.

      Do conflito da Guiné há retratos que ao longo dos anos têm chegado ao nosso conhecimento, com testemunhos verídicos, que relatam de como foi dura a peleja guerrilheira. Sabendo nós, principalmente aqueles que conviveram o dia-a-dia com os problemas da escaramuça, que o contingente luso na Guiné registava cerca de 45 mil efetivos nos três ramos das Forças Armadas – Marinha, Força Aérea e Exército -, enquanto o PAIGC dispunha, nos tempos finais, perto de 10 mil, logo, numa análise feita à pressuposta quantidade de operacionais que cada exército dispunha, o cenário parecia favorável às forças lusitanas.

      Teoricamente seria essa a intenção dos homens de Comando, indivíduos que instalados nos seus gabinetes estudavam o conflito, mas… ao longe. Examinavam os mapas de cada região ao pormenor e idealizavam ações no palanque operacional, mas no interior de quatro paredes. Era, quiçá, a guerra operacional dos galões amarelos.

      Porém, a prática dizia-nos uma verdade oposta. As condições deparadas na frente de batalha, essencialmente a forma como a guerrilha atuava a que acresce a maneira como o IN conhecia o palco real e a forma como os seus movimentos no mato se desenhavam, deixavam a nossa tropa perplexa diante a imprevisibilidade de um eventual contacto direto.

      Hoje, e com a distância do tempo a prevalecer, faço uma visita aos corredores da minha já apertada memória e vergo-me perante a coragem de antigos companheiros que, de uma ou de outra forma, conseguiram dissuadir as intenções do IN no momento em que o ziguezague das balas se cruzavam no infinito do horizonte. Neste contexto, é justo enaltecer o valor individual de cada combatente no instante em que o confronto se pautava pela dureza.

      Sabe-se que foram muitos os que morreram no palco da peleja, outros que ficaram estropiados e outros que regressaram, felizmente, sem nenhuma beliscadura. Há, igualmente, aqueles que ainda hoje padecem de distúrbios mentais que o conflito lhes proporcionou.

      O stress de guerra é há muito uma patologia aguda que tem levado muitos dos ex-combatentes a um pasmo de dificuldades que conduzem o potencial portador da doença a situações variadas. Conflitos a nível do emprego e familiares, designadamente, traduzem que os valores herdados da guerra têm transformado intelectos que evidenciam quebras memoriais, resultantes de hostis ensejos deparados perante ocasionais instantes de autêntico desespero.        

Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 – P24917: (Ex)citações (426): Vidas (José Saúde)

 



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

O texto vidas reflete o que é, quase na sua essência, a nossa existência ao cimo deste globo terrestre como antigos combatentes, como é este o caso, de uma guerra na Guiné que deixou marcas em cada um de nós, sendo o futuro uma eventual incógnita.

Eu, 72 anos na altura, cai ao sair do meu carro desamparado de que resultou uma outra malazenga, para além de um AVC que muito me apoquentou, dado que tive de ser hospitalizado, sucedendo que neste momento encontro-me numa fase de recuperação.

Esta é uma passagem pelo meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ BISSAU 1973/1974”, Edições Colibri, Lisboa, que incide afinal o que é na presença no planeta Terra.

O mundo é pequeno e as nossas recordações gigantescas

Vidas




Não obstante a velocidade estonteante que contempla um desgastar imutável de vidas que paulatinamente vão marcando gerações, eis-nos perante uma realidade que consome nacos de uma existência que marcará eternamente a nossa presença neste cosmos terrestre.      

Assumindo a minha condição de exímio septuagenário, sou, de quando em vez, embalado imaginariamente ao colo da minha saudosa mãe por um sentimento nostálgico onde as luzes da ribalta transcende o hino das emoções e nos conduzem, quiçá inadvertidamente, a vidas sentidas dos tempos de tropa e da guerra.      

Tempos em que nós, miúdos e de caras joviais, dávamos um pontapé nas estrelas, sendo que nesse exorcismo irreal deixávamos um sinal claro que o nosso futuro passava irremediavelmente pelo dia da chamada do futuro mancebo para engrossar as fileiras do exército português.      

