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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26009: S(C)em Comentários (47): Com portugueses deste calibre Portugal estava longe de poder ganhar o que fosse... (Cherno Baldé, Bissau)

1. Comentário do Cherno Baldé ao poste P26005 (*).

Caros amigos,

Aqui vai um pequeno excerto de mais um 'cabeça brilhante' e péssimo patriota, na minha ótica, com ideias estapafurdas que não tinham fundamento ainda em 1966 e nem se confirmaram depois de 1970, uma pena. 

Com cidadãos deste calibre Portugal estava longe de poder ganhar o que fosse, independentemente de as guerras serem justas ou não. A América (EUA) nunca ajuda nenhum país a ganhar uma guerra, a América persegue os seus interesses geoestratégicos no mundo e estava (ontem), está (hoje) e estará sempre pouco se lixando com os interesses dos outros países, incluindo Portugal. (**)

3 de outubro de 2024 às 16:03 
 

"(...) Assim, bem podemos bradar aos quatro ventos que o IN ataca indistintamente brancos e negros. Será que também não haverá maus negros, traidores que a troco de uns patacões estão prontos a lutar (e alguns bastante bem) do nosso lado?

Nem tudo que é do lado de lá está o lugar deles e efetivamente é lá que está a grande maioria. E porquê? Quando nós dissemos aos Felupes, aos Sossos, aos Fulas, aos Balantas, aos Mandigas, a todos esses selvagens que se odiavam de morte, que eram todos portugueses, todos filhos do mesmo Deus que também era o nosso, quando os afastámos dos seus usos, deturpámos e aviltámos os seus sítios, os arrancámos à tabanca e os lançámos na cidade, não fizemos mais que criar as condições que permitiram a atual situação. 

Quando o IN proíbe severamente o tribalismo e os privilégios tribais, chama-os a todos guineenses, dá-lhes o português como língua única, limita-se a continuar aquilo que nós iniciámos e que incompreensivelmente continuamos. 

Quanto a mim, tendo em linha de conta um e outro dispositivo, a derrota é inevitável, a menos que se alterem certos fatores externos que influem decisivamente e são suscetíveis de alterar profundamente a situação. Eles tocam, mas não são eles os donos dos instrumentos.

Parece-me que o fator mais importante é a atitude que os EUA possam vir a tomar. Até que pontos os ianques estarão dispostos a auxiliar-nos a ganhar esta guerra (no fundo, trata-se somente de impedir os outros de a ganharem, já que nós somos insuficientemente incompetentes para o fazer)." (...)


 3 de outubro de 2024 às 16:03 

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (311): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3)

(**) Último poste da série > 22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25967: S(C)em Comentários (47): A visita do Yussuf Baldé, filho do Cherno Baldé, ao Valdemar Queiroz

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25995: Notas de leitura (1731): "O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé", por Catarina Reis; Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
A mãe de Bruno Candé, Cadi Candé Marques, viera do Olossato em amores com um soldado português, depois da rutura, já em Portugal, nascem mais 3 filhos, entre eles Bruno. Apreciei devidamente este ensaio sobre a Lisboa de Bruno Candé, mas lendo inclusivamente a imprensa daquele malfadado dia de julho de 2020, constato que o homicida Evaristo Martinho, antigo combatente é tratado como um doente de ódio racial, não vi ninguém questionar o que podia levar um ser humano, em 2020, dizer publicamente que violou africanas, matou pretos e tem lá em casa uma arma para fazer da sua justiça. Continuamos indiferentes a estes stressados, isto a despeito de lermos os relatos de antigos combatentes que fazem a vida familiar num inferno ou que se tornaram uns vagabundos a viver debaixo das pontes. Há muito mais história no assassinato do malogrado Bruno Candé de que recusamos falar, é mais económico não ter que tratar, é socialmente mais correto iludir que muitos antigos combatentes guardam dentro de si dolorosas cicatrizes na consciência.

Um abraço do
Mário



História de um assassinato onde faz presença a silenciada guerra colonial

Mário Beja Santos


O ensaio O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé, por Catarina Reis, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, espelha esse dado incompreensível da sociedade portuguesa contemporânea e que tem a ver com os traumas que a guerra colonial deixou num número incerto de antigos combatentes. O assassinato de Bruno Candé, em julho de 2020, não tinha razão plausível para acontecer. O assassino era um homem de 76 anos que viu acidentalmente a quem roubou a vida, podemos falar de crime motivado por ódio racial, mas é o rótulo mais cómodo para continuarmos a deixar o esqueleto dentro do armário.

O retrato de Bruno Candé é de um homem bom, um ator dotado, que descobriu, serôdio, a vocação para o palco, que ultrapassou as vicissitudes de famílias disfuncionais, tomado pela curiosidade e pelo entusiasmo fugiu de qualquer abismo de que a Zona J podia favorecer, foi resiliente, três anos antes de morrer, depois de um grave acidente que sofreu, voltou a pôr-se de pé e a amar a vida.

Contribuiu para que a companhia de teatro Casa Conveniente tenha mudado as instalações do Cais de Sodré para o que se teria pensado ser um lugar improvável para fazer teatro, a Zona J.

Catarina Reis conta-nos admiravelmente a história da sua vida, começamos por Cadi Candé Marques, uma muçulmana guineense que se terá embeiçado por um soldado português no Olossato, naquela altura lugar fustigado pela presença do PAIGC no santuário do Morés. Cadi, mãe solteira, e com três filhos nos braços, viajou para Portugal, em 1973, veio só com dois filhos, a Santa Casa da Misericórdia apoiou-a, conheceu o trabalho precário, as limpezas, afeiçoou-se por outro português, dessa relação nasceram três filhos, Bruno foi o primeiro, ocuparam uma casa, veio a filha que ficara na Guiné, Olga, que se revelou uma irmã desvelada com os irmãos mais novos. O pai de Bruno acabou na bebedeira, Bruno e a família fixaram-se na Zona J, em Chelas; ao que consta, tinha o Bruno seis meses e esteve para morrer no Hospital D. Estefânia, houve batismo forçado, na falta de padrinho escolheu-se Santo António, o padroeiro de Lisboa teve direito a altar doméstico, mas a figura do santo seguia sempre no bolso do Bruno.

Adorava representar, tornou-se ator na companhia Casa Conveniente, a companhia transferiu-se para a Zona J em 2014. Entrou numa novela, mas o seu sonho era subir aos palcos, estreou-se no Bairro dos Remolares, no Cais do Sodré, a Casa Conveniente manteve-se aqui durante cerca de 20 anos. Teatro não convencional, pronto a novos desafios, chegou a representar nas prisões. Data de um espetáculo da companhia Rifar o meu coração, no Porto, em 2016, a frase em que Bruno sintetizou toda a sua história, uma consigna: “Eu tinha tudo para dar errado, mas sou o Bruno Candé.”