Porém, uma certeza não invadia as nossas almas: a guerra no Ultramar. Ou seja, um cenário gigantesco que ditava como encenação provável uma comissão militar em território de além-mar. Mas, existiam também nuances que acarretavam preocupações acrescidas a rapazes que viviam anos de uma efervescente juvenilidade. O futuro, sempre imensurável, sugeria um sonho que nos fazia sorrir. A guerra era coisa distante. Parecia.      

Todavia, escondido no nosso ego lá permanecia uma faixa negra onde se lia: segue em via rápida uma encomenda que transporta a tão conhecida frase “carne para canhão”!... Ainda assim, a utopia transmitia um similar de odores onde esperança falava mais alto. “Vou à guerra, mas regressarei um dia são e salvo ao meu rincão sagrado. Não quero medalhas, mas exijo apenas um simples reconhecimento pelos momentos de padecimento sofrido. Ponto final”.      

E muitos regressaram isentos de malazengas contraídas nos campos de batalha. Outros, infelizmente, chegaram tendo à sua espera uma secção de militares do quartel mais próximo da sua residência que honrava o defunto com uma rajada de G3. Depois seguia-se o discurso que ornamentava o fúnebre momento, frisando o oficial de serviço o heroísmo do camarada agora já cadáver. Bolas, que pudica mensagem de voz!      

A tropa apresentou-se, creio certamente, para todos nós como uma universidade da vida na qual recolhemos informações que nos levaria a efetivos doutores de uma licenciatura concluída num mar de aventuras e que coabitava com o desenrolar das nossas vidas. A tropa foi, e afirmo obstinadamente, uma inquestionável experiência que muito nos ensinou.      

Lembro o dia 10 de outubro de 1972 quando dei entrada como mancebo no CISME, em Tavira. Depois veio Lamego, Operações Especiais/Ranger. O dia 4 de janeiro de 1973 traçou-me um novo destino. Abençoado pela Serra das Meadas, a bíblia dos futuros rangers, tornei-me um exemplar militar e adquiri louros para uma especialidade que me fez crescer na sua plenitude. Seguiu-se a Guiné e Gabu recebeu-me com “pompa e circunstância”.      

Recordo o dia que ousei desafiar calendas escondidas e obrigatoriamente parti para uma comissão militar na Guiné. Num outro lado, África esperava-me e o solo guineense “abençoou” a minha chegada. Constatei de imediato que o bafo causado pela aquela terra vermelha me aconselhava cuidados atempados.       

Cuidados que, posteriormente, disparariam em todas as direções. O dia-a-dia em Gabu evidenciava novas aventuras. Aventuras que coincidiam com patrulhamentos, proteções às colunas, quartel e pista de aviação, com visitas permanentes a tabancas, operações, saídas constantes para o adensado mato, enfim, um rol de procedimentos comuns imputados a um operacional em tempo de guerra.       

Evoco outros momentos em que o clima de África contemplava as nossas vidas. O paludismo, que me visitou por três vezes, derrubou-me, mas levantou-me. Foi uma espécie de ataque de morteiro sem recuo onde a versão primária levou o debilitado combatente a exercitar a sua já usada condição de ranger.      

E é neste permanente propagandear de vidas preenchidas em território guineense, que me ocorrem situações em que o facilitar permitia o desenvolvimento de momentos caóticos. Alguns fatídicos.      

Jovens militares que acreditaram na sorte. Vidas que, inconscientemente, se perderam, tão-só pelo simples facto de não premeditavam o futuro imediato. Facilitavam. Depois vinha a desgraça.      

50 anos depois…                 

      


Um infortúnio que 50 anos depois eis que o “rebentamento de uma mina antipessoal” me atirou para o leite do hospital de Beja. Fémur fraturado e que originou uma intervenção cirúrgica urgente, tendo sido necessário levar “material suplementar”, ou seja, um “espigão” que vai do colo do fémur ao joelho pelo interior do referido osso, bem com parafusos para suportar o equilíbrio do membro inferior direito, aquele que ficou meio funcional após o meu AVC, um mal que já leva 17 anos de existência. Abraço camaradas,

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

4 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24723: (Ex)citações (425): Ainda a propósito do Jornal Voz de Bissau, a atividade Política em Bissau no pós 25 de Abril (Victor Costa, ex-Fur Mil)

sábado, 28 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24801: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (15): Profissões e os seus mestres: sapateiros, abegões, carpinteiros, latoeiros, ferreiros, albardeiros, alfaiates e costureiras (José Saúde)


Abegão aplicando o saber no seu ofício 


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços


Camaradas,

Gosto de desafios! Sim, o desafio propõe-nos outros desafios, mas estes mais esmerados. Ousamos desafiar as dificuldades motoras, sendo este o meu caso, pois escrevo apenas com a minha mão esquerda, aquela que outrora fora “ceguinha”, a outra, a direita, resolveu partir para o caminho da infinidade, desde o dia (27/7/2006) em que o AVC me visitou, já lá vão 17 anos, mas que jamais abandonarei a verdadeira noção de escrever e deixar para a posterioridade uma visitação, esta morosa, que me levou a escrever mais um livro, sendo este sobre a terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento. 

OUma obra trazida aos escaparates pelas Edições Colibri, Lisboa, onde faço uma viagem no tempo e trago à estampa algumas das profissões, embora resumidamente, que outrora marcaram a vida na minha aldeia.

Profissões e os seus mestres



Mestre Pote, sapateiro e músico 

Escrevi, atrás, um tema sobre a antiga Banda Filarmónica de Aldeia Nova de São Bento em 1930, com a respetiva fotografia, sendo o seu maestro o mestre Pote. Ficou, certamente, a dúvida quem foi, afinal, o mestre Pote?

Pois bem, o mestre Pote nasceu em Aldeia Nova de São Bento, teve como profissão a de sapateiro e foi sobretudo um homem que muito se interessou pela escrita. 

Sabe-se, também, que foi um sublime contestatário do Estado Novo. Homem hirto com as suas convicções políticas, o mestre Pote debatia, clandestinamente, as suas teorias assumidas como revolucionárias.

As barbearias, à época, eram antros onde se concentravam os chamados revolucionários de um regime que ditava despotismo numa sociedade marcada, na altura, literalmente por extratos sociais. Nessas recuadas eras, as barbarias, locais de ajuntamentos, eram propícias para um debitar de ideias, tanto assim que os caixeiros-viajantes eram habituais “fregueses”. Levavam e traziam notícias tidas como proibitivas para uma sociedade que se via sistematicamente vigiada pela então polícia do Estado, a PIDE.

Mestre Pote, homem então da escrita, lá debitava crenças políticas que a sua alma encarecidamente lhe pedia. Chegou, inclusive, a trabalhar para o jornal “Avante”. 

Virtudes de um tempo onde as pessoas que sabiam ler e escrever eram raras. Atendendo à época vivida, quase se contavam pelos “dedos de uma mão” os jovens que frequentavam a escola primária. O trabalho no campo, como pastores, porqueiros, vaqueiros os almocreves era o destino da juventude, ou como aprendizes de sapateiro, abegões, ferreiros, caixeiros, carpinteiros, de entre outras profissões que evitavam o árduo trabalho nos campos.

Hoje, os tempos são naturalmente antíteses de um passado que deixou profundas raízes.

Sapateiro, uma nobre profissão


A profissão de sapateiro assumia-se, em tempos, como nobre! Sou de um tempo em que as sapatarias proliferam na aldeia. Lembram-se? De um lado, estavam os mestres, senhores já conhecedores da arte, e do outro, os aprendizes. 

Tenho uma vaga ideia que a entrada para a oficina de um novato, obedecia a um pedido feito ao mestre supremo, normalmente o dono do espaço, que aceitava ou não o rapaz. Nessa altura os aprendizes não tinham uma jorna fixa, o mestre dava alguns escudos, poucos, para o rapazola se sentir satisfeito e na próxima semana jogar-se com um maior empenho ao trabalho.

A entrada do candidato passava por uma eventual conversa com o rapazito, sendo que o mestre, já conhecedor da matéria, colocava-o à prova, questionando-o acerca do trabalho que por ali se fazia, a qualidade das peles para o manusear perfeito de um bom par de botas, ou de butes, das formas utilizadas para o trabalho cuidado do calçado, das meias solas que constantemente eram solicitadas, dos remendos que amiúde os homens procuravam no seu calçado, de entre muitos afazeres que os sapateiros se predispunham efetuar.