Um dos pontos mais estimulantes deste ensaio tem a ver com a forma como Catarina Reis põe em cena a Zona J e toda a área de Chelas, com os seus 10 bairros, conta-se a história do plano de urbanização de Chelas, os edifícios da Zona J e quem os habita, fala-se da emigração, das tensões culturais, dos pontos de encontro dos diferentes povos, a natureza das convivências, como a Zona J se reciclou em o Bairro do Condado, onde a cultura esteve ausente até há poucos anos. “A revolução começou há cerca de dez: em 2006, criou-se a Biblioteca de Marvila, seguiu-se o projeto cultural Galeria Underdogs, de Vhils (artista português Alexandre Farto), com o propósito de tornar a arte acessível por via de exibição do trabalho de artistas nacionais e internacionais. Surgiu, então, a Fábrica Braço de Prata, espaço que alberga eventos de todo o tipo. Mais recentemente, ali perto, ouvimos falar da chegada Hub Criativo do Beato, uma incubadora de criatividade situada no antigo complexo fabril do Exército. E, claro, estava presente a Casa Conveniente, a par da companhia de teatro Cepa Torta.”

A Casa Conveniente derrubou muros, instituiu uma cultura de proximidade, apareceram artistas no fado, hip-hop, impôs-se a arte urbana, emergiam as gerações já nascidas em Portugal.

E vamos agora aos três tiros mortais que Evaristo Marinho desfechou em Bruno Candé com uma semiautomática Walther PP de calibre 7,65 mm. As gentes espavoridas, desoladas, perplexas, interrogavam-se sobre o móbil do crime, prontamente se aflorou a palavra racismo. Consultando os jornais da época vejo como se passou por cão por vinha vindimada sobre a saúde mental de Evaristo Martinho. Este antigo combatente encontrara uma vez Bruno na dita avenida de Moscavide, houve uma troca azeda de palavras, Evaristo não se escusou a proferir ofensas e a dizer que matara pretos durante a guerra, isto só para sublinhar que o seu crime de ódio vem de longe, está identificado, existem até associações que procuram acolher antigos combatentes com stress de guerra que levam uma vida de inferno e destroem a família, e há mesmo livros que falam de Evaristos identificados, por vezes autênticos farrapos humanos. Tenho para mim que este ator tão esperançoso, que deixou três filhos menores, um punhado de notas magníficas espalhadas pelas gavetas da sua casa, amável, sonhador, teve um dramático encontro com um desses doentes desse ódio recalcado. E é muito tocante o termo desta narrativa em volta de um homem bom destruído por ódio racial:
“Bruno era o tipo de pessoa que jamais esperava gritos de revolta, canções revolucionárias e homenagens em palco. Jamais pensaria que a história colonial da qual a família nasceu e cresceu foi a mesma que o matou. A guerra levou um português até Cadi Candé Marques, encontro que fez nascer Olga, Carla e Fernando; também foi a guerra que conduziu a guineense até Lisboa, à Zona J. A mesma guerra que tornou um homem revoltado e armado que acabaria por trazer a Cadi a pior dor de uma mãe. O que pensara Candé de um homem que ameaça, a plenos pulmões, ter matados ‘pretos’ na guerra, violado mulheres africanas e ter uma arma em casa pronta a matar outros?
Creio saber o suficiente para adivinhar que Bruno viu neste homem uma amargura curável, travada antes do primeiro tiro, com uma cerveja e uma conversa à mesa.”


De leitura obrigatória para todos aqueles que queiram investigar os porquês de uma guerra colonial onde ainda decorre um sofrimento vivo a que a sociedade se alheia, tratando-o como um mal menor, como uma raiva que gradualmente se extinguirá quando o último antigo combatente fechar os olhos.
Bruno Candé, vítima de ódio racial
_____________

Nota do editor

Último post da série de 27 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25988: Notas de leitura (1730): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1876) (22) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'




Documento real de José I de Portugal (1714 - 1777) que declara: "Aos Cristãos Novos privilegio, per que El Rey lhe concede, que se possam ir pera onde quiserem, com outras mais graças nele conteúdas". (A distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi abolida por lei do Marquês de Pombal, de 25 de Maio de 1773)

Fonte: Wikimedia Commons  (Com a devida vénia...)

 

Contos com mural ao fundo > O Judeu 

por Luís Graça (*)


O seu nome era Esaú. O pai, Jacó. E o avô era só conhecido pelo apelido da família paterna,  Abraúl. 

Estávamos no início dos anos 20 do século passado. Esaú nascera no início do reinado do senhor dom Carlos, logo a seguir ao Ultimato Britânico. Nesse tempo já não havia a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Ou, pelo menos, esbatera-se muito, desde o Marquês de Pombal. A Inquisição acabara há 100 anos, com a revolução liberal,  ou seja, há quatro gerações atrás.

Mas, mesmo assim, tinham ficado os preconceitos contra os judeus portugueses e os seus descendentes, pelo menos entre as classes mais baixas. Ainda se ouvia, em noite de temporal, o povo praguejar: "Até parece que morreu um judeu!".  E, em casa, admoestavam-se as crianças quando faziam... "judiarias".

A família Abraúl, segundo contava a avó Gertrudes, descenderia de judeus sefarditas de Córdoba, no sul de Espanha. Já os Oliveira, os do seu lado,  seriam cristãos novos. No tempo do senhor dom João II, os de Córdova haviam-se instalado em Portugal, fugidos do cruel édito dos Reis Católicos de Espanha. Ter-se-ão espalhado por Lisboa e vilas ribeirinhas do estuário do Tejo. Um ramo fixou-se em Alenquer. Outros tantos  terão seguido as rotas do Império e aproveitado as novas oportunidades de negócio, nomeadamente como  mercadores, prestamistas  e artesãos. 

A família (tanto dos Abraúl como dos Oliveira) não tinha qualquer pergaminho, manuscrito ou papel que comprovasse a sua origem. Era tudo da tradição oral. Nem a avó Gertrudes fazia a mínima ideia por onde os seus antepassados terão deixado os ossos, ao longo daqueles quatro séculos e tal. Espalhados, por certo,  por esse vasto e desvairado mundo, como muitos dos outros portugueses de quinhentos, seiscentos, setecentos…

A avó era do ramo de Alenquer. Gostava muito de contar ao Esaú, em pequeno, histórias, algumas seguramente fantasiosas, sobre os "marranos", os "cristãos-novos" e as perseguições a que a "gente da Nação" sofrera às mãos da Inquisição. "Marrano" era um termo que ela nunca pronunciava: considerava "aviltante" para designar os avós dos seus avós.

No passado, o vocábulo "marrano" (porco) era usado pelos cristãos-velhos para injuriar e discriminar a "gente da Nação", os de origem hebraica, e que em Portugal e na Espanha haviam sido convertidos ao cristianismo pela força, enquanto outros haviam sido forçados ao exílio (em França, Holanda, Norte de África, Império Otomano, etc.). 

− E até levavam a chave de casa!...

E acrescentava a matriarca:

− Sabes, Esaú, até na desgraça os seres humanos são capazes de serem ingénuos, para não dizer estúpidos. Levavam a chave de casa, imagina!… Pobres coitados... Eram como o cordeiro da Páscoa ("Pessach", para os hebreus) que, inocente, não sabe que vai ser sacrificado para a festa...