Neste já longo percurso de vida, revejo imagens que me enchem hoje de saudade, tendo como princípio básico o que foi, na verdade, o primoroso trabalho dos sapateiros. 

De facto, a labuta com os materiais era minuciosa e carecia de mestria. Lembro as opiniões positivas que o homem do campo lançava numa das suas idas às tabernas. “Estão muito bem-feitos esses butes e assentam nos pés como luvas”. E, num desabafo, assegurava: “O mestre sabe da poda”.

Recorro, com a devida vénia, a uma foto do amigo Zé Bica, cuja imagem estava em casa de seu sogro, o mestre Lico, que retrata, no fundo, a azáfama dos mestres e quiçá aprendizes na hora do trabalho. A imagem reporta-se à sapataria do mestre Estevão que se situava na Rua de Fora.

O mestre Estevão é o homem que está à máquina, sendo o mestre Lico o que se encontra em baixo, à sua frente. Aliás, o nome do mestre Lico era o seguinte: Manuel Afonso Arrocho. Um outro nome apurado de entre os sapateiros e aprendizes é do Chico Paulos, de pé, à esquerda.

Abegões (vd. foto acima)

Os abegões eram indivíduos que possuíam bastos conhecimentos de carpintaria e de ferraria. O abegão era conhecedor profundo de uma arte literalmente enquadrada na construção completa dos carros em madeira, sabendo-se que o resto da sua estrutura assentava nos eixos, molas e aros das rodas feitas em ferro.

Os abegões utilizavam como armas de trabalho as serras, um instrumento de corte utilizado para o cortar da madeira, uma forja de ferreiro, o fole, macetas para bater o metal e as tenazes. Numa perspetiva global o abegão possuía uma aptidão natural para a construção de um carro de bestas.

A pintura dos carros era sobretudo original e tinha, normalmente, o cunho pessoal do abegão, ou da oficina que o tinha construído. O artesão, chamemos-lhes assim, era exímio na sua arte e a construção final do carro enchia-o de orgulho.

Recuando no tempo, décadas de 1940 e de 1950, damos conta que em Aldeia Nova existiam vários abegões. Tanto mais que os carros de mulas eram, de facto, muitos. Manuel Palma, pai do Zé Calatróia, cuja oficina se situava na Rua do Sobral, os irmãos Afonso, Chico e Zé, Rua das Flores, Manel Graça, nas proximidades do depósito da água, lá para os lados do Largo dos Madalenos, e o Valadinhas, na Rua Herói Pedro Rodrigues, foram alguns dos protagonistas que se dedicaram inteiramente à profissão de abegões.

Presentemente, a profissão de abegão já fora chã que deu uva. Fica a certeza que os tratores, como é o caso, deram uma nova vida aos nossos campos, sendo que as utilizações dos carros com bestas continuarão perpetuados, apenas, nas nossas memórias.

Carpinteiros



Domingos Barradas, carpinteiro


Profissões que marcaram indeclináveis gerações, os carpinteiros foram mestres numa arte que passava de geração para geração. Em Aldeia Nova o velho ofício perdurou no tempo e ainda hoje se revêm gentes, cujos nomes muito dizem a pessoas que conheceram as origens dos seus antepassados.

A carpintaria era, e é, uma oficina de trabalho onde o carpinteiro trabalha a madeira, em bruto, dando-lhe, naturalmente, o efeito desejado. As peças em madeira eram, e são, trabalhadas com ferramentas próprias, tipo serra, formão, serrote e prumo, de entre outras, pois atualmente existem máquinas próprias que o carpinteiro amiúde utiliza.

No campo da matéria-prima a trabalhar, supõem-se que a cerejeira, o cedro, o eucalipto, o mogno, ou outros troncos de árvores africanas e asiáticas, serão, talvez, as mais utilizadas pelos carpinteiros.

O trabalho numa carpintaria obedece a esforços humanos e, por outro lado, a cuidados redobrados, tendo em conta que o manipular da nova maquinaria é guarnecido de uma proteção, pois um mínimo descuido é causador de danos físicos irreparáveis.

Puxando pela memória. recordo as oficinas dos irmãos Barradas, Zé e o Domingos, junto à Igreja de São Francisco, e a António Mora Barradas e o irmão Zé Barradas, sendo que em ambas se fizeram excelentes mestres, e deixaram a arte para os descendentes.

Latoeiros



Francisco Valente, o latoeiro

A latoaria é uma arte onde latoeiro assume um ofício e se afirma como um verdadeiro artesão. Prepara e repara artefactos, essencialmente em metal, ou lata, ou chapa zincada, que copiosamente as suas mãos, e saber, trabalham com mestria dando-lhes a forma que o cliente previamente solicitou.

Na aldeia existiu em tempos um latoeiro que dava pelo nome de Francisco Valente, sendo que um dos seus filhos, o Arsénio, com ele ainda trabalhou. O Chico Valente, como o povo habitualmente lhe chamava, mexia com um assunto que lhes era peculiar. Lembro, em particular os pequenos cântaros que proliferavam pelos lares aldeões. Ou, de cântaros maiores onde se guardava o azeite.

É verdade que várias peças saíam da sua oficina. Comedouros e bebedouros para o gado se alimentar no campo; alguidares em zinco; os já mencionados cântaros; candeias para iluminar as noites de escuridão; os regadores, enfim, uma panóplia de manufactos que a população por sistema recorria.

Atualmente, esses velhos ofícios desapareceram. Tudo se compra já feito e quase já não há compradores que encomendem essas antigas relíquias.

Fica a presença do nosso conterrâneo Chico Valente para perpetuar essas antigas memórias.

Ferreiros

O mestre Manuel Guerreiro 



O mestre Manuel Guerreiro


Trabalhar o ferro é uma profissão conhecida como milenar. O ferreiro, assim se designava a denominação do homem que utilizando o forno a carvão de pedra moldava o ferro, era mestre num ofício que por vezes passava de geração para geração. Ou seja, uma profissão, digamos hereditária, que passava dos pais para os filhos, indo até aos netos e bisnetos.

A profissão de ferreiro era um misto de artesão com artífice metalúrgico. Aliás, vamos à nossa história e reparamos que já nos tempos dos reis existiam homens, donos de um talento invejável, que trabalhavam o ferro eficazmente. As espadas, exemplificando, eram armas cruciais em tempo de guerras. Mas, todo o trabalho dos ferreiros tinha a sua arte.

Nas oficinas ouviam-se sons barulhentos e o apupar da matéria-prima trabalhada. Na bigorna, com uma ajuda de uma pequena marreta, dava-se o molde a um ferro, em brasa, que, entretanto, havia sido retirado da chama, uma chama que se mantinha acesa por via de um fole puxado por um fio que a mão do homem atempadamente se encarregava de executar o serviço.

Olhemos, com a devida cortesia, para os ferreiros existentes na nossa aldeia em tempos idos: António Paulos, pai do Zé Guerreiro, cuja oficina se localizava na Rua do Sobral, mesmo defronte à moagem (antiga fábrica), o Manel Guerreiro, pai do Chico Guerreiro e do Emiliano Guerreiro, Rua Bento Costa, e o Manel do Facho, pai do Veríssimo e do Zé do Carmo, oficina que se situava na Rua do Rossio, quase em frente da antiga loja do Chico Mendes, foram alguns dos homens que se entregaram à faina de trabalhar o ferro.

Dessas eras recordo-me, por exemplo, do Honório “Coxinho”, um homem que tinha um defeito no pé e que sempre o vimos de pé descalço. Trabalhava, se a memória não falha, na oficina do Manel Facho.

Albardeiros


Albardeiro era um ofício cuja finalidade era fabricar albardas, cabrestos e molins, de entre outros apetrechos para animais de carga, quer estes fossem para transportar mercadorias e pessoas em carros de bestas, quer na labuta dos campos, sobretudo nas lavouras.

Estes apetrechos compravam-se normalmente nas feiras, sendo o caso  da nossa terra na feira anual de setembro que se realizava entre os dias 1, 2 3 de setembro. Ou, quando existia no povoado um albardeiro que fazia a preceito destes utensílios. 