E, depois, batendo com o punho na mesa, indignava-se:

−  São tão ou mais antigos que os outros povos ibéricos. Depois da queda do templo de Jerusalém, acompanharam as legiões romanas, e aqui viveram e conviveram com outros povos invasores, como os visigodos e os mouros.

O Esaú nunca tinha ouvido,  antes,  falar da Inquisição, dos "marranos", nem de "cristão-novos" e "cristãos-velhos" e das tropelias a que foram sujeitos muitos dos seus antepassados. Na Escola Conde Ferreira em Alenquer (a primeira a ser construída por legado do grande benemérito José Ferreira, apoiante da causa da Dona Maria II), o Esaú aprendeu a ler e a escrever. Mas onde era mesmo bom era nas contas, na tabuada, na aritmética.

A avó, Gertrudes Oliveira, não tinha andado na escola mas era letrada e viajada, como as meninas das classes abastadas  da época. O pai dera-lhe uma educação esmerada e bastante livre para os padrões da época, viajando de barco a vapor e, depois, de comboio, entre algumas cidades e estâncias termais da Europa. Expressava-se fluentemente em francês. O marido, Abraúl,  era primo em segundo ou terceiro grau.

Ao virar do século (teria o Esaú dez anos) mudara-se a família Abraúl para uma vila mais a Norte onde o avô iria construir uma moderna "caldeira de queimar vinho",  capaz de produzir muitas pipas de álcool. A vitivinicultura nacional estava em recuperação, depois da desgraça da filoxera (c. 1887), era precisa então muita aguardente vínica para enriquecer o vinho do Porto, a nossa principal exportação na época. 

A região do Oeste tinha excelentes condições para o aumento do negócio da destilação à escala industrial. Foi uma coisa nunca vista, lá na terra,  com tantos carros de bois a carregar e descarregar tantas estruturas e peças em cobre, tubos, retortas, alambiques, torneiras,  caldeiras, serpentinas, etc., importadas de França e trazidas de barco. E ferros, para construir depósitos para o vinho. E cimento ( da fábrica "Tejo", em Alhandra). 

Foi construída uma grande destilaria, em alvenaria, um edifício, imponente, de elevado pé direito, ostentando ao alto o nome da firma, Abraúl & Filho Lda. A inauguração foi um evento social, como noticiou o jornal da terra.

Infelizmente os pais do Esaú irão morrer, ambos, com a pandemia da gripe espanhola. Aos 20 anos, o rapaz vê-se inesperadamente à frente da firma. O que lhe valeu é que o patriarca Abraúl ainda estava vivo, pelo que beneficiou do seu conselho, experiência e capital de relações pessoais, comerciais e políticas (morreria em 1930, aos 90 anos). Por sua vez, a matriarca, a avó, essa quase que chegaria, já centenária, às vésperas da II Guerra Mundial.

Ninguém sabia a origem da riqueza da família. Era o segredo mais bem guardado. A mãe da avó Gertrudes ter-lhe-á deixado, em herança, umas boas "barras de ouro". Falava-se do saque de igrejas, conventos e palácios no tempo das lutas liberais. Mas isso eram acusações mútuas que faziam "malhados" e "corcundas", liberais e absolutistas. 

A avó falava do "mealheiro do Brasil", deixado pelo avô do seu pai, dono de engenho e de escravos.  Seriam "libras em ouro"... Mas que importava a rota do dinheiro  ? Tinha chegado, por herança, às mãos do Esaú, de resto filho único de Jacó e Rebeca. E deveria chegar ao seu herdeiro, mais velho, se algum dia o chegasse a ter, como os Abraúl e os Oliveira tanto ansiavam. 

−  E depois o dinheiro é fêmea!  −  lembrava o avô Abraúl, transmitimdo-lhe de seguida, ao seu neto querido,  a cartilha que já vinha dos seus progenitores. "O dinheiro não é de que o ganha, mas de quem o poupa ... e o investe, e o multiplica por dois, três e mais".

Na nova terra da Estremadura que o acolheu, o Abraúl era conhecido pela alcunha de "o Judeu" ou então "o Abraúl da caldeira".  Essa alcunha passou para o neto, "Esau, o Judeu" ou o "Esaú da caldeira".

O Esaú não frequentava a igreja, não ia à missa, tal como o pai e o avô. Mas as mulheres da casa salvavam a "honra do convento", isto é, as aparências sociais. 

De resto, os novos tempos, com a República, eram de moderado anticlericalismo e de maior tolerância religiosa. A terra tinha alguma tradição republicana, desde pelo menos o Ultimato Britânico. Os grandes proprietários e os últimos nobilitados do final da Monarquia (os tais que tinham comprado "títulos em saldo") eram poucos, comparados com os de Alenquer. 

Predominava a pequena e média agricultura,  o pequeno comércio, os ofícios tradicionais, uma incipiente indústria e alguns funcionários públicos, incluindo o juiz da comarca, "ainda moço e de ideias arejadas" que frequentava a casa, o "casarão", da família Abraúl, cuja hospitalidade era procurada e reconhecida pela elite local.

Na família ainda era pela via matrilinear (ou "uterina", dizia o avô, brejeiro), que se transmitiam algumas tradições e sobretudo memórias dos antepassados. Os homens tocavam os negócios, ganhavam dinheiro, sustentavam a casa…

− E elas eram as guardiães do templo da memória!  − orgulhava-se a matriarca, uma feminista "avant la lettre". E sufragista!

Da celebração das festividades hebraicas já ninguém tinha a mais pequena memória. Afinal, as duas famílias sempre foram "cristãs-novas" em Portugal. A avó Gertrudes (um nome germânico, talvez visigótico) é que desenterrara o passado, quando veio a moda do sionismo, em finais do séc. XIX. Até então não havia uma consciência nítida da sua origem hebraica, apesar dos nomes de muitos dos seus membros, inspirados em figuras bíblicas.

A avó Gertrudes tinha nascido no final das guerras civis de 1828/34. Lembrava-se do pai dizer que, nessa época, "o clero andava assanhado, contando, de cacete na mão, as ovelhas malhadas" (sic). O pai combatera ao lado das tropas de Dom Pedro e fora dos primeiros a atravessar o rio Tejo e a entrar, vitorioso, em Lisboa, em 24 de julho de 1833, num destacamento avançado das tropas do duque de Terceira.

O Esaú, convenhamos,  não era dado às letras nem ao estudo da história, para grande desgosto da avó, que o amava como se fosse um filho. Casaria com uma "gentia" (sic), por amor, é certo: a primeira professora da terra, a ser formada pelo Magistério Primário, filha de um dirigente local do Partido Democrático, do façanhudo Afonso Costa.

Na terra sempre foi considerado "rico", "filho de rico", se bem que "forreta". Não se lhe conheciam extravagâncias. Nem luxos. Não bebia nem fumava. O único defeito que podia ter era o seu lado "femeeiro". Na tradição da família, emprestava dinheiro a juros, a pessoas conhecidas e de confiança. Era prestamista. Aceitava joias e ouro. Na época não havia bancos na província e a crise financeira dos anos 20 deu cabo de muitas poupanças e patrimónios.

O maior erro da vida do Esaú, entretanto,  terá sido o de dar sociedade a outro dos caciques da terra. Meteu-o como sócio, minoritário, da firma Abraúl & Filho Lda, pelo seu jeito para a parte comercial e as suas ligações aos meios políticos e militares mais conservadores de Lisboa. 

O sócio, o Sequeira, tinha sido o primeiros dos republicanos da terra a apoiar publicamente o golpe militar do 28 de maio de 1926. Faria depois carreira no Estado Novo dentro dos organismos corporativos. 

Esse sócio era "um dos viúvos da gripe espanhola". Mantinha uma amante, mais nova do que ele, antigo combatente da Grande Guerra. Oficiosamente,  e para salvar as aparências, a amante era a "governanta" da casa. Uma das suas criadas "de dentro", que não gostava da "nova patroa", foi meter nos ouvidos do senhor Sequeira que "a governanta andava a fazer olhinhos ao Judeu",

Numa terra pequena e de moral hipócrita, não era preciso muito para que constasse que "o Judeu" andava a infringir a Tábua dos 10 Mandamentos de Moisés, desejando a mulher do próximo…

O Sequeira era ciumento, como qualquer macho que se prezasse naquele tempo. Retorceu o farto bigode e fez questão de tirar "a prova dos noves aos dois safados". Montou a ambos uma armadilha. Aparelhou o cavalo e disse, lá em casa e na caldeira, que tinha de ir a  Lisboa tratar dos "negócios da porca da política", pelo que se iria ausentar por uma semana, pelo menos. 

Montou, cedo, a cavalo, percorreu a artéria principal da vila e perdeu-se na estrada, em  macadame, que levava à estação de comboio, já no concelho vizinho. Pela calada noite, e com a preocupação de não ser visto, deixou o cavalo nas imediações, e entrou furtivamente em casa. Foi encontrar os dois na sua cama, o "judeu" e a "governanta".

 −  Esaú, meu cabrão, nunca pensei!...

E desfechou um tiro de revólver, à queima roupa, nos órgãos genitais do sócio.

O grito de dor, lancinante, que o Esaú soltou não acordou a criadagem a quem a "governanta" tinha dado folga de um ou dois dias, na véspera de feriado do 5 de Outubro.

Por sorte e conveniência do "triângulo amoroso",  o escândalo foi abafado. O João Semana da terra, amigo dos dois, e vizinho do Sequeira, veio de pronto, com a maleta dos primeiros socorros. Tinha sido alertado pela "governanta", de roupão, em estado de histeria.

− Tiveste sorte, meu sacana. − Por um tris, não foste capado!... A bala, de pequeno calibre, passou de raspão por um dos teus tintins. Fez estragos mas ainda tens o sobresselente… Vamos lá estancar o sangramento. Pára de berrar e morde-me a toalha com força!...

O Sequeira, com as mãos na cabeça, deambulava pelo quarto, agitadíssimo, mal acreditando que podia ter morto o seu sócio e rival…

− Bem me tinham dito que não se pode confiar nos judeus!

O crime (aliás, o "duplo crime") ficou confinado às quatro paredes daquela alcova, de janelas largas e pesados cortinados. Um rápido acordo foi selado por intermediação do João Semana: desapartava-se a sociedade; o Sequeira recebia uma indemnização, em dinheiro, para reparar a "ofensa  à sua honra"; o Esaú aos costumes não dizia nada,,, enquanto a "governanta" dava sumiço logo nessa noite. 

À cautela, o médico levou o seu doente ao Hospital de São José, uns dias depois, para ouvir a opinião abalizada de um seu antigo mestre da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. A boa notícia é que não havia infeção, que o ferimento iria sarar e não havia razão, em princípio,  para o homem ficar com medo de vir a sofrer de disfunção erétil… A má notícia, é que  muito provavelmente já não poderia procriar no futuro…  

Com a sua extraordinária intuição,  e o "olho de lince" (nunca usou óculos aquela mulher!), acabou por "tirar nabos da púcara" do João Semana de quem, de resto, era uma  "alegre paciente e amiga íntima", tendo ficado a par dos pormenores desta tragicomédia. 

Do alto da árvore da sua sabedoria, e com a autoridade dos seus 90 anos, a avô Gertrudes iria, uns tempos depois, dar um valente puxão de orelhas ao seu "netinho", acabrunhado e humilhado:

− Esaú, Esaú, meu filho!.. Eu bem te ensinei a nunca misturar alhos com bugalhos. De futuro, lembra-te sempre do meu conselho :  "Nunca te metas com a mulher do teu amigo, nem muito menos com a amante do teu sócio... E muito menos se ela for gentia"!

A matriarca tinha-se, entretanto,  convertido ao judaísmo ainda antes de enviuvar. Era, estatisticamente falando, a única judia da terra. E com tal constava do censo de 1930.

Mas a história do "Esaú, o Judeu" ficaria por aqui, se não tivesse entretanto acontecido , uns anos depois, a II Guerra Mundial. A matriarca, felizmente, foi poupada às notícias dos seus horrores. O ex-sócio do Esaú, esse, era agora presidente do Grémio da Lavoura local e um eufórico germanófilo. Curiosamente, já há muito havia esquecido que lutara contra os alemães em Moçambique, tendo sido ferido e feito prisioneiro em Negomano, em 25 de novembro de 1917 (conforme constava do monumento local aos heróis das guerras de África).

O Esaú,  por seu turno, continuava a emprestar dinheiro a juros e a lucrar com a sua "caldeira de queimar vinho" durante a guerra. Era, porém, um fleumático anglófilo. E nunca mais quis ter sócios em negócios. 

Ambos, até por rivalidade, acabaram por comprar, do seu bolso,  aparelhos de telefonia com altifalantes, colocados nos extremos opostos da Praça da República. Claro, com a anuência do presidente da Câmara Municipal, que era por sinal um oficial do exército, já na reserva. Era um "serviço público",  que se prestava ao povo da terra, concordou o autarca. 

A rádio ainda era um luxo para a maior parte da população. O aparelho do "Judeu" estava sintonizado para a BBC e a Voz da América. A do Sequeira para Roma e Berlim. E havia sempre ouvintes para todas as quatro emissoras: quando uma acabava, o grupo mudava-se para o canto oposto. 

Os germanófilos, mesmo assim, uma minoria, refrearam o seu entusiasmo quando as coisas começaram a correr mal para as potências do Eixo.

A celebração da vitória dos Aliados, em 7 de maio de 1945,  também foi comedida, quando a GNR recebeu ordens para dispersar uma pequena multidão que veio espontaneamente para a rua dar vivas aos vencedores. "A nossa política é o trabalho, é o trabalho!", dizia o capitão que estava à frente da edilidade, ajudando a enxotar os populares (que só podiam ser do "reviralho") bem como a banda filarmónica.

A mulher do Esaú, a "senhora professora", tinha muita pena de "não poder ter filhos"... E achava que a "culpa" era dela... O casal acabaria por receber e adotar, legalmente, um menino austríaco judeu, órfão de guerra. Uma linda criança, "lourinha e de olhos azuis". Cresceu mas não quis ser engenheiro:  formou-se em línguas na Universidade de Coimbra. Nunca manifestou interesse pelos negócios do pai adotivo. 

Entretanto, em 1973, rebenta o "escândalo do vinho a martelo" (a produção e destilação de misturas hidro-alcoólicas, com adição de açúcar). A inspeção das atividades económicas acabou por mandar a GNR selar a caldeira da firma Abraúl & Filho Lda. 

O Esaú, na altura,  também já tinha problemas com o delegado de saúde por causa das descargas para o rio e os maus cheiros da caldeira. A sua saúde mental degradou-se. Tinha 83 anos. O filho estava fora, em Angola, para onde havia sido mobilizado: comandava uma companhia de caçadores, como capitão miliciano. 

Inesperadamente a terra foi abalada com a trágica notícia do suicídio do "Judeu", numa trave alta da sua caldeira... A esposa enlouqueceu e viria a morrer em 1975.  O filho ainda veio a tempo, de Luanda, para assistir ao seu funeral.

Em 1977, o ex-capitão aliena o essencial do património da família. E fixa-se em Israel, onde funda uma empresa de guias e intérpretes de língua portuguesa. E deve ter levado com ele o famoso "mealheiro do Brasil"... 

Por volta de 1980 a caldeira, que não tivera comprador, já estava abandonada e vandalizada. Todo o recheio, em cobre, começou a ser paulatinamente roubado. Vinte anos depois o edifício era uma ruina completa, obrigando o município a intervir e a tomar posse administrativo do que restava,  bem como do terreno à volta. 

Acabou por construir-se, já no início do novo milénio, a universidade sénior. Mas nem toda a gente se atrevia a lá ir ou passar por lá, sobretudo à noite.  O sítio ficou amaldiçoado. Os idosos diziam que à noite se ouviam vozes. Era "a alma do Judeu Errante"...


© Luís Graça (2024). Quinta de Candoz, 17 de setembro de 2024.
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quinta-feira, 13 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses

 1. O Alberto Branquinho, que não nasceu por acaso em Vila Nova de  Foz Coa (hoje cidade),  e que recebeu no seu ADN cultural o melhor do Alto Douro e da Beira Alta,    não me levará a mal que eu lhe vá "roubar" mais um dos seus cerca de 60 microcontos para, com ele,  engrossar e enriquecer a nossa série "Humor de Caserna" (*).

A sua excecional capacidade de "observação participante" e a sua fina ironia não escapam à atenção do leitor, que vai ler e saborear estas sete linhas deliciosas. 

Nunca,  em tão poucas palavras,  deparei com  uma tão magistral diatribe  contra a linguagem brejeira e sobretudo grosseira, para não dizer, alarve, utilizada por alguns de nós contra os mais fracos (bajudas, djubis, mulheres). 

Outros chamarão  racismo subliminar, não explícito,  a estes piropos  sexistas, que todos ou quase todos ouvíamos (e tolerávamos) no quartel ou na tabanca,  da parte de alguma tropa metropolitana, culturalmente mal preparada para lidar com pessoas de outros usos e costumes,  etnias e religiões (mesmo que nossas "amigas",   como era o caso dos fulas).

Quem ler a correr este microconto pode não dar-se conta do sentido da "boca" do sargento: "bó tem sanchu na barriga"... Mesmo a "brincar", em "tom brejeiro", em linguagem de caserna, é coisa que não se diz em parte alguma a uma mulher grávida..."Sanchu", como explica o autor, na lista de vocábulos e expressões crioulas, que vem no final do livro, quer dizer "macaco" (do francês. "singe").  É ofensivo e  tem, obviamente,  uma conotação racista.

Enfim, este microconto é também uma homenagem a mulher guineense do nosso tempo,  que não tinha papas na língua e era capaz de dar respostas de superior inteligência a uma "tuga" tonto, inconveniente,  desbocado e abusando da sua aparente situação de "superioridade" como militar... 

O título também é uma delícia, "Paternidade instantânea"...




Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".


Paternidade instantânea

por Alberto Branquinho

Aproximava-se uma mulher em estado adiantado de gravidez. Caminhava com dificuldades, amparada a um muro.

O sargento, que estava a observá-la:

− Ó meu alferes, escute lá esta.

O sargento dirigiu-se, então, à mulher grávida:

− Eh, mulher! Bô tem sanchu  [macaco] na barriga!

É, noss' sargenti. Fidju  [filho]  di bó.

 

Fonte: Adapt. de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 131.

(Título, revisão / fixação de texto, parênteses retos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25631: Humor de caserna (65): Afinal, Deus não gosta dos mais velhos, diz o nosso Cherno Baldé...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/06/guine-6174-p25631-humor-de-caserna-65.html

sábado, 9 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25252: Historiografia da presença portuguesa em África (413): O luso-colonialismo nunca existiu: para África, só desterrado ou com "carta de chamada" (António Rosinha / Valdemar Queiroz)


Cartaz (detalhe) do filme de Marta Pessoa, "Rosinha e Outros Bichos do Mato" (Documentário, 101 m, Portugal, 2023, Produção "Três Vinténs"):

(...) "Em 1934, o Estado Novo apresenta-se ao mundo com uma Exposição Colonial onde o viril Império português exibe como símbolo máximo Rosinha, uma nativa guineense. 'Rosinha e Outros Bichos do Mato'  revisita este acontecimento para entender o que nele se construiu e como ainda hoje pode ecoar no pretenso 'racismo suave' dos portugueses." (...)  (Fonte: Três Vinténs)


1. Comentários do António Rosinha e Valdemar Queiroz ao poste P25244 (*);

(i) Antº Rosinha:

Estes luso-cariocas de 1930, de colonialistas não tinham nada. (Colonialismo = A exploração desenfreada dos recursos dos territórios ocupados.)

Imaginemos a felicidade e a paixão destes luso-cariocas embasbacados com as riquezas da autossuficiência da mancarra, da cachaça de cana e do coconote e com aquelas descomunais estradas da Guiné, isto em 1930, quando desde 1880 os outros só já pensavam nas minas do ouro e diamantes

Aliás, havia em todas as gerações de "portugueses ultramarinos", uma determinada classe de pessoas que de colonialistas não tinham nada, eram simplesmente e apenas uns sonhadores "tropicalistas" acomodados aqueles paraísos tropicais, Bolama, Ilha de Luanda, Lourenço Marques, Rio de Janeiro e as terras de Jorge Amado.

Tropicalista é uma alcunha que inventei para gente que gostava de chabéu, mas tenho outros nomes, colonialista eram os exploradores europeus que dividiram África e deixaram os Bijagós para a gente.

E ainda obrigaram a gente a mandar para lá o Teixeira Pinto.

Ás vezes dá para pensar se não seria esta geração de apaixonados tropicalistas, contemporâneos de Salazar, e também de Henrique Galvão e Norton de Matos, etc. se não teriam inspirado Salazar a dar o grito "para Angola e em força" em 1961.

7 de março de 2024 às 11:41 

(ii) Valdemar Silva:

Antº. Rosinha essa das colónias e do colonialismo é sempre a mesma coisa para quem quer avaliar a "habilidade de chico-esperto",  transferindo de um dia pra outro o ministro das colónias para ministro do ultramar, mas não desfazendo a ideia de "Império" bem a maneira do salazarismo.

Em 1940 não se colocava esta questão, havia colónias e prontus.

No Cartaz da grande Exposição do Mundo Português, na Secção Colonial havia "GinKana de Negros - com várias provas originais". Não sei se havia algum com o cantar à desgarrada de brancos na Secção de Minhotos.

Saúde da boa
 

(iii) Antº Rosinha:

Valdemar, tens razão, devia de haver na exposição minhotos a cantar à desgarrada, pois que o império era do Minho a Timor.

Mas aí talvez a imaginação dos apaixonados pelo ultramar não chegasse a tanto.

Mas nas colónias havia minhotos e malta do Norte suficiente para não deixar morrer o vira do Minho e os pauliteiros de Miranda.

(iv) Valdemar Silva:

Pois, pois Rosinha, mas eram todos patrões e não estavam virados para essas brincadeiras.

Em Bissau, não me lembro o Restaurante, encontrei um meu conhecido empregado da mesa da Portugália (Arroios) a servir, também, às mesas, e como já não estava na tropa fiquei admirado.

Explicou-me que ele e outro tinham comprado o trespasse do Restaurante e um ficava ao balcão e outro servia às mesas.

Julgo que era difícil encontrar um empregado de mesa minhoto a servir num restaurante em Luanda ou Lourenço Marques, ou noutras cidades de Angola ou Moçambique.


(v) Antº Rosinha:

Valdemar, restauração, comes e bebes, do bom e do melhor, em Luanda, em São Paulo e Rio de Janeiro, era ou foi domínio de Minhotos e transmontanos.

Mas em Angola, Nova Lisboa, Sá da Bandeira e localidades mais pequenas, era gente do Norte donos de restaurantes, hoteis pensões etc.

Metia um ou outro beirão, mas muito pouco.

Em São Paulo, (10 Lisboas?) em cada esquina um minhoto ou um transmontano.

Mas ainda havia grandes supermercados de gente do Norte, acima do Douro, principalmente.

Em Angola vi gente começar do zero e irem longe, e outros darem com os burrinhos na água.

Vou-te contar uma de um retornado de Barcelos, que me serviu muitas imperiais de bandeja na mão em Luanda na Ilha, simples empregado, que se deslocava numa motorizada daquelas que faziam imenso barulho que me acordava de manhã, era meu vizinho, e me acordava às duas da manhã quando largava a cervejaria.

Pois com o 25 de Abril veio para Portugal e não largou a bandeja., Largou apenas a tal motorizada e encostava um bruto BMW à porta de um bar restaurante que explorava por conta própria, bem junto à estação de comboio movimentadíssima, de Vila Franca de Xira.

Eu,  que tinha vindo recentemente do Brasil, para onde tinha emigrado com o 25 de Abril, fiquei boquiaberto, quando precisei de apanhar aquele comboio, vou tomar a minha bica, e dou de caras, na caixa registadora,  com o meu antigo vizinho de Luanda, e perguntei-lhe pela motorizada.

Como havia mais de 5 anos que não nos viamos, foi aquele surpresa e eu já não apanhei o comboio, ele entregou a caixa registadora à mulher e contou-me entre outras coisas como de motorizada velha foi parar ao BMW novinho, à porta do bar, café, restaurante.

Bastante mais novo que eu, sei que numa das minhas vindas da Guiné, fui visitá-lo, já tinha passado o negócio...imagina se tiver saúde!

Tive colegas minhotos, de profissão, retornados, todos com golpe de vista.

Gente do Norte é que povoou por toda a parte.

8 de março de 2024 às 19:50 

(vi) Valdemar Silva

Rosinha, tudo o que explicas não me faz confusão ou sequer duvidar da grande valia dos minhotos, transmontanos ou beirões.

A minha dúvida é ter-lhes passado pela cabeça ir trabalhar para África para patrões como por cá devia acontecer. As suas ideias eram de ir ou ficavam depois da tropa como patrões de qualquer actividade.

Contaram-me que a falada "carta de chamada" era exigida a quem queria ir trabalhar,  por ex., para Angola desde que apresentasse o que ia fazer, dado não haver lugar para brancos, além do Estado, em profissões por conta de outrem. E depois sem trabalho viviam de quê, diziam os exigentes.

8 de março de 2024 às 23:12 

(vii) Antº Rosinha:

Carta de chamada era um documento de uma pessoa estabelecida, comerciante, fazendeiro, proprietário em que se responsabilizava durante um período (tenho na ideia que era meio ano) pela estadia do emigrante, e caso este não se adaptasse responsabilizava-se em "devolvê-lo" â procedência.

Foram muitos menores, tipo sobrinhos para casa de tios, ou irmãos, em que estes faziam o tal documento de responsabilidade.

Também se podia emigrar para as colónias, sem carta de chamada, mas tinha que deixar como caução dinheiro para viagem de regresso, caso não se adaptasse, ou as autoridades achassem inconveniente a sua presença, penso que era ao fim de meio ano que podia levantar a caução.

Eu tinha lá um irmão, foi fácil.

Para ir para o Brasil havia uma coisa semelhante.

Valdemar, só estranha essa da carta de chamada, que já vem essa norma desde tempos "dos reis" quem nunca esteve perdido num deserto, sozinho sem bússula.

Até quem ia das nossas aldeias para Lisboa, ia dirigido a algum parente ou conterrâneo.

Com uma cartinha com a morada e o nome da pessoa.

Mas havia ainda a história dos colonos, mas isso é outra história em que ultrapassa o próprio Salazar.

9 de março de 2024 às 11:13
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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25150: Blogues da Nossa Blogosfera (187): "Des Gens Intéréssants", de João Schwarz da Silva (Bruxelas, nosso grão-tabanqueiro n.º 768, desde 30/3/2018) - II ( e última) Parte


Música Klezmer na casa de Clara Schwarz da Silva em São Martinho do Porto, por João Graça (violino). 7 de agosto de 2007. A mãe da Clara era russa, de Odessa, hoje Ucrânia. A Clara também formação musical superior, tocava violino. O João tocou o "Bulgar de Odessa", um tema "klezmer" clássico que a emocionou...(Tinha então 92 anos, morreria em 2016, com 101.) (LG)

Vídeo (1' 41'') / You Tube > Luís Graça 




I. Este e outros são alguns dos recursos, em suporte audiovisual, que estão disponíveis  no fabuloso blogue do nosso amigo João Schwarz da Silva (*), irmão do nosso Pepito (Bissau, 1949-Lisboa, 2012), filho de Clara Schwarz (Lisboa, 1915  - Oeiras, 2017) e de Artur Augusto Silva (Ilha Brava, 1912- Bissau, 1983.    

A sua antiga página sobre histórias de vida de gente "interessante" (seus familiares, uns mais próximos, outros mais afastados)  passou a ter um novo endereço:

https://des-gens-interessants.blogspot.com

Eis,  a seguir, mais  alguns vídeos (em geral, em português, alguns em francês), que podem interessar os nossos leitores. Recorde-se que, em vida do Pepito e da Clara Schwarz, havia um dia de agosto em que a casa do Facho, na Praia de São Martinho do Porto, se transformava em Tabanca de São Marinho do Porto...
 
Alguns de nós tivemos o privilégio de conhecer um pouco melhor o Pepito e a sua família, na inbtimidade,    a começar pela matriarca, a dra. Clara Schwarz da Silva (durante vários anos, até à sua morte, aos 101 anos, em 2016, foi a "decana da Tabanca Grande").

Estamoa falar da famosa "casa do Cruzeiro", em São Martinho do Porto, no sítio do Facho, uma casa que o pai da Clara (e avô do Pepito), o engenheiro de minas Samuel Schwarz (1880-1953), judeu de origem polaca, lhe comprara quando ainda solteira, antes da II Guerra Mundial...

Por seu turno, o pai do Pepito, Artur Augusto Silva (1912-1983) tinha sido advogado em Alcobaça e em Porto de Mós no pós-guerra. O casal viveu em Alcobaça entre 1945 e 1949, antes de partir para a Guiné (ele, em finais de 1948 e o resto da família em 1949). Foram amigos pessoais e visitas de casa do pintor Luciano Santos (Setúbal, 1911-Lisboa, 2006), que vivia então em Alcobaça. (**)
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  • Apresentação do livro “La Découverte des Marranes”, Musée d’Art et d'Histoire du Judaïsme de Paris, 18 de fevereiro de 2016 (em francês)

https://www.mahj.org/fr/media/quand-le-portugal-redecouvre-ses-marranes

  • Entrevista de Clara Schwarz, José Melo e Antonieta Garcia sobre a vida e obra de Samuel Schwarz. Filme realizado pela Comunidade Israelita de Lisboa em 2004

Entrevista de Clara Schwarz por Jose Melo e Antonieta Garcia

  • A comunidade marrana de Belmonte em Portugal, por João Schwarz (em francês):

https://www.youtube.com/watch?v=xCJWe8ZPjfM&t=1s

  • Entrevista de João Schwarz sobre a doação da familia ao Tikva Museu Judaico de Lisboa

Entrevista de João Schwarz para o Museu Judaico de Lisboa

  • A cidade de Tomar, a sua sinagoga e a sua história, por Samuel e João Schwarz. Filme de Livia Parnes (em francês)

https://www.youtube.com/watch?v=UnqmXYvRiJk&t=7s

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25102: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bissau, em 1969: (i) o "ataque" a Bissalanca em 19/2/1968; (ii) a carestia de bens essenciais como o arroz; (iii) a discriminação da população local no acesso aos cuidados de saúde; (iv) casos de violência verbal e física contra civis...


Vasco Cabral, membro do "bureau" político do PAIGC.
aqui em missão no exterior. Foto, s/d, s/l, cortesia do portal
Casa Comum >Arquivo Amilcar Cabral.
(Reeditada pelo Blogue Luís Graça
& Camaradas da Guiné, 2024)

1. É sempre interessante conhecer o que é que, numa guerra, os contendores sabem (e/ou pensam) uns sobre os outros... Mesmo quando a guerra acabou há muito, como foi o caso da guerra na Guiné (1961/74)... Daí esta série "Memórias cruzadas"...

As Forças Armadas Portugueses tinham as suas próprias fontes de informação: os serviços de informação militares p.d., a PIDE, a administração civil, os prisioneiros, os desertores, os gilas, etc. 

O PAIGC tinha também, embora mais elementares, os seus próprios serviços de recolha e tratamento de informação, quer de natureza política quer militar, a começar pelos seus próprios combatentes, e outros, incluindo os gilas (que atravessavam as fronteiras e faziam jogo duplo), os seus simpatizantes e militantes civis em Bissau e no mato, etc.  

Muitas das informações que o seu quartel-general recebia era grosseiras, pouco ou nada válidas em fiáveis,  porque a "ideologia" aldrava a "realidade": na ânsia de mostrar resultados no campo de batalha, comandantes e comissários políticos das FAPLA acrescentavam sempre muitos pontos aos seus contos... Mas, se calhar, era isso que os "Cabrais" (o Amílcar, o Luís, o Vasco, o Fidelis...) gostavam de ouvir...lá no bem-bom de Conacri. 

O documento que abaixo se reproduz,  é um exemplo das informações em bruto, que chegavam a Conacri, onde o PAIGC tinha o seu "quartel-general" e a sua "inteligentsia"...

Vasco Cabral (Farim, 1926 - Bissau, 2005) foi um dos mais qualificados quadros dirigentes do "Partido". (Não tinha qualquer relação de parentesco com o líder histórico do PAIGC, embora também fosse de origem cabo-verdiana ). Estudou em Portugal (licenciou-se em Ciências Económico-Finaneiras, pelo ISCEF/UTL),  apoiou a candidatura de Norton de Matos à Presidência da República em 1949, enquanto membro do MUD Juvenil, lutou contra o Estado Novo-

Não há muita informação (independente) sobre a sua biografia: foi preso político em Portugal, entre 1953/1954 e 1959, até que, já na clandestinidade, conseguiu fugir, em 1962, de barco até Tânger (cidade já itegrada, desde 1956, na soberania marroquina), juntamente com Agostinho Neto, com a ajuda (dizem)  do PCP - Partido Comunista Português. 

A partir daqui a sua história mistura-se com a de outros dirigentes (políticos) do PAIGC. Escapou à morte no atentado que tirou a vida a Amílcar Cabral.  Pertenceu ao "bureau" político e exerceu funções governativas depois da independência. Não se opôs ao "golpe de Estado" do 'Nino' Vieira, de 14 de novembro de 1980. Foi também escritor e poeta. E tem, juntamente, com Amílcar Cabral a melhor caligrafia de todos os dirigentes do PAIGC, a avaliar por esta amostra manuscrita que aqui hoje publicamos.

Não sabemos exatamente  onde decorreu esta "audição de camaradas fugidos de Bubaque" (sic), transcrita por Vasco Cabral em 5/12/1969 (*). Tudo indica que tenha sido em Conacri. Os três "camaradas", provavelmente de etnia bijagó (tal  como o Inocêncio Kani, o carrasco do Amílcar Cabral), eram o Marcelino Banca, o Marcos da Silva e o José Albino Sonda.  (Não parecem ter deixado "peugadas" na história do PAIGC...).

Vasco Cabral destaca o M.S. (Marcos da Silva) como informante priveligiado, que mostra conhecer razoavelmente Bissau (cidade que, ao tempo,  o Vasco Cabral já não devia cohecer de todo):

(i) fala, embora de maneira fantasiosa e propagandística, sobre a flagelação a Bissalanca, em 19 de fevereiro de 1968, quando um pequeno grupo, comandado por André Pedro Gomes e Joaquim N’Com,  fez uma incursão noturna na área de Bissau, atacando a BA 12 com tiros de morteiro e armas ligeiras; esta ação, embora audaciosa mas de alcance limitado, foi habilmente explorada por Amílcar Cabral para mostrar, sobretudo no exterior, a sua  capacidade para desferir ataques nos prósprios santuários do inimigo, neste caso a capital;

(ii) indica a localização dos principais quartéis em Bissau, Bissalanca e Brá, coisa que não era nenhum segredo militar, sendo conhecida de toda a gente; referência a um alegado "paiol da pólvora", a 800 metros abaixo do QG (Santa Luzia), de que nunca ouvimos falar;

(iii) refere o problema dos preços e do alegado racionamento de alguns bens essenciais como o arroz e o açúcar: já no meu tempo, em meados de 1969, em Bambadinca, o preço do arroz (comprado pela população) andava  à volta dos 6$00; o pré dos nossos soldados guineenses (600$00 + a diária para a alimentação, sendo desarranchados, 24$50) dava para eles compraram 2 sacos de 100 quilos de arroz (com que se podia alimentar uma família extensa e numerosa);

(iv) enfim, denuncia alguns casos (que naturalmente terão existido, pontuais)  de violência física e verbal contra a população civil de Bissau, já no tempo de Spínola...

Vamos lá a ver se há leitores que queiram cruzar,  com estas, as suas memórias de Bissau daquele tempo (1968/69).



ORGANIZAÇÃO, FORMAÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA
5-12-69

Audição de camaradas fugidos de Bubaque [folhas nºs, 13-16 ] 

(A láspis, no alto da folha nº 1, está escrito: "Informações recolhidas pelo camarada Vasco Cabral")

M.S.  [Marcos da Silva ]  - Depois do ataque do Partido a Bissau,  
[em fevereiro do ano passado,
muitos africnos em Bissau ficaram contentes com isso. Os colonialis-
tas reagiram violentamente no dia seguinte atacando algumas taban-
cas mais próximas do campo de aviação como as tabancas de Bis-
salanca e de Plaque. Fizeram-lhes de madrugada uma emboscada, 
tendo matado algumas pessoas, ferido outras, e prendido toda a popu-
lação restante. Mais tarde,vieram a soltar alguns presos, mas outros fi-
caram presos até lá até agora.

A partir desse ataque os tugas tomaram outras medidas: reforçaram
a vigilância; agora, a partir das 6h da tarde, dirigem-se para o cam-  



po de aviação 4 ou 5 camiões grandes Unimog 
[no original, Hanomag], 
 [cheios de soldados
e vigiam o campo até de manhã. De vez em quando efectuam bombar-
deamentos pelas redondezas. Minaram as imediações do campo. Puseram 
à volta do campo 2 filas de arame farpado que deve ser electrifica-
do, pois puseram avisos em que se diz: "Perigo de alta tensão!" - avis-
ando o povo para se manter afastado.

Com o ataque que se fez, ficaram destruídos aviões, hangares 
 [angares, no original]  uma parte 
importante da Central Elétrica, o que ocasionou falta de luz durante
1 dia.

A população de Bissau não se deixa influenciar pela popaganda do 
tuga de uma Guiné Melhor. Dizem que o Spínola segue uma política por


causa da guerra, mas sabem que a guerra não vai acabar,

Há em Bissau milhares de soldados. À  [há, no original] volta de Bissau  há
7 quartéis: o Quartel-General que está em Santa Luzia; há
uns 800 metros mais abaixo o Paiol de pólvora;  há o quartel
da Amura; o Batalhão de Serviço de Material perto da Amura;  em
Brá há o Quartel de Engenharia; há também em Brá mais 
dois quartéis: o de Comandos e um outro de Adidos. Há ainda
o Quartel dos Fuzileiros, ligado à ponte de Pidgiguiti.

Perto do campo de aviação há ainda 2 quartéis: o dos Páras e outro
da Força Aérea. Estes 2 quartéis estão dentro da cercadura de arame
farpado.

= Há bichas em Bissau para a compra de arroz e de carne. Isto acontece du-


rante todo o ano. O preço do arroz varia com frequência. O ano passado vendia-
-se a 5$60 / kg., agora custa 6$90/kg. Há grande falta de açúcar.

Estabelecem às vezes para a venda do arroz um contingente máximo de venda   
[avulsa
de 1 kg. Também para o açúcar estabelecem 250 gramas, por pessoa.  Mas  
[açúcar
falta âs vezes durante 15 dias ou mais.


Há dificuldades sanitárias grandes: em 1º lugar , às consultas; fazem-
se bichas para as consultas e há muita gente que não é atendida, às vezes
durante 1 mês; em 2º lugar quanto a medicamentos que faltam em grande
quantidade. Afirmam que os medicamenmtos são só para os militares.

Não há bichas para os europeus civis, é só para os africanos.

Também qanto às outras bichas, são só para os africanos, uma única


excepção do Serviço dos Correios, onde os europeus também entram nas bichas.

= Coisas que os soldados tugas dizem dos africanos abertamemte nas
ruas: "Barrote queimado", "saco de carvão", "nharro", "negro",
nas suas relações com os africanos.

De vez em quando os fuzileiros liquidam africanos. No Alto Crim
este ano mataram 4 mulheres, uma rapaz em Santa Luzia, 3 pessoas
(2 rapazes e 1 rapariga) na Avenida Gago Coutinho. Para isso fazem
provocações.

Este ano a 2 de Novembro houve um incidente no Alto Crim entre 
um fuzileiro e um rapaz africano. Este agrediu o fuzileiro. Então.
ele queixou-se no quartel dizendo que um terrorista o agredira. Mais



tarde mandaram do quartel um pelotão de soldados que incendiou
casas, bateram em várias pessoas e feriram outras.

Ha frequentemente incidentes entre a população e a tropa colonialista.
Há habitualmenmte cenas com as raparigas africanas que passam nas
ruas. Os soldados tentam beijá-las, como elas reagem, às vezes, batem-
-lhes. Quando os africanos se dirigem à Polícia, para se queixarem
de certos abusos dos europeus, a Polícia não liga, não toma nenhumas medidas.

= É proibido ouvir-se a nossa Rádio em Bissau. Mas há muita gente
que ouve. Um tio do camarada Conrado foi preso por estar a ouvir
a nossa Rádio, em Julho deste ano. Ainda está preso por isso.


Foram ouvidos os seguintes camaradas:
- Marcelino Banca
- Marcos da Silva
- José Albino Sonda

(Seleção, transcrição, fixação / revisão de texto, itálicos e negritos: LG. Observ: Mantivemos a ortografia usada por Vasco Cabral)
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Citação:
(1969), "Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41391 (2024-1-16) (Com a devida vénia...)

Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07073.128.006 | 
Título: Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós. | Assunto: Informações de carácter militar, extraídas da audição com os "camaradas" vindos dos Bijagós, sobre Soga, Bubaque, Formosa, Uno, Caravela, Orango, Orangozinho, Canhabaque, Galinhas e Uracane. Organização e formação política e ideológica dos Bijagós, manuscritos por Vasco Cabral. | Data: Terça, 2 de Dezembro de 1969 | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios 1965-1969. | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Documentos.
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Nota do editor:

(*)Vd. último poste da série > 16 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25076: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bubaque, em 1969... "O antigo governador Schulz ia lá de vez em quando, com outros militares e algumas mulheres. O atual governador nunca lá esteve morado. Foi só visitar."...