Naquele tempo todos estes apetrechos obedeciam a princípios básicos que se prendiam com as medidas do animal, isto é, com a sua cilha. Mediam os lombos dos animais e lá faziam uma albarda enquadrada com a sua cinta. O método era extensivo aos cabrestos e aos molins. O animal tinha que se sentir confortável com as “peças” que o seu dono havia comprado. Tanto mais que o objetivo prioritário era não ferir o animal. Tudo, no fundo, era analisado ao pormenor e até as próprias arreatas tinham um tamanho que se encaixava com o manejar dos animais.

Em Aldeia Nova temos conhecimento que no antigamente houve um profissional na arte de nome Miguel Albardeiro. Aqui, a meu entender, o apelido de Albardeiro ter-se-á ficado a dever à profissão que ao longo da vida desempenhou.

Alfaiates



Sebastião Barradas, o alfaiate


Eram os tempos em que tudo o que se pretendia com a feitura dos fatos, calças ou uma outra indumentária para homens, o pessoal dirigia-se ao Sebastião Barradas, sendo que a sua casa se situava na Rua do Outeiro, quase defronte à antiga Casa do Povo, hoje sede do Atlético.

O Sebastião Barradas tinha uma oficina de trabalho, sendo coadjuvado no seu serviço de alfaiate pelos filhos e era ali que recebia as encomendas, alinhava a sua labuta diária, cosia, trabalhava carinhosamente as fazendas, alinhava as peças, tirava medidas, recebia os fregueses, fazia as provas, quantas fossem necessárias, por fim surgia a peça de vestuário ajustada ao corpo do cliente.

Sebastião Barradas era um homem muito caseiro. Não frequentava as tabernas e não se lhe reconheceu qualquer filiação a uma das coletividades lúdicas da aldeia. Deixou a sua marca num tempo em que a função de alfaiate era algo rara.

Ele, porém, conseguiu fazer a sua vida a trabalhar peças de roupa, cujo evoluir estava resignado à sua mestria, a uma mesa sobre o comprido, a um giz branco para fazer os talhes das fazendas à medida do corpo de cada um dos seus clientes, a uma máquina de costurar e, sobretudo, a uma dedicação a uma profissão agora condicionada, e adaptada, aos estilistas que hoje existem nas principais metrópoles portuguesas e não só.

Menina Bia, a costureira de vestidos de noiva

Um pouco mais adiante do alfaiate Sebastião Barradas, quase em frente à casa do Zezinho Chora, Rua do Carril, morava a menina Bia. A menina Bia era a costureira perfeccionista dos vestidos para as noivas.

A sua casa era muito frequentada pelas jovens que sonhavam com o dia do seu divinal enlace matrimonial. A menina Bia, uma conterrânea que, infelizmente, tinha um defeito físico num dos seus órgãos inferiores, ou seja, numa das pernas o que motivava que a sua deslocação fosse feita através de duas muletas, foi uma pessoa muito especial para as noivas se sentirem adoradas na hora do seu ambicioso enlace.

Das suas mãos saíam autênticas obras de arte. As jovens noivas acorriam literalmente à menina Bia. Ela, com a sua velha e conhecida calma, lá ia paulatinamente dando corpo, e imagem, a um vestido antes sonhado pela noiva. Provas e mais provas, tirar daqui e repor ali, alfinetes na peça que ditavam o óbvio acerto, arranjos de última hora e eis o sonhado vestido de noiva, em cor branca, que faziam as delícias do encantado rapaz que se via envolvido no traje do seu amor.

O branco significava, e ainda hoje significa, pureza. A jovem, então virgem, embrulhava-se no seu vestido e encantava não o seu amado, assim como os convidados. Fora, então, as mãos da menina Bia que deram fulgor à festança.

Aliás, nessas épocas existiam também outros casamentos, só que esses vínculos tinham um outro requinte, pois a noiva já não era virgem, logo o ir de vestido branco à igreja estava-lhe puramente restrito.


No capítulo das costureiras, recuamos ao ano de 1927 e deixamos uma foto de um grupo de senhoras da nossa terra que marcaram presença num curso de bordados, onde os “professores” eram funcionários da Singer, uma marca de máquinas para costurar que, à época, fazia furor em Portugal.       

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Texto e fotos: © José Saúde (2023).
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Nota de M.R.: